15/07/10

O desconfortável intervalo entre a teoria e a vida

No 5Dias, Mariana Canotilho enveredou pela defesa à outrance da Liberdade para proclamar a sua oposição a proibições relacionadas com a moda – mormente tendo o niqab e a burqa por alvos. Depois, claro está que a brigada lírico-feminista do costume acorreu em massa para aplaudir o esforço.
Apesar do unanimismo no gineceu militante, os problemas permanecem. Começando pela cómoda fronteira que entenderam desenhar sobre esta questão: burqas para crianças, nem pensar – agora quanto a adultas dotadas de livre arbítrio, claro que a nova legislação ofende a sua íntegra condição de seres livres. Mas como se irão detectar as crianças naufragadas naquelas ilhas de tecido opaco? Terá a polícia dos costumes de encenar rusgas individuais a cada tenda ambulante que encontre na rua? (E que dizer da facilidade com que os ogres domésticos podem ocultar os vestígios das suas intervenções quotidianas sobre os rostos das amantíssimas esposas?)
Ademais, como sugere a brava Morgada, talvez haja também um ligeiro declive social que empurra as classes desfavorecidas para dentro dos seus buracos de terylene: «não me oponho a cientistas e advogadas vestidas de burka (...), mas a verdade é que não conheço nenhuma.» Não estou mesmo ver forma de contrariar esta ditadura só com boas intenções. É excelente oferecer às oprimidas promessas de «educação, saúde, direitos, autonomia económica»; mas tal soa muito à deliquescente caridade cristã dos adversários da IVG: após o primeiro referendo, eles iam, entre outros suaves milagres, atacar a fundo as causas das gravidezes indesejadas. Foi o que se viu.

Ao que parece, há cerca de 2.000 mulheres em França a usar estes véus integrais. De forma caritativa, suponhamos que metade o faria mesmo se livre de pressões externas. Serão assim mil as vítimas colaterais desta proibição. Num universo de vários milhões de muçulmanas em França, mil serão espoliadas da liberdade de se soterrarem em vida. Não parece um custo alto de mais.
A fatwa estatal – com multas mais substanciais para quem force as mulheres ao esconderijo ambulante – tem pelo menos uma vantagem clara: sinaliza aos patriarcas opressores que o seu poder por fim encontrou um limite, ainda bem dentro da esfera das vidas das dominadas. Que não podem declarar a independência dos seus pequenos enclaves governados pela charia. Isto não é aceitar a guerra das civilizações nas nossas ruas; é impedir que coagulem as condições para a sua eclosão.
Haverá, talvez, um milhar de mulheres ofendidas pelo novo interdito? Tant pis. Os ganhos parecem-me valer a pena. Nem que sejam apenas as outras mil, livres de parte das couraças com que as querem preservar das tentações e dos olhares do mundo.

18 comentários:

Anónimo disse...

Grande Luis,

tinha saudades de ler os teus escritos.
tudo ok?? espero que sim.

abraço,
ezequiel

Anónimo disse...

"é impedir que coagulem as condições para a sua eclosão."

eu acredito precisamente no oposto.

a proibição é contraproducente. n tenho tempo agora para argumentar.

abraço
zeke

Mariana Canotilho disse...

Caro Luís Rainha,

Estivesse eu convicta de que esta lei libertava uma mulher que fosse e de que foi feita com uma preocupação genuína em relação à autonomia e aos direitos das envolvidas, e até podia concordar consigo.

Todavia, e pelo contrário, acho que nem a lei tem por verdadeiro objectivo libertar as mulheres - que, pelo contrário, penaliza, já que a coima é para elas, para as pobres oprimidas - nem me parece que vá resultar. Espero que o tempo lhe dê razão e que eu esteja enganada.

Se queremos combater os patriarcas opressores, porque é que não os perseguimos directamente a eles?

tragediaGeek disse...

As crianças com burca detectam-se simplesmente olhando para elas. A escolaridade é obrigatória pelo que não se enfia uma criança dentro de quatro paredes com a facilidade com que se enfia uma mulher adulta e que é o destino das que sendo agora proibidas de a usar terão.
É precisamente pela facilidade que esses ogres têm em oprimir as mulheres, com ou sem burca, que a proibição em nada altera a situação delas. Piora. Um ogre que não quer que a mulher seja vista por ninguém e tem poder sobre ela para lhe impor a burca, também tem poder para a enfiar dentro de casa. O poder é o mesmo e o seu exercício será apenas desviado de um instrumento de opressão para outro muito pior. Quem oprime não quer saber de sinalizações pois sabe que pode continuar a oprimir.

Quando às boas intenções e promessas, tiveram as comunidades imigrantes muitas até agora, ironicamente dos mesmos que agora querem proibir. A proibição é mais uma “boa intenção” que nada resolve. É semelhante à “boa intenção” multiculturalista de tratar o “outro” como membro de uma minoria étnica em vez de o tratar como cidadão em tudo igual aos nativos, ignorando o racismo, a descriminação social, o assédio policial, etc. De onde pensa que surgiu esta vontade recente de usar a burca?

"E, como sugere a brava Morgada, talvez exista também um ligeiro declive social empurrar a as classes desfavorecidas para dentro dos seus buracos de terylene: «não me oponho a cientistas e advogadas vestidas de burka (...), mas a verdade é que não conheço nenhuma.» "

E como a Morgada não conhece nenhuma, elas não existem. A Morgada nunca viu nenhuma porque quando exercem as suas profissões são impedidas de a usar. Não significa que não a usem na rua ou que se oponham ao seu uso.

Justiniano disse...

Rainha, era um mercado em expansão. Há estudos que apontavam um crescimento de tais trajes...há negócios já alinhavados, coisa de milhões, eu próprio já enterrei uma batelada de massa a abrir uma fábrica em Maharashtra, apenas para o mercado francês, algodão dos states e lã do Paquistão, e vens agora tu reduzir a coisa a mil!! E a confiança!?

Miguel Serras Pereira disse...

Luis, a primeira parte do teu post, além de brilhante, merece todo o meu apoio. O segundo momento da argumentação parece-me menos feliz. E julgo que, arrastado pelo ardor argumentativo, enveredas por uma via indesejável segundo os teus próprios critérios. Eu vou explicar e espero que me corrijas caso desproposite muito.
A minha objecção de fundo é à derrapagem utilitarista que a introdução da contabilidade introduz. Vejamos, não podemos justificar a injustiça que fazemos a um ou dez declarando que isso beneficia cem ou mil. Ou a pena de morte dizendo (o que, de resto, não corresponde à realidade, mas ainda que correspondesse…) que o tratamento inumano infligido a uma minoria de criminosos executados permite poupar inocentes mais numerosos, etc., etc.
Por outro lado, este argumento estatístico não te faz falta sequer. Podemos discutir a oportunidade da proibição da burka ou do niqab, sem dúvida, mas parece-me incontestável que regulamentar a exposição de si dos cidadãos no espaço público seja em si mesmo abusivo - como já tinhas demonstrado. Se assim não fosse, poderíamos andar despidos na rua, e exibir nos jardins e passeios, rotundas e cruzamentos mais freqauentados, as práticas sexuais reservadas à intimidade.
Tudo o que é necessário é que a lei não proíba esta ou aquela moda como expressão da crença religiosa, por um lado, ao mesmo tempo que, por outro, não admita excepções que se baseiem na invocação dessa mesma crença.
Isto, quanto à regulamentação da moda em geral. Quanto à proibição da burka ou do niqab em particular, e deixando de parte as intenções políticas da lei, o modo como foi adoptada, etc., há um argumento muito forte que a poderia confortar: faz parte das exigências de participação e intervenção no espaço público ou comum o reconhecimento e a exposição de si da pessoa dos participantes, o que exclui o disfarce ou obstrução da sua aparência corporal - e não só nem talvez principalmente por razões de segurança. Faz parte, por outras palavras, das condições de coexistência no espaço colectivo comum que saibamos - até certo ponto, ou saibamos pela metade - com quem falamos e nos cruzamos, quem podemos interpelar ou ter como interlocutor, etc. Não precisamos nem temos de exigir a cada um a exibição de documentos de identidade, mas é conveniente que possamos dizer de cada um dos outros que andam na rua ou estão no mesmo café qualquer coisa como: "Era um homem, nem novo nem velho, com tacões muito altos nos sapatos, talvez por ser baixo, sem barriga e com uma boca que tinha qualquer coisa de especial", ou "Perguntei o caminho a uma mulher de idade, com os cabelos brancos, ou pintados de branco (pareceu-me pelo tom do branco), que estava na esplanada a conversa com outra, que talvez fosse sua filha e me impressionou muito, pelo violento contraste entre a sua aparência frágil e a firmeza do seu timbre", ou ainda: "Havia no café caras conhecidas, embora não estivesse ninguém de quem eu fosse amigo". Esta possibilidade de ver quem se conhece ou não conhece, de reconhecer os conhecidos e os desconhecidos, de antecipar o conhecimento potencial dos segundos e a interlocução com eles, de marcar assim a responsabilização e reconhecimento preliminar que o espaço comum implica e promove, é de certo modo um bem público e impessoal que importa garantir e não deixar deteriorar.

Extraviei-me muito?

miguel sp

Justiniano disse...

Rainha, verdadeiramente, esta posta não tem ponta por onde se lhe pegue, no limite poderemos lobrigar algum fastio quanto ao lirismo, em tom de desabafo. Então a argumetação em modelo quantitativo não cumpre mesmo os mínimos!!

Miguel Madeira disse...

"Ao que parece, há cerca de 2.000 mulheres em França a usar estes véus integrais. De forma caritativa, suponhamos que metade o faria mesmo se livre de pressões externas. Serão assim mil as vítimas colaterais desta proibição. Num universo de vários milhões de muçulmanas em França, mil serão espoliadas da liberdade de se soterrarem em vida. Não parece um custo alto de mais."

Um custo alto demais para quê? Por esse mesmo raciocinio, também só mil mulheres (as tais mil que a usam obrigadas) irão ser "libertadas" por essa lei.

Unknown disse...

Reduzir um axioma republicano e laico a uma função de utilidade (concordando com MSP) parece-me infeliz. Mas, ao menos, tem o condão de relevar o carácter político e culturalmente informado desta questão.

Não estão em jogo direitos, possibilidades emancipatórias ou reforços ad hoc da igualdade de género. Está em jogo uma concepção da comunidade política, historicamente condicionada e, portanto, arbitrária - não dotada de legitimidade normativa acrescida só porque redistribui direitos de forma equitativa ou quaisquer outros termos avaliativos. Ao contrário do que é sugerido por alguns, acho que este reconhecimento reforça a argumentação republicana e laica. Sendo assim, que se assuma o alvo desta discussão, o Islão na Europa e a sua compatibilidade com determinados valores. O objectivo da interdição não é a subida no IDH e o bate-palmas dos movimentos feministas; é, isso sim, a constituição de um programa político de intervenção culturalista que cristaliza a ideia de incompatibilidade fundamental entre coisas tidas como "islâmicas", embora não o sejam necessariamente, e o laicismo republicano. Por mim, que se promova um tal programa - que eu saiba, a produção de políticas públicas é localizada num universo cultural e histórico e os aparatos culturais/institucionais importam. Mas que, pelo menos, os termos da discussão sejam claros e não se instrumentalize/banalize uma ideia de emancipação top-down claramente inquinada.

Luis Rainha disse...

Mariana,
A lei francesa – para manter as aparências, não duvido – por acaso até penaliza mais quem obrigue alguém a andar de burqa do que a própria (vamos ver quantas coimas é que são efectivamente impostas). Mas tal é apenas mais uma cortina de fumo; a lei é apontada às ilhas islamitas na sociedade francesa. E é aí que eu vejo alguma vantagem nesta iniciativa: marcar limites à acção dos patriarcas, estabelecer linhas para além das quais a charia não se pode implantar.

tragediaGeek,
Uma criança de 12-15 anos passa perfeitamente por adulta dentro de uma burqa. E repare que se um marido deixa a sua mulher perambular pela rua, impondo-lhe a burqa, será, na maioria dos casos, porque precisa mesmo de serviços que ela só assim lhe pode prestar: compras, burocracias, etc. Quem oprime tem sempre bastante imaginação para o acto; mas quanto menos hipóteses, melhor. Certo é que a proibição não resolve nada, como a imposição dos 120 km/h nas auto-estradas não impede os acidentes. Mas pode vir a revelar-se pelo menos um sinal e alerta para quem gostaria de trazer uma dose ainda maior de barbárie para as suas vidas.
Quanto ao resto, não vejo em França essa «vontade recente de usar a burca», pelo menos a fazer fé nos tais dois milhares. E tudo o que li até agora, relativo à realidade francesa, me faz pensar nessa ligação desfavorecimento social-burqa.

Miguel,
Eu dou de barato essas mil voluntárias num exercício que já me parece algo delirante. Certo é que tendo, talvez por pendor etnocentrista, a imaginar que essa percentagem será muito mais reduzida. E aí, a questão contabilística reforça o seu pendor benfazejo: o mal que se fará a umas quantas é ínfimo se corresponder a um bem muito mais amplo nas vidas de um número bem superior (não falamos de mortes, mas apenas de imodéstia forçada). Mas, como apontas, nem é isso o centro da argumentação, apenas uma chamada de atenção para a escassez dos casos reais que a lei vem confrontar.
E não faço de conta que não sei qual o alvo da lei: não é a segurança, mas sim a insularidade crescente de alguns sectores islâmicos em França. Quanto à forma vital de inserção nos espaços e hábitos comuns que é a revelação do nosso rosto, não podia estar mais de acordo e acho que deverias postar sobre essa perspectiva.

Justiniano,
A «argumentação em modelo quantitativo» faz alguma falta para situar o problema, não vá muita gente imaginar que os milhões de muçulmanas francesas (e em França) estão em pulgas para se enfiarem naquelas coisas.

Miguel Madeira,
Escrevi: «Nem que sejam apenas as outras mil»; antes explanei quais são, a meu ver, os possíveis benefícios reais da lei.

Ricardo Noronha disse...

Luís, estou em completo desacordo contigo na avaliação desta Lei. Parece-me que a sua aplicação será sobretudo uma ocasião para multiplicar os espaços e os tempos da repressão policial junto de uma comunidade imigrante que já é alvo de perseguições e intimidações habituais. Não me parece que o objectivo seja o combate aos patriarcas. Aliás, se fosse esse o caso existiriam mecanismos bem mais subtis e efectivos de o fazer. E não se poderia limitar aos patriarcas muçulmanos.
Miguel, o espaço público deve ser utilizado livremente. E esse livremente tem que incluir o espaço para uma pessoa ocultar a sua identidade, se daí não resultar nenhuma ameaça ou prejuízo para os outros. O facto de nós gostarmos de ver caras não pode servir de argumento para impor o que quer que seja a outras pessoas.

Miguel Serras Pereira disse...

Ricardo,
mal acabo de te aplaudir por outro post excelente que aqui puseste, e já novo diferendo nos enfrenta. Vamos lá ao duelo.
O que se passa é que não há espaço comummente partilhado, de convivência e coexistência interessadas, que não seja estruturado e definido por regras mais ou menos formais. Surpreende-me a tua versão meramente "liberal" e negativa dessa regra. Faz parte dos meus direitos e da minha liberdade perguntar o caminho ou as horas e poder dirigir, cortesmente, a palavra na rua a quem quer que seja, em pé de igualdade e na expectativa de ter resposta. É isso que a cobertura integral do corpo e do rosto impede ou proíbe. Há toda uma dimensão da reciprocidade entre iguais que está sob ameaça (dimensão de reciprocidade que foi conquistada, ainda que incompletamente, contra o princípio aristocrático ou das castas…) e que merece ser defendida.
Em termos mais práticos: defenderás, por acaso, que a nudez e o coito (ainda que na posição do missionário) sejam exibidos na rua? Porquê? Prejudicam a liberdade "liberal" dos outros? Obrigam-nos a fazer o mesmo? Não são apetites possíveis deste ou daquele nosso concidadão? Vais-me dizer que a nudez e o coito prejudicam os outros porque são chocantes? Porque é que burca o não será - ou será menos, pelo menos para alguns?
Em última análise, a lei ou a regra comum exprime uma vontade cultural e política - e não há vontade que seja compatível ou possa coexistir pacificamente com todas as outras, diferentes ou contrárias. Por isso, do teu argumento, a parte a que reconheço validade é a que adiante argumentos políticos que tornariam desaconselhável a proibição. Sobre isso, não estamos de acordo, mas podemos vir a estar, e em todo o caso, trata-se de uma questão de kairos e de phronésis que não compromete o nosso entendimento em boa parte solidário da república e do exercício igualitário do seu autogoverno. Qual a melhor maneira de tutelar um bem social e comum, indivisível e não económico, como o da reciprocidade que referi, e a que o Luis chama, com aquele dom da fórmula justa que contigo compartilha, "forma vital de inserção nos espaços e hábitos comuns que é a revelação do nosso rosto"? Por mim, parece-me que é aqui que o debate entre nós pode encontrar um ponto de partida fecundo.
Reabraço

miguel sp

Justiniano disse...

Caríssimo MSP,
Bem sei que o seu atento comentário é dirigido ao R. Noronha, mas permita-me este pequeno comentário à boleia desta posta do Rainha!
- A exposição da nudez e o coito no espaço público representam o inverso do ocultar do rosto. Os primeiros representam uma apropriação do espaço, uma ofensa por apropriação, isto para além de razões de "saúde pública", e isto para excluir da equação a questão moral, cultural do argumento neutral (inevitável, contudo). No segundo caso ocorre o oposto com a utilização parcimoniosa e frugal do espaço.
O argumento da comunicação entre iguais que refere, caríssimo MSP, faz algum sentido mas apenas numa óptica de fenomenologia, especialmente em relação ao ocultar total da face. Estou em crer, caro MSP, que na essencia será possível a comunicação e o conhecimento. De todo o modo, se o não for por pura expressão de liberdade, paciencia para ambos!!

Miguel Serras Pereira disse...

Caro e argutíssimo Justiniano,
duas objecções toscas ao seu elegante raciocínio.
1. Contrapor à "exposição" e "apropriação" da nudez e do coito a "frugalidade" e "ocultação" da burca é, se me permite, um contra-senso: a burca é e quer ser uma exposição clamorosa, exemplar, de uma reserva do rosto e do corpo dificilmente compatíveis com o (pré-)reconhecimento público da pessoa ou da sua dimensão comum e pública
2. A burca é uma barreira, senão interdito, explícito à comunicação e ao reconhecimento: equivale à transposição da clausura para o espaço comum e público que requer, enquanto é frequentado, a sua ruptura. É, e é esse o seu sentido e o seu efeito, uma clausura ambulante.
3. Ao contrário do que defendem os processualistas do denontologismo, é impossível excluir da deliberação das leis as razões e escolhas éticas substanciais.

Obrigado pelo seu reparo e pela ocasião que me deu de precisar o meu ponto de vista. Amistosamente

msp

P.S.O seu argumento marginal relativamente à "saúde pública" é um pau de dois bicos. A burca, desse ponto de vista, pode ser tão, senão mais, insalubre do que a nudez.

Justiniano disse...

Caríssimo MSP,
Tenho de conceder ao princípio da coerencia o seguinte.
Compreendo o que quer significar com "exposição da reserva" "clausura ambulante" mas conceder-me-á, também, caro MSP, a compreensão da "apropriação", "presença frugal e parcimoniosa"...
3 - perfeitamente de acordo!! É, aliás, essencial!

P.S. - Não sei, caro MSP, não estarei certo disso!!

Um bem haja,

Ricardo Noronha disse...

Quisera eu que toda a gente andasse nua no Verão e fodesse onde, como, com quem e quando bem entendesse. Precisamente, não vejo qualquer necessidade de limitar esses direitos.
Não acredito numa igualdade cuja aplicação dependa da autoridade do Estado. Apenas vejo nesta lei um instrumento de segregação e repressão sobre uma comunidade de imigrantes, sustentada na ideia de que há regras de convivência que deveriam ser universais. Mas precisamente, não são universais a partir do momento em que têm que ser impostas. Se é a liberdade das mulheres que se pretende, então este é seguramente o caminho menos indicado.
Mas o que resulta do teu comentário não é a preocupação pela liberdade das mulheres, mas o pressuposto de que as regras de convivência devem corresponder a um padrão de comportamento que é o teu, mas não necessariamente o de todos. A igualdade não pode ser construída por decreto.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Ricardo,
as regras são e serão sempre, em última análise e em matérias decisivas, impostas: tanto numa república de conselhos (que poderá também legislar contra a desigualdade e para garantir a sua igualdade constituinte). Que o modelo estatal de poder político actualmente dominante, assente na manutenção, reprodução e extensão da desigualdade fundamental e matricial associada à divisão do trabalho político, à distinção permanente e estrutural entre governantes e governados, bem como em relações de poder hierárquicas na condução dos aparelhos económico e produtivo, que esse modelo não seja o agente recomendável ou sequer possível para impor a igualdade, é uma questão diferente, e, tanto quanto vejo, não anula as minhas razões nem conforta as tuas.
Não me parece que seja condição de uma sociedade sem Estado, governada por cidadãos livres e iguais, a não existência ou a abolição de espaços e comportamentos reservados, a condenação de distinções e fronteiras entre esferas da existência, palavras ou actos não admitidos em certos contextos, etc. Pelo contrário, diria eu. De resto, é inconcebível também uma sociedade tanto sem interditos (o de matar, por exemplo:) e sem prescrições ou injunções imperativas (pegar em armas em defesa dos conselhos da república, serviços rotativamente prestados nos serviços de ordem e segurança, etc., por exemplo).
De qualquer modo, teremos ocasião de nos confrontar nos conselhos ou assembleias a propósito destas e de outras questões, contanto que comecemos por procurar instituí-los. Mas digo-te desde já que se pensas apresentar propostas que impliquem a permissão de fornicar durante as sessões deliberativas dos conselhos, revoguem a proibição do incesto, deixem os conteúdos das instituições de ensino ao puro e simples capricho dos educadores individuais, despenalizem os insultos e a difamação em todas as circunstâncias, terás de contar com a minha oposição denodada.
Falando mais gravemente: o tipo de indivíduo capaz de cidadania governante - capaz de se governar e participar nas decisões que o vinculam, sem sacralizar as normas a que obedece, nem as instituições que produz - não é dado pela natureza ou pela dinâmica do desenvolvimento das forças produtivas; é necessário formá-lo de acordo com certos critérios e certas imposições socializadoras que excluem outros critérios e modos de formação. Tais critérios e normas e a sua aprendizagem ou a socialização norteada por eles podem e devem ser objecto das deliberações dos conselhos da república, mas terão de existir e ser vinculativos sob pena de auto-destruição da autonomia democrática.
Aqui tenho a impressão de estarmos a retomar a discussão sobre a competição, a escolha entre alternativas rivais, etc. que o Vias acolheu a propósito do futebol. E, para já, é para ela que remeto.

Abraço para ti

miguel sp

Miguel Madeira disse...

Continuando com a minha mania das re-postagens, algo que escrevi há uns dias aqui no VdF e já tinha escrito antes no VS:

"[A] ideia que as mulheres usam burka obrigadas implica admitir que a comunidade muçulmana na Europa está cheia de homens bastante apegados às suas tradições de origem (e que por isso obrigam a mulher a usar a burka) e de mulheres culturalmente ocidentalizadas (e que por isso adorariam sair à rua sem burka) e que foram acabar casadas com esses homens tradicionalistas; como digo, é uma hipótese, mas acho muito mais provável que o grau de tradicionalismo entre homens e mulheres muçulmanas no Ocidente seja mais ou menos o mesmo e que a quantidade de homens que querem que a mulher use burka seja mais ou menos a mesma que a quantidade de mulheres que querem usar burka."