Sempre que, à boleia de um ladrão de bicicletas, vou parar às páginas do Jornal de Negócios, sinto que entrei num mundo regido por leis próprias, onde não impera a gravidade e a lógica ganha propriedades elásticas.
Camilo Lourenço explica-nos que Ernâni Lopes - um brilhante economista cuja receita para sair da crise é cortar 15% a 20% dos salários no sector público - "atacou aquele que é um dos piores males do País: a mania do diálogo", que é nada mais nada menos do que "a principal responsável pelo descalabro a que chegaram as contas públicas portuguesas." Lê-se e relê-se e fica-se com a sensação de que Manuela Ferreira Leite sopra aos ouvidos de quase todos os comentadores económicos o conteúdo das suas crónicas. De facto se for suspenso o diálogo - que é a condição da democracia - é muito mais simples impor um ponto de vista e chamar-lhe A solução. Qualquer aprendiz de feiticeiro se torna um mago das finanças se puder reduzir salários e prestações sociais sem ter que o justificar. Mas é esse o drama dos liberais portugueses - as suas propostas são todas excelentes, mas para um regime político de outro tipo que não este.
Não falta sequer a referência às corporações, tantas vezes repetida que se fica com a sensação de que as licenciaturas em Economia beneficiariam bastante em ter no seu currículo uma cadeira de História que fosse um pouco mais do que cliometria.
Tempo de serviço público. Os sindicatos não são corporações. Os sindicatos negoceiam com o patronato as condições em que os trabalhadores vendem a sua força de trabalho. As corporações, por sua vez, visam regular o conjunto do funcionamento de um sector económico, sobrepondo-se formalmente aos interesses parciais que nele coexistem, nomeadamente os interesses de trabalhadores e patrões. Na prática, e na sua acepção moderna, as corporações são entidades que asseguram a subordinação dos interesses dos trabalhadores aos dos patrões. Era o caso do corporativismo português realmente existente até 1974, em que a contratação colectiva era arbitrada por um representante do Estado, que invariavelmente consagrava as pretensões dos grémios patronais sobre as dos sindicatos nacionais.
Defendem-se interesses corporativos quando se procura manter privilégios sectoriais - comuns tanto aos trabalhadores como aos patrões, mesmo se de forma desigual - contra um interesse geral (cuja definição é evidentemente complexa e conflitual). Poderia ser o caso de uma empresa privada detendo um monopólio natural e que distribuísse elevados dividendos pelos seus accionistas e trabalhadores. Os casos da PT e da EDP seriam paradigmáticos, mas as migalhas ficam-se pelos administradores e certos quadros. Estranhamente, encontram-se poucas penas liberais a insurgirem-se contra essa situações.
Não se defendem interesses corporativos quando um sindicato procura salvaguardar o poder de compra e os direitos laborais dos seus associados, contra a vontade do empregador de os reduzir. Estranhamente, parece ser esse o único caso em que se fala de corporativismo.
Não se defendem interesses corporativos quando um sindicato procura salvaguardar o poder de compra e os direitos laborais dos seus associados, contra a vontade do empregador de os reduzir. Estranhamente, parece ser esse o único caso em que se fala de corporativismo.
Finalmente, é caso para perguntar "estes economistas para quê?", quando Camilo Lourenço nos propõe um "exercício" que revelaria, diz-nos, um "mistério": "quantas vezes ouviu os sindicatos do Estado gritar que o sector perde poder de compra há 10 anos (eu já perdi a conta)?. Mas se assim é, por que é que as estatísticas mostram que a despesa corrente do Estado (essencialmente salários) nunca parou de subir nas últimas décadas?"
Vamos lá, então, devagarinho. A despesa corrente cresce porque o Estado tem mais encargos. Parte desses encargos relacionam-se com o crescimento da massa salarial. Se, como sabemos acontecer, essa massa salarial crescer devido ao aumento do número de funcionários, então pode combinar-se um aumento da despesa corrente com a perda do poder de compra dos trabalhadores do Estado. Se acrescentarmos a este quadro outros problemas, a coisa ainda pode tornar-se mais complexa: aumento da qualificação dos trabalhadores que entram em relação aos que se aposentam (com a respectiva diferença ao nível das remunerações mas também, supõe-se, da produtividade), recurso à sub-contratação e a serviços externos devido a carências ao nível dos serviços do próprio Estado (que até se podem ver agravados pela estúpida regra de 1 por 2, representando um acréscimo de despesas), aquisição de equipamentos que visem precisamente aumentar a produtividade dos serviços (e eventualmente a redução de pessoal ) inscritas na rubrica das despesas correntes. As razões para o crescimento da despesa corrente do Estado são inúmeras. Mas bastaria que o aumento da despesa ao longo da última década fosse inferior à taxa de inflação para que os trabalhadores do Estado perdessem, quase de certeza, poder de compra.
Camilo Lourenço preferiu identificar um pretenso paradoxo simples onde existe uma efectiva multiplicidade de factores complexos. É assim que funciona, quase sempre, o raciocínio liberal sobre o Estado e as suas contas. A uma distância confortável, que autoriza todos os disparates. E que tem sempre uma página de jornal à espera para partilhar a sua lógica absurda. Cortar nos salários... De que é que eles se vão lembrar a seguir?
4 comentários:
Bravo, camarada Ricardo!
miguel sp
Ligar muito ao que diz e escreve o Camilo Lourenço é forma bem fácil de emigrar para a Twilight Zone. De vez.
Muito não. Mas alguma coisa tem que se ligar. Ele goza de bastante destaque e espaço mediático.
O gajo parece o sapo da fábula, que incha, incha...
O problema é que estoura todos os dias, por escrito e na TV, e nem dá por isso.
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