E, por falar em imprevisibilidade, estes acontecimentos lembram-nos ainda outra coisa quando olhados em comparação com a esquerda e os protestos que esta tão gentilmente nos tem proporcionado: até a polícia parece perceber que a imprevisibilidade é indissociável da política. O esforço que os organizadores das manifestações ditas inorgânicas (como lhes chamam aí pelos jornais) dedicam a controlar cada um dos gestos, passos e gritos dos manifestantes, diz muito sobre o seu entendimento da política e da sociedade (e também, porque não, sobre as pretensões de muitos dos seus membros). A tentativa de controlar totalmente um sujeito e de lhe impor uma ordem (seja esse sujeito colectivo ou individual) é a negação total da política; é, paradoxalmente, a substituição da política pela polícia. É, por isso, curioso constatar que a maioria das manifestações à esquerda tem tido “polícias” (tanto a organizá-las como a participar nelas) muito mais eficazes do que os próprios polícias profissionais.
Nenhuma destas aparentes contradições na acção da polícia (contradições que ajudam a expor o carácter anedótico das “nossas” manifestações) causaria qualquer perplexidade se não fosse uma espécie de tabu, para muita gente, aceitar que a polícia é a primeira a recorrer a meios de acção ilegais quando isso lhe é conveniente. E fá-lo sistematicamente, isto é, por lógicas derivadas do seu próprio funcionamento, o que é dizer que o recurso à ilegalidade não é algo que só acontece excepcionalmente (por exemplo, na conjuntura de “crise” em que vivemos) mas mesmo em tempos de suposta “estabilidade social”. Se é verdade que esse recurso à ilegalidade é em momentos como este mais evidente (e evidente para mais gente), é certo que ele acontece sempre.
A ausência de uma reflexão acerca do monopólio da violência pelo Estado e do funcionamento do seu aparelho repressivo permite que, entre outras coisas, se continue a criticar a violência ou a defender o pacifismo nas manifestações ao mesmo tempo que se aceita – mais ou menos plenamente – o recurso à violência por parte das forças da autoridade (ignora, desde logo, que o simples acompanhamento duma manifestação pela polícia já é em si uma forma de violência, pela demonstração de força que representa e sem a qual esta seria obsoleta).
O que aconteceu hoje sublinha, ainda, outra coisa igualmente tabu acerca da polícia (talvez ainda mais ignorada do que o resto), expressa geralmente no argumento de “que eles são pessoas como nós”. Se a frase em si é um truísmo, pois quem veste a farda da polícia é uma pessoa, a verdade é que acaba por esconder outros elementos fundamentais (e talvez o faça com tanta eficácia precisamente por ser algo aparentemente óbvio). Antes de mais, e ainda em jeito de anedota, neste caso particular coloca-nos a seguinte questão: se eles são como “nós” por que é que “nós” temos, e insistimos em ter, tanta dificuldade a fazer o que eles fizeram, i.e., desobedecer? Num registo mais sério, se é verdade que quem veste a farda de polícia é uma pessoa como “nós”, também temos que saber ver as particularidades de se ser polícia e aceitar que um polícia não é uma pessoa como outra qualquer. Tal como o controlo absoluto (ou a sua tentativa) é a negação da política e a sua substituição pela polícia, o polícia é, enquanto sujeito, a negação de toda a subjectividade política. Ser polícia é uma condição profissional derivada dum treino específico e altamente rigoroso que tem a obediência como seu ponto fundamental. Se a inculcação do sentido de obediência falhar na formação de um polícia, esta falha completamente e torna-se ineficaz enquanto instituição. Mais uma vez, a situação de hoje demonstra-o com clareza, ao revelar o peso dessa “condição profissional” sobre o sujeito, ou por outras palavras, demonstrando o peso que a farda tem (na medida em que, quando um polícia "veste a farda" e está a exercer a sua actividade profissional, é capaz de bater ou mesmo matar alguém que esteja a fazer algo que compreende ou até corresponde àquilo que ele próprio gostaria ou quereria estar a fazer; basta ser ordenado a fazê-lo). Um dos maiores paradoxos desta democracia (e um daqueles que a expõe como farsa) é precisamente o de a sua ordem ou regularidade funcional depender duma força construída com base no princípio da obediência, ou seja, algo que é a negação da própria democracia, da individualidade e do espírito crítico.
Finalmente - mas isto já não devia ser novidade para ninguém -, as manifestações e o recurso à desobediência por parte dos manifestantes não indiciam per se, como é óbvio, nada de revolucionário num sentido emancipatório e igualitário. Que uma entidade repressiva e autoritária - uma "força da ordem" - tenha sido aquela que mais rapidamente recorreu à desobediência numa manifestação, devia servir precisamente para nos chamar a atenção para a elevada probabilidade de qualquer transformação social poder resvalar para um pesadelo ainda maior do que aquele que vivemos. E digo isto não só pelo sentido de alerta que devia surgir em quem deseja e luta por um mundo melhor, mas, especialmente, porque esse pesadelo parece um cenário mais provável do que qualquer outro.
O que aconteceu hoje sublinha, ainda, outra coisa igualmente tabu acerca da polícia (talvez ainda mais ignorada do que o resto), expressa geralmente no argumento de “que eles são pessoas como nós”. Se a frase em si é um truísmo, pois quem veste a farda da polícia é uma pessoa, a verdade é que acaba por esconder outros elementos fundamentais (e talvez o faça com tanta eficácia precisamente por ser algo aparentemente óbvio). Antes de mais, e ainda em jeito de anedota, neste caso particular coloca-nos a seguinte questão: se eles são como “nós” por que é que “nós” temos, e insistimos em ter, tanta dificuldade a fazer o que eles fizeram, i.e., desobedecer? Num registo mais sério, se é verdade que quem veste a farda de polícia é uma pessoa como “nós”, também temos que saber ver as particularidades de se ser polícia e aceitar que um polícia não é uma pessoa como outra qualquer. Tal como o controlo absoluto (ou a sua tentativa) é a negação da política e a sua substituição pela polícia, o polícia é, enquanto sujeito, a negação de toda a subjectividade política. Ser polícia é uma condição profissional derivada dum treino específico e altamente rigoroso que tem a obediência como seu ponto fundamental. Se a inculcação do sentido de obediência falhar na formação de um polícia, esta falha completamente e torna-se ineficaz enquanto instituição. Mais uma vez, a situação de hoje demonstra-o com clareza, ao revelar o peso dessa “condição profissional” sobre o sujeito, ou por outras palavras, demonstrando o peso que a farda tem (na medida em que, quando um polícia "veste a farda" e está a exercer a sua actividade profissional, é capaz de bater ou mesmo matar alguém que esteja a fazer algo que compreende ou até corresponde àquilo que ele próprio gostaria ou quereria estar a fazer; basta ser ordenado a fazê-lo). Um dos maiores paradoxos desta democracia (e um daqueles que a expõe como farsa) é precisamente o de a sua ordem ou regularidade funcional depender duma força construída com base no princípio da obediência, ou seja, algo que é a negação da própria democracia, da individualidade e do espírito crítico.
Finalmente - mas isto já não devia ser novidade para ninguém -, as manifestações e o recurso à desobediência por parte dos manifestantes não indiciam per se, como é óbvio, nada de revolucionário num sentido emancipatório e igualitário. Que uma entidade repressiva e autoritária - uma "força da ordem" - tenha sido aquela que mais rapidamente recorreu à desobediência numa manifestação, devia servir precisamente para nos chamar a atenção para a elevada probabilidade de qualquer transformação social poder resvalar para um pesadelo ainda maior do que aquele que vivemos. E digo isto não só pelo sentido de alerta que devia surgir em quem deseja e luta por um mundo melhor, mas, especialmente, porque esse pesadelo parece um cenário mais provável do que qualquer outro.
4 comentários:
belo texto.
bibliografia sobre o monopolio da violencia pelo estado?
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Que se foque criticamente e a fundo na questão do monopólio da violência pelo Estado, não me recordo de nada assim de repente. Mas há várias coisas que não sendo especificamente sobre o monopólio da violência pelo Estado ajudam a pensá-lo (até porque tocam quer no papel da violência para o Estado, quer no uso da violência além do Estado). Recordo-me imediatamente do ensaio de Walter Benjamin "Critique of Violence" (está traduzido para português e em inglês encontra-se facilmente online) e do livro A Sociedade Contra o Estado, do antropólogo Pierre Clastres (numa linha parecida, o The Art of Not Being Governed, de James C. Scott, também toca no assunto, assim como outros livros da sua obra).
O último nr. da revista Imprópria (da Unipop) tem um dossier sobre violência com textos que também tocam no assunto e, a propósito dele, a Unipop tem programado para o dia 7 um seminário chamado "Pensamento Crítico Contemporâneo e Violência". Pode-se saber mais aqui: http://www.unipop.info/index.php
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