(…) A alocação universal (allocation universelle) é definida como um "rendimento social primário distribuído igualitariamente de modo incondicional", e entendida como "rendimento de cidadania", ou, por outras palavras "como um 'direito-crédito' do cidadão frente à sua comunidade". Este rendimento seria "distribuído de modo igualitário e incondicional aos cidadãos maiores da União Europeia", e a sua percepção pelos indivíduos não dependeria, portanto, da sua situação social (empregados ou desempregados, grandes proprietários ou serventes da construção civil, por exemplo). No entanto, sendo o abono universal um rendimento primário, o seu montante bruto integrar-se-ia de parte inteira no rendimento eventualmente tributável dos contribuintes. Assim, só disporiam, de facto, da totalidade desse montante os indivíduos cujos rendimentos (incluindo o abono) não atingissem o primeiro escalão inferior tributável, ao mesmo tempo que o mesmo quantitativo seria "tanto mais largamente amputado pelo imposto quanto mais elevados fossem os rendimentos a que se adicionasse" — ou seja: alguns disporiam da totalidade do abono universal, outros seriam tributados num valor que poderia ser próximo, igual ou superior ao da totalidade do montante respectivo.
Dito isto, J.-M. Ferry pensa que, num primeiro tempo, a título provisório e visando essencialmente a adopção do princípio do "rendimento de cidadania", o montante deste deveria situar-se "em torno de uma linha de 15 por cento dos PNB (…)
(…) Seja como for, o que conta aos olhos de J.-M. Ferry é sobretudo a possibilidade de a alocação universal servir como meio de desenvolvimento daquilo a que ele chama um "sector quaternário de actividades autónomas pessoais e não-mecanizáveis", cuja existência deverá ser apoiada por medidas políticas e protecções fiscais. Este sector é-nos também apresentado como sector potencialmente crítico e reflexivo, tendo por vocação promover o avanço de uma economia social e da participação, segundo as inclinações e as prioridades de cada um, nos mais diversos movimentos sociais (luta contra a exclusão, intervenções em defesa do ambiente, animação cultural comunitária, por exemplo). Assim, J.-M. Ferry escreve: "não milito pelo abono universal em si mesmo, mas visando as finalidades de participação e de integração social", às quais o sector quaternário abrirá caminho, tanto mais que o rendimento de existência (combinado com o reforço dde certos dispositivos como o "salário mínimo") permitirá uma maior independência dos indivíduos frente ao mercado de trabalho. Ao contrário, de resto, daquilo que vale no que se refere à definição dos outros sectores (primário/produção agrícola; secundário/indústria; terciário/serviços…), o sector quaternário não se define pelo que produz, mas "pelo facto de as suas actividades serem actividades pessoais e autónomas".
Em resumo (…) parece-me poder adiantar agora que a criação de uma alocação universal, acompanhada de medidas de protecção e promoção de um sector quaternário, se mostra insuficiente para a inversão da ordem dominante de prioridades no que se refere à articulação entre as dimensões da economia, por um lado, e, por outro, da cidadania. De facto, os cidadãos de uma democracia, enquanto iguais em relação ao poder, devem poder participar de modo também igualitário na definição do lugar e do valor da economia, quer dizer na definição daquilo que a sua economia deve produzir, colocar no mercado, atribuir a cada um como rendimento em função dos recursos disponíveis, fixar-se como fins prioritários. O que implica uma democratização da economia política muito mais profunda que as medidas de "repartição primária social igualitária" de que nos fala o nosso filósofo.
De resto, é de sublinhar o contraste impressionante entre, por um lado, certos passos da análise que J.-M. Ferry nos propõe dos impasses da ordem económica actual e, por outro lado, as suas conclusões programáticas. Num livro de 1992, publicado em 1991 sob o título Les Puissances de l'expérience. Essai sur l'identité contemporaine (Paris, Cerf, 2 vols.), podemos ler que, ao contrário de uma ideia feita muito difundida, "(…) não existe de facto qualquer chave económica (…) de repartição do rendimento global (…) ninguém pode dizer em que é que uma hierarquia dos rendimentos assenta em termos económicos — porque é que (…) o rendimento primário de certa categoria se relaciona com outros rendimentos segundo este ou aquele coeficiente multiplicador", e assim por diante. Dir-se-ia que esta análise dos "absurdos da repartição actual" denunciados pelo autor deveria conduzir-nos a propostas um pouco mais radicais de repolitização democrática da economia — do tipo, por exemplo, das que Castoriadis apresenta (e eu aqui retomo em grande medida) nos dois textos chamados "A 'racionalidade' do capitalismo" e "Que democracia?"(cf. Les Figures du pensable, Paris, Seuil 1999). Por outras palavras, se o critério de repartição dos postos de decisão da actividade económica e dos rendimentos dos cidadãos não pode fazer valer em seu favor nem a objectividade do cálculo económico nem a deliberação explícita do debate democrático, mas, quando muito, certas relações de força mais ou menos institucionalmente cristalizadas, então torna-se necessário democratizar em profundidade todo o campo da economia e definir em novos termos o seu lugar na vida tanto dos indivíduos como da sociedade.
(…)
Mas voltemos às teses de J.-M. Ferry e à dissociação parcial que preconizam entre trabalho e rendimento, tendo em vista a emergência de um sector quaternário. A dissociação faz-se, na realidade, entre rendimento de actividade económica e rendimento de existência, deixando portanto intacta a divisão entre os que se integram no mundo da economia global mundializada, através de um trabalho-emprego e/ou do desempenho de funções de concepção, coordenação e direcção na esfera produtiva, e os que são mais ou menos excluídos desta esfera e cujo rendimento é garantido pela alocação universal e pelas actividades no espaço, economicamente menor, da "economia social".
Este quadro obriga-nos a enfrentar, contudo, a seguinte alternativa: — ou a alocação universal confortará a economia estabelecida, quer dizer a sua autonomização relativamente ao espaço público da deliberação/decisão democrática, a sua racionalidade instrumental, caso em que o sector quaternário será reduzido a funcionar como uma válvula de segurança; — ou o desenvolvimento dos ector quaternário e da economia social entrará em conflito com o funcionamento da grande economia dominante e não poderá deixar de empreender, para o dizermos assim, a sua "quaternarização" generalizada. É evidente que esta segunda hipótese se torna inverosímil a menos que a instauração do abono universal seja acompanhada, desde o início, por medidas e lutas políticas visando "quaternarizar" o conjunto da actividade económica. Bem entendido, quando falo de "quaternarizar" não penso numa esfera produtiva relavando apenas, no seu conjunto, das actividades não-mecanizáveis pessoais e autónomas a que J.-M. Ferry se refere. Tenho antes em vista a dimensão "crítica e reflexiva" em cujos desenvolvimento e extensão, reanimando a participação social e política dos cidadãos, o nosso filósofo também aposta. E tenho igualmente em vista qualquer coisa como essa "autolimitação consciente do domínio reservado à produção e ao trabalho", de que nos fala um texto de Habermas, e que, bem mais radicalmente do que este último parece pensar, nos aponta o caminho daquilo a que chamo aqui uma repolitização democrática (…) da economia política.
Esta repolitização passaria, entre outras coisas e muito esquematicamente, por
— uma democratização das empresas, atribuindo à deliberação dos trabalhadores as normas de gestão e o conjunto da organização das actividades;
— uma democratização do mercado que tornasse o seu modo de funcionamento uma garantia da verdadeira soberania dos consumidores (Se J.-M. Ferry justifica a criação de uma alocação universal como medida comparável à da instituição do sufrágio universal, deveremos ter presente, como de há muito acentuou Castoriadis, que a transposição da lógica "um eleitor, um voto" implica uma igualização sem rodeios dos rendimentos dos que "votam" no mercado);
— a par da democratização dos rendimentos e da consagração de sectores de experimentação/inovação no quadro da actividade económica, uma partilha igualitária do trabalho necessário para satisfazer quer as exigências do mercado quer as necessidades colectivas devidamente avaliadas pelo autogoverno dos cidadãos;
— por fim, em vista da instituição deste autogoverno, e enquanto condição de todos os pontos anteriores, a publicização democrática do exercício do próprio poder político, segundo as grandes linhas atrás delineadas.
Chegado a este ponto, estou bem consciente da objecção quase automática que muitos oporão a esta defesa da repolitização democrática da economia. Com efeito, a ideia de uma autolimitação cosnciente do domínio do trabalho e da produção equivale, segundo o imaginário dominante, a ignorar as leis, ou a destruir as molas reais, da própria economia. Porque, há quem no-lo explique, se confiarmos ao conjunto dos cidadãos o poder de decidir dos limites do domínio da produção e da repartição dos rendimentos, a tendência para a igualização que assim se afirmaria não poderia deixar de levar à destruição do conjunto das motivações e dos incentivos que levam ao trabalho, à inovação, e assim por diante.
No entanto, o argumento não colhe a não ser na medida em que tenhamos por adquirido que a economia estabelecida é a única possível. E é bem verdade que a autolimitação consciente do seu domínio anula o princípio da autonomização da economia — por outras palavras, despoja da sua centralidade a significação imaginária da expansão ilimitada das forças produtivas. Mas, dito isto, não se vê porque é que os seres humanos, na ausência da escala dos rendimentos e do poder de direcção hoje existente, não poderiam sentir-se motivados pela definição de objectivos ligados ao trabalho, à inovação, à investigação, formação e aperfeiçoamento tecnológicos críticos. Destruir a motivação económica hoje instituída e colectivamente investida seria, para cada um de nós, libertar a afirmação de si próprio de uma subordinação redutora, de uma via única de expressão, que a empobrece e nos uniformiza. E por outro lado, o próprio desejo de nos distinguirmos dos outros, com a emulação que esse propósito pode comportar, deixaria reduzir-se a nada por ser vedado fosse a quem fosse fazer deles seus subordinados? Em suma, a recusa com conhecimento de causa da presente hierarquia dos rendimentos e dos estatutos de direcção, essa recusa bem elucidada nas suas razões, não significaria antes uma extensão inédita do papel das satisfações intrínsecas do trabalho e da vocação individual dentro e fora dele, do direito à diferença e da expressão da singularidade de cada um?
E, no imediato, quanto à proposta de um rendimento de cidadania, tal como a formula Jean-Marc Ferry? Pois bem, mantendo todas as críticas até aqui adiantadas, parece-me ser um bom tema de discussão, sobretudo quando temos presente que a ideia de criar uma alocação universal pode não ser apresentada como um fim em si própria, mas como um primeiro passo no sentido da democratização da economia e do poder político que, ao seu nível, se exerce. Por discussão, evidentemente, deve entender-se um debate público e alargado tanto sobre os seus objectivos e pressupostos como sobre o seu montante. Se se trata de instituir um rendimento de cidadnia, é preciso antes do mais dar a palavra aos cidadãos, cabendo a estes pronunciar-se.
Assim, o debate sobre a instauração do abono universal, enquanto medida imediata, poderia talvez contribuir para a emergência de um espaço público alargado e renovado, tendendo a institucionalizar a sua própria legitimidade e a empreender, contra a actual divisão do trabalho político, a criação de formas alternativas que promovam a participação igualitária dos cidadãos no exercício do poder.
6 comentários:
Caro Miguel,
Não discordo em nada do que tu escreves. Julgo que a tua crítica principal é que a instauração dum rendimento garantido não é suficiente. Concordo.
Mas, ao contrário de outras medidas, que por si só são progressistas e louváveis pelos seus efeitos imediatos - e permitir as condições mínimas de sobrevivência a todos não é de desprezável - o rendimento garantido tem também a capacidade para abalar profundamente os alicerces do actual sistema capitalista. Não só em termos económicos, mas também do ponto de vista ideológico. O capitalismo só é viável quando existe não só a necessidade de trabalhar (de "vender o trabalho") para sobreviver, mas também uma "ética do trabalho", que des-legitimiza e estigmatiza todos os que não trabalham. Em conjunto, contribuem com para que haja uma mole humana que produz e permite a acumulação capitalista. O que aconteceria se cada vez mais pessoas parassem de trabalhar em retorno dum salário? O que aconteceria se cada vez mais pessoas tivessem a possibilidade real de bater a porta perante a imposição hierárquica, ou fazer greve, sem receio de cair na indigência em caso de despedimento? O que aconteceria se cada vez mais espaços não-capitalistas pudessem ser criados, que servissem de contraponto à alienação da sociedade capitalista assente na alienação pelo consumo?
Eu sei que também há apoio à instauração dum rendimento garantido entre aqueles que apoiam o sistema capitalista. Acreditam de tal maneira no poder da alienação da sociedade de consumo, que acham que um rendimento garantido teria a dupla vantagem de promover a produção (estimulada pelo "consumo garantido") e anular a perturbação social resultante do medo de se cair na indigência. Não se apercebem que: (1) o potencial de domesticação pelo consumo já teve melhores dias; (2) não é quem tem de lutar diariamente pela sua sobrevivência que produz revoluções - são muitos mais perigosos aqueles que têm tempo para pensar, planear, ocupar, agitar. Não será a instauração dum rendimento mínimo que acabará com muitas das injustiças que caracterizam o sistema capitalista, desde o sistema hierárquico de decisão a todos os níveis, à desigualdade de rendimento. Donde não há que recear o desaparecimento da "necessidade revolucionária".
Eu gostaria imenso que a revolução fosse já amanhã, e tudo aquilo que mencionas pudesse tornar-se realidade. Estamos assim tão perto dela ter lugar que podemos realmente desprezar o potencial destabilizador do modelo capitalista duma medida como o rendimento garantido? Eu acho que não.
Abraço,
Pedro
Caro Pedro,
também eu concordo contigo, mas com uma reserva: é que se não devemos ignorar as potencialidades "desestabilizadoras" do "rendimento de cidadania", não podemos tembém ignorar as suas potencialidades de consolidação do capitalismo. Dito isto, relê a minha conclusão (de 1999), e verás, espero, que procuro não pecar por "extremismo".
Abraço para ti
miguel(sp)
Sim, é verdade. Não sabemos verdadeiramente qual seria o impacto dum rendimento garantido, com um valor suficientemente elevado para permitir a sobrevivência, à escala duma economia. Apenas experiências locais tiveram lugar, ou então com valores abaixo do necessário para viver condignamente. Por alguma razão há quem também apoie o rendimento garantido à Direita (mas são muito minoritários…). Saberemos quando essa experiência for feita. Acho que vale a pena fazê-la, nem que seja pelo seus efeitos óbvios sobre o bem-estar das pessoas com menos recursos.
Abraço,
Pedro
Sendo eu um defensor do rendimento básico incondicional, tenho que reconhecer que a sua existência no Alasca não parece ser grande desestabilizadora para o capitalismo local (a Sarah Palin não é exatamente uma Rosa Luxemburgo).
Caro Pedro,
evidentemente que, mantendo-se todas as outras condições idênticas, a instauração do rendimento básico universal melhoraria a situação das pessoas com menos recursos. Mas, numa perspectiva mais ampla e mais realista, devemos ter presente que, até mesmo no curto prazo, caso essa instauração da alocação ou abono universal fosse acompanhada de medidas de restrição das prestações eprotecções sociais universais (saúde, ensino, reformas e pensões, etc.) e da desregulamentação do mercado de trabalho, etc., etc., os seus efeitos benéficos aparentes se tornariam de facto uma cortina de fumo escondendo uma deterioração ainda maior das condições de existência dos "desfavorecidos" do costume - e abrindo caminho a uma dualização ainda maior entre os grupos integrados e os "assistidos" .
A minha oposição não é a uma medida que, no fundo, equivalha a garantir um rendimento mínimo e a aumentar o montante deste. O que procuro mostrar é que a "universalidade" da medida pode facilmente ser instrumentalizada como justificação das desigualdades e barreira contra políticas mais efectivas e mais efectivamente universais de igualização dos rendimentos.
Abraço
miguel(sp)
Caro Miguel M.,
No Alasca não existe propriamente um rendimento garantido incondicional, tal como é habitualmente definido. O que existe é um pagamento único, anual, flutuante em valor de ano para ano, que nunca excedeu pouco mais de 3000 dólares. Ou seja, é muito diferente dum pagamento mensal, estável em valor (que permita fazer planos a médio-longo prazo), e suficientemente elevado para que dispense totalmente a obtenção de rendimento através do trabalho para que alguém consiga sobreviver (condignamente). Daí não ser de espantar que o pagamento no Alasca praticamente não tenha tido efeitos do ponto de vista económico (para além de alguma estimulação keyseniana) ou social (apesar de ser importante nas zonas mais rurais do Alasca, onde a economia é ainda muito informal, não-monetária). Este artigo descreve bem o que se passa no Alasca:
http://www.iser.uaa.alaska.edu/Publications/bien_xiii_ak_pfd_lessons.pdf
Caro Miguel S.P.,
Todas as medidas ou acções podem ser instrumentalizadas, duma maneira ou outra, de modo a que o seu resultado não seja aquele que desejaríamos. Está nas nossas mãos assegurar que as suas consequências são aquelas que pretendemos. Não é possível delinear nenhuma estratégia à prova de desvios. De outro modo a revolução já estava feita! :0) Sinto algum medo de arriscar à Esquerda, como se houvesse quem se sinta encurralado numa estratégia de mera resistência que acabará por sucumbir à ofensiva das classes capitalistas. O que é preciso é tentar destabilizar o sistema, de diversas maneiras, umas "legais" e usando os mecanismos dos sistema, e outras "ilegais", sabotando os mecanismos do sistema. Há um risco de algo pior ainda daí resultar? Sim. Sempre houve. Nenhuma revolução, nenhuma tentativa de alteração radical dum sistema político/sócio-economico, tem resultado garantido. Por exemplo, revolução soviética poderia ter resultado na instauração dum sistema de decisão e administração democrática baseada nos sovietes. Acabou num regime autoritário, fortemente hierárquico, anti-democrático.
Abraços,
Pedro
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