Mas como é que alguém que não entende que a masculinidade-convexa do touro mantém uma concupiscente – e invasiva das nossas vidas – relação com a concavidade-feminina do toureiro pode escrever sobre a tauromaquia? Como é que gente que nada conhece de Caravaggio se atreve, no fundo da sua ignorância e irresponsabilidade, a aplaudir a proibição das corridas de touros na Catalunha? E se aqui invoco o lombardo (sim, que eu mantenho com Caravaggio uma familiaridade homóloga à que instituí com os ingredientes da minha sopa), como já tenho feito várias vezes, é singelamente para demarcar uma clivagem pustulenta entre as massas obtusas e a minha pessoa. Esta gente nunca passou a língua pelas comissuras de um panejamento do lombardo. Esta gente aqui no meu post não entra! FORA!
Acham com que então que a tourada (termo estapafúrdio, aliás, impróprio de defensor da coisa) é só fiesta? Veremos adiante como é estulta essa (falta de) ideia. Cheguem-se ao pé, alminhas chãs, que eu vos ilustrarei.
Já Lacan intuiu o sexo como a clara e inelutável raiz quadrada de (-1). E como não ver na exaltação heróica da genitália de touros e toureiros a celebração desta quantidade radicalmente imaginária, sempre activa nas ramificações intersticiais do conflito concavidade-convexidade, a emergência de uma topologia contaminante, tendo como foco inicial a arena mas pronta a coalescer com todas as geografias em que nos movemos?
Está bom de ver que qualquer coisa que queiram retirar aos nossos hábitos de antanho visa reduzir-nos à nudez da biopolítica, retirando-nos ocasiões de sacralização da vida, em mais uma estação da famigerada putrefacção nazi-fascista. Isto apesar do apreço dos tais nazis pela caça e por tudo o que implicasse a assunção, por parte do ariano, de um lugar cimeiro numa sonhada escada da criação. Que interessa que eles até quisessem reflorestar toda a Ucrânia para nela erigirem a maior reserva de caça que o mundo já vira? Pensar nisso ainda me levava a ter de pensar no meu lindo argumento “proibição da festa brava ≈ nazismo”. E lá ficava sem assunto, eu que percebo tanto disto que até falo de “tourada” (note to self: eliminar este vocábulo pavoroso e nada tauromáquico) como um fenómeno que só na Ibéria foi sobrevivendo.
Ser contra “os touros” é ser fantoche do pestilento demo-liberalismo ou capital-parlamentarismo a que temos sido sujeitos ou sujeitados. É o triunfo da tal vida nua, que, como bem sabem o Agamben, o Taylor e o Rancière (este até o vi num dia no Campo Pequeno), já fora anatomizada em vários fragmentos de Heráclito («perder o caminho para a ponte é perder parte da ideia do que é a ponte»), como o não-devir incrustado na autonomização do nível límbico dos nosso sentidos, da nossa percepção; o automatismo que já nos domina desde os tempos primevos da simetria do blastocisto. E se ao juramento não corresponde hoje um enunciado mas apenas uma putativa eficácia (seja lá isto o que for, que agora já me baralhei um bocado), se calhar performativa e meramente instrumental, verdade é que esta é a parte do meio do post, onde me palpita que só 10% dos leitores iniciais chegam, portanto não há crise. Em resumo, a ideia que proponho é que esta coisa de liofilizarem a vida, de a pasteurizarem, é mesmo cena de fachos. Mais uma vez: não me expliquem, que não adianta, que a barbárie nazi em nada higienizava nem a existência nem a morte – ela não se importava de marchar de botas cardadas sobre o sangue e as tripas de todas as espécies que não fosse predadores de topo, desde touros a judeus, ciganos e homossexuais. A vida só seria rutilante e esterilizada nas cerimónias de celebração desse lugar especial do alemão: em comícios esmagadores ou em encenações cinematográficas da idílica pátria campestre (e mesmo esta sempre juncada de perigos alpinos e feras a caçar). Claro que execuções públicas ou pogroms eram coisas que perturbavam o sentido de ordem pública dos nazis mais exigentes, por isso quase nunca se viam naqueles tempos.
Por exemplo, e só para verem que ainda me deixam sacar livros lá da biblioteca, apesar do atraso do outro dia, o Giorgio Agamben apontou, no seu Estado de Excepção, para o facto de «as festas anómicas dramatizarem esta irredutível ambiguidade dos sistemas jurídicos». Dito isto, e pese embora a corrida ser dramaticamente estilizada, escusam as almas higiénico-fascistas de me responder, pois não estou bem a ver o que é que lhes diria. E só mesmo eu para me lembrar de escrever que entre Auschwitz e Guantánamo se consegue detectar um qualquer crescendo de ignomínia ou de debasement da vida quotidiana. Mas também já cheguei à parte onde só mesmo 0,8% dos leitores chegam, ainda para mais com o calor. Que se lixe; deixa mas é aumentar o corpo de letra para ver se acordo a malta.
Querem transformar-nos a todos em soldados SS, só por não nos deixarem ir a espectáculos onde espetam coisas em bichos!! Quem não gosta de touros é facho! E ainda por cima, até tresleu o pobre Agamben ainda mais dramaticamente do que eu!! Todos já para o Campo Pequeno!
NEOCONSLIOFILIZADOS: NUNCA VOCÊS HÃO-DE PERCEBER NADA DO LOMBARDO NEM DO RUIBARBO E MUITO MENOS DE PEGAS DE CERNELHA! E COMO É QUE SE DESLIGA ISTO DAS MAIÚSCULAS?
01/08/10
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3 comentários:
Os meus parabéns.
Uma bela descrição de um idiota erudito.
Como é que gente que nada conhece de Caravaggio se atreve, no fundo da sua ignorância e irresponsabilidade, a aplaudir a proibição das corridas de touros na Catalunha?
Estimado Sr. Rainha, depois de um estudo profundo do seu excelente texto como um passatempo quebra-cabeças, apoida pelo excelente Priberam, cheguei à conclusão que o Sr. é um grande cagão. Foi uma luz divina que me encaminhou para o bom caminho, tropecei no lombardo que realmente só conseguia associar à sua sopinha.
Continue, porque ajuda as minhas capacidades cognitivas. Um obrigada da Marota
GTBOS, Marota (esta não vem no Priberam).
Já agora, pode continuar a explorar os recursos desse "excelente" (??) dicionário e procurar "pastiche".
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