«Agora não nos incomoda, porque o alvo são hábitos culturais que nos são estranhos e nos parecem pouco recomendáveis. Até ao dia em que chegue a nossa casa, às nossas convicções e à nossa vontade.»
Lê-se e não se acredita que o Daniel Oliveira tenha escrito isto. Mas faltarão exemplos de baias erguidas em torno das nossas convicções, hábitos e vontades? Pode o Daniel passear por Lisboa em pelota? Posso eu plantar certos vegetais, só para meu deleite privado, sem me arriscar a ir dentro? E se caísse na insânia de me casar com duas ou três moçoilas em simultâneo, a que choça me iriam elas visitar não tardaria nada?
O Estado já nos toma por alvo desde que ele é. Aliás, nem poderia ser senão sobre os escombros das nossas liberdades absolutas, sobre os fósseis dos nosso queridos arbítrios, antes tão livres. Hobbes sabia disto há uns anitos: «As for other Lyberties, they depend on the silence of the Law. In cases where the Soveraign has prescribed no rule, there the Subject hath the liberty to do, or forbeare, according to his own discretion». Cabe-nos ser livres nos interstícios da vontade dos outros. E já é um pau.
Ser contra a pública excisão dos rostos de algumas mulheres, por livre ou interposta vontade, terá muitos argumentos. Agora este da insuportável interferência estatal... francamente. A minha casa já está cerceada há muito.
Depois, argumentos como «A mim, choca os meus costumes pessoas a arrastar-se no chão no Santuário de Fátima. Quero proibir? Claro que não» só prolongam a desgraça. Ninguém está a impedir as muçulmanas de andarem dentro de tendas, se o desejarem, nos seus espaços de culto; mas quem se arraste pela calçada da Rua Augusta afora cedo terá umas quantas multas no lombo – imagino que não faltem leis e posturas municipais a ilegalizar o que em Fátima é o pão nosso de cada dia.
14/07/10
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4 comentários:
Rainha, meu candido publicano, mas olha que depois de Hobbes há Kant, e consta que as necessidades de legitimação às restrições a liberdades devem cumprir os mínimos daquela racionalidade valorada e sempre para precatar a outro tanto de alguma importancia.
As imanencias, no limite, são mesmo um pau!!
Naturalmente, nem todas as proibições se equivalem em premência e justificação. Mas isso não nos autoriza a encenar o espanto de "ai que o Big Brother se vai meter comigo!"
Ele mete-se com todos, todos os dias.
"Ele mete-se com todos, todos os dias."
Precisamente. Houve um caso grave que passou em branco
http://5dias.net/2010/07/13/isto-e-muito-grave
Mas não ameaça o multiculturalismo, daí não merecer tanto destaque.
Exactamente, Luis. Cem por cento razão. Acresce que a liberdade passa pela participação igualitária na definição do regime comum e não pela ausência de regime comum ou pelo agir da fantasia da abolição da instituição enquanto tal. O que não é dizer - antes pelo contrário - que todos os regimes ou instituições se equivalham, e também não é esquecer -antes pelo contrário - que a deliberação e decisão comuns que caracterizam a liberdade democrática como igual participação no exercício do governo possam dispensar a phronésis, "faculdade de juízo" prático e político, não codificável, porque instituinte e relevando do que em nós é "ondulante e diverso" (e da sua consideração), que assegure a auto-limitação do poder político democrático e do seu campo de aplicação.
Por fim, a participação igualitária no fazer da lei democrática é indissociável da sua universalidade: as decisões tomadas através da deliberação e decisão comuns vinculam e não podem deixar de vincular todos por igual, sob pena de corrupção da cidadania pela hierarquia de estatutos e condições politicamente desiguais. De onde a invocação de convicções íntimas ou crenças religiosas não pode ser reconhecida como justificação do não-acatamento das decisões comuns - embora estas, em democracia, nada tenham de sagrado e possam ser revistas e alteradas pelos cidadãos após reexame e redeliberação nesse sentido, e embora, ao contrário dos preceitos religiosos ou tradicionais, não vinculem os espíritos nem sejam sagradas.
Abraço para ti
miguel sp
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