Adapto e desenvolvo um pouco mais aqui o essencial de um comentário suscitado por uma intervenção de Luís Teixeira Neves na caixa de um post da Morgada de V. ontem publicado no 5dias.
Aparecer em público implica “dar a cara” – tanto como dever como direito: só os inferiores em certas sociedades e/ou relações hieráquicas eram considerados indignos de dar a cara e, por isso, proibidos de o fazer, de ocupar plenamente um lugar público.
A divisa igualitária e anti-classista da isonomia – ou seja, do igual direito de todos ao uso da palavra que decide da acção no interior desta (direito que, para ser efectivo, implica uma igualização das condições que o capitalismo reprime) – é inseparável desse dever-direito de dar a cara que “legisla”, “prescreve” e “promove” o espaço colectivo comum como espaço de coexistência e convivência entre iguais cuja defesa, reforço e extensão a domínios hoje excluídos dele (como a esfera do trabalho e da direcção da economia) são solidários da luta pela destruição da sociedade hierárquica (ou de classes).
Há, sem dúvida, situações em que somos obrigados a dar a cara sem que nos sejam reconhecidos os direitos correspondentes (o ” em pé de igualdade”); mas a luta contra essas situações faz-se, não através da atitude de esconder o rosto, mas justamente, pelo contrário, levantando a cabeça e a voz, dando a cara e tomando a palavra (que faz a lei comum).
Se o cidadão plenamente activo ("governante") é impossível sem se instituir, representar, assumir a si próprio como tal, esta sua auto-instituição individual tem por condição necessária que a sociedade o institua como cidadão, que o seu meio e formação sejam uma cidade informada já pela criação histórica da cidadania, cidade que impõe aos seus membros a lei da autonomia ou os vincula a essa lei, antecipando-os desde o início - desde a infância e através do processo de socialização e da imersão continuada numa paisagem de usos e costumes - como co-autores, que como tais se reconhecem, da sua própria lei e governo político.
Esta figura do cidadão é solidária, entre outras coisas, de um regime histórico de "criação" do indivíduo que, em situação de interpelar e ser interpelado, dá a cara e fala em seu próprio nome, sem por isso deixar de ver, ouvir e reconhecer os outros. A exigência de expor o rosto ou dar a cara é simplesmente, deste ponto de vista, a mesma que impõe que cada um tenha um nome, que não esgota sem dúvida a sua identidade ou realidade humana, pelo qual possa dizer-se (e ser dito), fazer-se reconhecer (começando por ser reconhecido), participar livre e responsavelmente na recriação e definição das instituições que o criam.
Dizer que exigir que se dê a cara, ou se assuma um nome que faça que cada um seja responsável pelo que diz e faz e reconhecido como agente pelos outros significa atentar contra a "liberdade de escolha", é - como já tive ocasião de sugerir ontem à boleia de um comentário da Ana Cristina Leonardo na caixa de um post do Luis Rainha - não compreender que, sem sociedade e imposição da linguagem à cria humana, não há sequer a ideia de "liberdade escolha" individual: ou seja, não compreender que a ideia de que a liberdade de escolha e de expressão individual é um bem socialmente produzido ou criado, e que só em certas histórias sociais esse bem é considerado maior e inegociável. É uma tese que equivale a sustentar que ou a liberdade é incondicional, ou todas as condições se equivalem e são igualmente opressivas. E do mesmo modo que semelhante posição ignora que a liberdade - digamos, para assentar ideias, a liberdade política - releva de um conjunto de condições que são criações históricas e não existe para os indivíduos a não ser na medida em que sejam colectivamente instituídas, ignora a natureza da acção política e a própria reflexão política enquanto tais: com efeito, a política começa, não pelo sonho de um para além da instituição e das leis, mas pela posição que, assumindo que a instituição e as leis são criações humanas históricas não predestinadas por uma ordem superior, as torna objecto de deliberação e decisão - ou, justamente, de liberdade de escolha a partir das condições anteriores e no interior dessa condição.
18/07/10
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10 comentários:
(Palmas !) - magnífico depoimento, Miguel.
Mas confesso que, neste blog, o excesso de concordância está a ter para mim um efeito perverso: está-me a atrofiar a capacidade de discordar.
nelson anjos
Não percebo porque se compara duas situações que não têm grande relação. Não me parece lógico confrontar a "cara que se tapa" no cumprimento de uma norma, seja ela hetero ou autodeterminada (não quero entrar nessa discussão) com a "cara que se tapa" no contexto do combate político. Dizer que:
"Há, sem dúvida, situações em que somos obrigados a dar a cara sem que nos sejam reconhecidos os direitos correspondentes (o ” em pé de igualdade”); mas a luta contra essas situações faz-se, não através da atitude de esconder o rosto, mas justamente, pelo contrário, levantando a cabeça e a voz, dando a cara e tomando a palavra (que faz a lei comum)."
parece-me bastante moralista e desprovido de qualquer sensibilidade estratégica.
Caro Camarada Nelson,
obrigado pelo seu apoio. Mas parece-me que está a sobrestimar o unanimismo - nomeadamente sobre as duas questões (a mais geral e a particular) que este meu post levanta, creio que temos partido aqui bastante pedra (ver, p. ex., a concepção mais "liberal" do Ricardo Noronha e as concepções "democráticas" e "republicanas" que, nem sempre coincidindo, o Luis Rainha e eu temos defendido).
Forte e solidário abraço
msp
Caro Anónimo,
o "dar a cara" na acção política remete para a concepção e a prática democráticas desta e para as condições de exercício de um poder político igualitariamente participado. É inconcebível que eu apresente as minhas propostas ou argumentos sem "dar a cara" ou declinar o nome e assumir a responsabilidade das minhas palavras.
Evidentemente, não me referia ao campo de batalha propriamente dito de um teatro de guerra nem às condições da guerrilha ou resistência clandestina.
Saudações democráticas
msp
Estou em total desacordo consigo. As propostas e os argumentos devem ser discutidos por si mesmos, sem que a identidade do respectivo autor seja chamada ao assunto. A proposta A ou o argumento B não são melhores ou piores por virem da pessoa C ou da pessoa D. E do mesmo modo por não se saber de quem vêm e a quem podem ser imputados.
Quanto aos campos de batalha propriamente ditos e os não propriamente ditos, não sei o que isso é. Não vejo essa separação, o combate trava-se em todo o lado e por todos os meios.
Miguel
Refiro-me à concordância, no que me parece essencial, entre os seus pontos de vista e os meus.
nelson anjos
a origem de um argumento não vale para lhe dar razão; mas pode modulá-lo de forma decisiva. Qual a relação entre o autor e o campo onde se inscreve esse argumento? De outra forma e por exemplo: um apelo ao aumento da liberdade pode querer dizer coisas substancialmente diversas, se vier de um activista e esquerda ou de um neo-con.
Dar a cara também implica investir as nossas opiniões do peso da nossa biografia anterior.
PS: nem aplaudo o excelente post, pois está na cara que concordo quase a 100% com o que ali vem.
O LR preocupa-se com possíveis "misinterpretations". Isso não deixa necessariamente de acontecer pelo facto de se saber quem é e de onde vem o respectivo autor, sendo que, em qualquer hipótese, a origem dessas misinterpretations terá muito mais que ver com o que é dito do que com o facto de não se saber quem o disse. Reconheço neste argumento a necessidade de enquadrar tudo o o que é dito numa caixinha qualquer. Não gosto.
Assumir como condição necessária da cidadania uma legibilidade arbitrária - "dar a cara", enquanto se sugere que a luta pela igualdade se faz de uma dada e determinada forma é engraçado. Também me parece engraçado prescrever um modelo de reivindicação, ao mesmo tempo que se toma um cuidado extremo no sentido de expor uma posição anti-moralista.
A sua discussão em torno dos "tipos" que não adoptam a sua representação binária de liberdade é que já é engraçada. É, tão-só, uma caricatura desonesta que remete a necessidade do debate para uma nota de rodapé. O que faz sentido, já que você propõe as soluções em nome de uma radicalização da democracia e da cidadania governante, desde que "dentro dos limites legais".
Também me parece curioso relevar a historicidade das instituições e das leis no sentido de legitimar uma imanência da sociedade e da linguagem como permissoras da agência humana. Isso não quer dizer que não existam múltiplas instâncias de agência humana, além daquelas que uma pessoa desconhecedora das experiências das mulheres muçulmanas - é disso que está a falar, embora não o queira relevar - entende como legítimas. Essas mulheres são responsáveis pelos seus actos e, em geral, não se remetem à docilidade que sugere. São agentes dotadas de volição. Não são actores do seu teatro de marionetas onde os conceitos bailam ao sabor de dois ou três axiomas regados de verniz retórico.
Ao contrário daquilo que sugere, os "tipos" que sugerem as limitações de uma posição inicial dogmática, quanto a esta questão, não sugerem que se trata de um jogo de soma zero. Esses "tipos", como eu, preferem compreender a realidade de forma não axiomática e, ao contrário também do que sugere, não são amibas deslocadas da realidade. Pelo contrário, o que se pretende é definir o problema, discuti-lo com todos os agentes envolvidos e encontrar uma solução. Ainda que a sua cidadania auto-governada não goste desta aproximação, porque é uma alternativa à sua postura moralista, está disponível no repositório. É mais difícil, porque o estruturalismo fácil é menos exigente. Concebe-se um conjunto de axiomas, formula-se um sistema interna e externamente lógico, assume-se a sua aplicabilidade universal e pimba, cá estamos a dizer às malucas do véu o que devem fazer se quiserem ser reconhecidas.
A sua discussão em torno dos "tipos" que não adoptam a sua representação binária de liberdade é pobre. E é, tão-só, uma caricatura desonesta que remete a necessidade do debate para uma nota de rodapé. O que faz sentido, já que você propõe as soluções em nome de uma radicalização da democracia e da cidadania governante, desde que "dentro dos limites legais" estipulados pelos herdeiros da historicidade institucional - afinal, todos os porcos são iguais, mas há uns mais iguais que outros.
Existem múltiplas instâncias de agência humana, além daquelas que uma pessoa desconhecedora das experiências das mulheres muçulmanas - é disso que está a falar, embora não o queira relevar - entende como legítimas. Essa é uma das condições da democracia. Essas mulheres são responsáveis pelos seus actos e não se remetem à docilidade que sugere. Não são putas nem submissas, têm funções volitivas. Não são actores do seu teatro de marionetas onde os conceitos bailam ao sabor de dois ou três axiomas regados de verniz retórico.
Os "tipos" que sugerem as limitações de uma posição inicial dogmática, quanto a esta questão, não sugerem que se trata de um jogo de soma zero. Esses "tipos", como eu, preferem compreender a realidade de forma não axiomática e, ao contrário também do que sugere, não são amibas deslocadas da realidade.
O que se pretende é definir o problema, discuti-lo com todos os agentes envolvidos e encontrar uma solução democrática e inclusiva. Ainda que a sua cidadania auto-governada não goste desta aproximação, porque é uma alternativa à sua postura moralista, está disponível no repositório "da luta". É mais difícil. O estruturalismo fácil é menos exigente. Concebe-se um conjunto de axiomas, formula-se um sistema interna e externamente lógico, assume-se a sua aplicabilidade universal e pimba, cá estamos a dizer às malucas auto-excluídas de véu o que devem fazer se quiserem ser reconhecidas no ágora - acho igualmente curioso que, em posts anteriores, tenha usado uma referência clara à polis ateniense, comunidade política vedada aos metecos e às mulheres, de burqa ou sem ela.
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