20/07/10

A crise do valor


Reza a lenda que, algures na década de 70, um punhado de anarquistas (os anarquistas são quase sempre um punhado) assaltou a sede do MRPP em Coimbra e de lá subtraiu várias edições das obras escolhidas dos mestres do marxismo-leninismo. No dia seguinte, quem passasse pela baixa poderia adquirir um exemplar de O Capital cuja lombada escondia um interior integralmente composto por tabuadas. Cheios de piada, os camaradas anarquistas (os anarquistas são quase sempre camaradas).
Hoje em dia seria mais difícil repetir a proeza. A economia política saiu de moda e a sua crítica é cada vez mais difícil de encontrar. Debates sobre a lei do valor, a subsunção do trabalho no capital ou a passagem da mais valia absoluta à mais valia relativa não costumam gozar de boa fama no seio da esquerda revolucionária portuguesa e prestam-se a caricaturas fáceis. O facto de só agora ter sido editado o Livro II de O Capital também tem o seu impacto no estado do debate, que corre aqui mais lenta e limitadamente do que noutras partes. Respondendo porém ao repto que nos foi lançado pelo João Valente Aguiar (um dos nossos leitores mais assíduos), procurei iniciar aqui qualquer coisa que se assemelhasse a esse debate. Como isto é coisa que só interessa a alguns sisudos comunistas, o resto continua abaixo.
Sustenta o João que "as empresas capitalistas que fabricam produtos que aplicam grandes doses de conhecimento conseguem manter o seu esquema de lucratividade idêntico aos de outras firmas com produtos que aplicam menos conhecimentos (o que só prova que o esquema de transformação de valores em preços de produção e destes em preços de mercado se mantém válido)". Há aqui uma evidente confusão entre produção de valor e obtenção de lucros. Duas empresas podem obter lucros  idênticos produzido valores muito diferentes, precisamente devido aos mecanismos de formação dos preços.
Imaginemos dois pares de ténis (ou, como dizem os super dragões, sapatilhas) absolutamente iguais, da mesma marca. Um é fabricado na Índia e outro em Portugal. Se ambos concorrerem no mesmo mercado e a oferta for ilimitada, o seu preço deverá ser idêntico. Mas o valor de um e de outro é à partida distinto porque o nível de necessidades históricas da classe trabalhadora portuguesa é bastante superior ao da indiana e logo o custo de produção de um par de ténis em Portugal será também superior e logo o valor dos ténis será também superior. O empresário que investiu em semelhante produção e que se vê forçado a vender esses ténis em concorrência com o empresário que preferiu investir na Índia obterá necessariamente uma taxa de lucro inferior. Mas até poderíamos imaginar a situação em que este empresário vende mais pares de ténis (muitos mais) do que o empresário que investiu na Índia. Apesar da sua taxa de lucro ser inferior, a massa de lucro poderia ser igual ou superior. Assim, os  resultados dessa empresa poderiam até ser semelhantes aos da sua congénere indiana, mas estaríamos a falar de valores diferentes com preços idênticos e lucros semelhantes.
Este é porém um cenário altamente improvável e é aqui que entram outros factores, nomeadamente a economia dos meios de produção e a incorporação de conhecimento na forma de tecnologia. Se o empresário português quisesse concorrer à séria com o empresário indiano, ver-se-ia forçado a investir no sentido de aumentar a produtividade dos seus trabalhadores, reduzindo o valor incorporado em cada um dos ténis que produz. Aumentando a composição orgânica do capital, reforçando o capital fixo em relação ao capital variável, esse empresário poderia suportar os custos salariais mais elevados e ainda assim obter uma taxa de lucro superior. A sua margem para baixar os preços seria maior e poderia levar à falência o seu congénere indiano. O valor unitário de cada mercadoria baixaria, mas a massa de valor produzido aumentaria exponencialmente (admitindo que as mercadorias se vendessem, evidentemente) e, sobretudo, a fracção desse valor apropriada pelo empresário seria exponencialmente mais elevada. Em vez de um acréscimo absoluto da exploração da mais valia (pela redução salarial ou aumento do horário) ter-se-ia passado a um acréscimo relativo da exploração da mais valia (pela redução do trabalho necessário).
Uma vez aqui chegados - ou seja, admitindo uma tendência histórica do capital para a desvalorização do trabalho vivo através da redução do tempo necessário à produção de uma dada mercadoria - temos forçosamente que nos confrontar com a natureza histórica e dinâmica da lei do valor, incluindo a hipótese de o seu funcionamento entrar em crise. Até aqui tenho abordado apenas aspectos relativamente mecânicos da lei do valor sem ter em conta todos os elementos políticos que contribuem para o seu funcionamento. Evidentemente que nada há de automático ou "natural" no que acima denominei de "nível de necessidades históricas da classe trabalhadora". Esse nível é, pelo contrário, inteiramente determinado pelo antagonismo entre trabalho e capital, pela luta de classes na sua acepção histórica, dinâmica e imprevisível. Até ao 25 de Abril, a classe trabalhadora portuguesa passava frequentemente fome. Nos anos Oitenta ainda se escrevia nas paredes "Há fome, Soares". E Pedro Passos Coelho el all preparam-se para nos pôr a competir com chineses e mexicanos na produção de embalagens de cornetto e porta chaves da Shakira. A crise da lei do valor é portanto um resultado da luta da classe trabalhadora. Um resultado que tem, por sua vez, vários resultados.
Cito uma longa passagem de Marx citada por Negri em O Partido Operário contra o trabalho (1973):
À medida que se desenvolve a grande indústria, a criação da riqueza real depende cada vez menos do tempo de trabalho e da capacidade de trabalho empregue e cada vez mais da potência dos agentes colocados em acção durante o tempo de trabalho, e que por sua vez – é esta a sua powerfull effectiveness – não estão minimamente relacionados com o tempo de trabalho imediato que custa a sua produção, mas dependem pelo contrário do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação desta ciência à produção… A riqueza real manifesta-se pelo contrário – e é este o sinal da grande indústria -  na enorme desproporção entre o tempo de trabalho empregue e o seu produto, como também na desproporção qualitativa entre o trabalho reduzido a uma pura abstracção e a potência do processo de produção que este controla. Já não é tanto o trabalho a apresentar-se como incluído no processo de produção, mas muito mais o homem a relacionar-se com o processo de produção como controlador e regulador. (Aquilo que se disse das máquinas vale também para a combinação das actividades humanas e para o desenvolvimento das relações humanas.) O operário não é mais aquele que insere o objecto natural modificado como membro intermédio entre o objecto e ele mesmo: mas antes aquele que insere o processo natural, que ele transforma em processo industrial, como meio entre ele mesmo e a natureza inorgânica, da qual se apropria. Coloca-se ao lado do processo de produção, em vez de ser o seu agente principal. Nesta transformação não é nem o trabalho imediato, seguido pelo próprio homem, nem o tempo que este trabalha, mas a apropriação da sua produtividade geral, a sua compreensão da natureza e o domínio sobre esta através da sua existência de corpo social – numa palavra, é o desenvolvimento do indivíduo social que se apresenta como a trave mestra da produção e da riqueza. O furto do tempo de trabalho alheio, sobre o qual se funda a riqueza actual, apresenta-se como uma base miserável em relação a esta nova base criada pela própria grande indústria. Não apenas o trabalho de forma imediata deixou de ser a grande fonte de riqueza, como o tempo de trabalho deixa e deve deixar de ser a sua medida, e assim o valor de troca deve deixar de ser a medida do valor de uso. A mais valia da massa deixou de ser a condição do desenvolvimento da riqueza geral, assim como o não trabalho de poucos deixou de ser condição do desenvolvimento das forças gerais da mente humana.
(Grundrisse, pp.87-88 da versão italiana. Infelizmente não existe uma versão portuguesa para a qual remeter. A tradução do italiano é minha)
É com base nesta hipótese de uma crise da lei do valor, provocada pelo seu próprio desenvolvimento, que Negri aborda o impacto do trabalho imaterial sobre as modernas condições da acumulação capitalista. Se para além do preço do par de ténis admitirmos que existem outros factores concorrenciais - o design,  o planeamento, o marketing, a distribuição, etc... - então chegamos à conclusão de que um dos mecanismos de contrapeso à crise da lei do valor é precisamente a crescente incorporação de elementos imateriais nas mercadorias. Reparem bem, não se fala apenas do emprego de tecnologia para reduzir os custos de produção, mas do uso de elementos simbólicos que levem um consumidor a preferir uns head-phones da Sony em vez de uns head-phones da Sonia (eu por sinal tenho uns que não funcionam bem nem mal, antes pelo contrário). E aqui ainda estamos a falar de mercadorias perecíveis. O que leva alguém a preferir a TMN à Vodafone quando as tarifas são praticamente idênticas? Qual o valor de uma chamada telefónica ou de uma mensagem de texto? Elas são cobradas, mas sabemos que a relação entre o seu preço e o seu valor é problemática quando vemos as operadoras a prometer 1000 sms's grátis a quem pagar 5€ adicionais. Qual o valor de um tratamento oncológico ou de uma performance teatral? Ou de um artigo de jornal? Ou de uma fotografia?
Que o conhecimento também pode ser transformado em mercadoria e que o trabalho imaterial ainda é tendencialmente trabalho assalariado não carece de discussão. Já as implicações dessa transformação é que me parecem fundamentais. É que se deixa de existir uma relação clara entre o preço de uma mercadoria e o trabalho nela incorporado - e aqui, num comentário lateral, importa dizer que o valor enquanto tempo de trabalho foi apropriado por Marx a partir de David Ricardo sem grandes modificações, ao contrário do que sugere o comentário do João - o funcionamento da lei do valor passa a ser aleatório e o potencial produtivo do trabalho socialmente combinado parece ilimitado. Estão reunidas as condições materiais para a afirmação do modo de produção comunista e o princípio geral  "de cada um segundo as suas capacidades ,a cada um segundo as suas necessidades" pode imperar sem a necessidade de uma longa fase de transição socialista. A crise da lei do valor é também a crise da política enquanto esfera autónoma, a crise da divisão social do trabalho, a crise da separação entre produtores e meios de produção.
Como isto já vai longo e temo não poder desenvolver convenientemente as hipóteses deste último parágrafo, deixo o resto para a caixa de comentários. Até já.

36 comentários:

João Valente Aguiar disse...

Tenha paciência, não tem que ver consigo, mas não vou comentar mais neste local. Aliás, nem devia ter regressado, como na altura antevinha, depois de certos desaguisados com outros protagonistas deste local, e só voltei a seu "convite" - cordial, diga-se - por causa da teoria do valor.

Brevemente terei qualquer coisa sobre o assunto publicada por aí.

Como já dizia o outro:
"Segui il tuo corso, e lascia dir le gentil".

Ricardo Noronha disse...

É caso para dizer que mais-valia ter ficado calado. Cá estarei para ler e criticar.

Luis Rainha disse...

A hipótese "deixa de existir uma relação clara entre o preço de uma mercadoria e o trabalho nela incorporado" parece partir do princípio que a atribuição de conteúdos simbólicos e estéticos (começando logo no design) não acarreta a incorporação e trabalho. É essa a tua ideia?
É que esse trabalho é (em grande parte) replicável de forma mecânica, mas também tende a ser remunerado de forma bastante "generosa".

Justiniano disse...

É bem verdade, caro Noronha! Como um interessante tema, inteligentemente colocado e enunciado, devo referir, pode ser, aparentemente por nada, diminuído ou desconsiderado!!
Pena!

Permita-me apenas uma questão.
Qual a hipótese da menos-valia e da produção de não valor dentro da teoria do valor de Marx!?

stipouff disse...

Ricardo,espero sinceramente que não te cales sobre este assunto. Foi sempre com prazer que te leio, aqui e noutros lugares, e embora os teus textos aqui sejam um pouco mais "indegestos" devido ä minha condicão de macarica de ciencia politica, é com a ajuda deles que as minhas ideias amadurecem... eh claro que sem contra-argumentacao (ou com a contra-argumentacao que vive de lamber egos feridos) nao se vai a grande lado... enfim, triste sina!

Niet disse...

Ricardo Noronha: O debate- que já vinha da Comuna do 5 Dias, de Novembro 2009 a Março 2010- só não se aprofunda, qualifica e cresce devido a " perfumes " de humor e desamor sustentados por um dos criadores/gestores do v. Blogue. Espero que tudo regresse à normalidade. Eu preparo-me afincadamente. E até descobri, últimamente, em textos de Marx e Engels, que a " violência é um agente económico ". As repercussões desta tese fantástica impõem um relacionamento claro, transparente e igualitário entre os intervenientes mesmo que, por vezes, como Bakounine fazia com os seus amigos em Paris, Londres e Berlim,as palavras se confundam com punhos. Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Ricardo,
não tenho tempo senão para deixar duas ou três pistas sobre a necessidade de desmistificação da objectividade das leis económicas ou da economia como ciência rigorosa, quantificável, permitindo previsões controláveis, etc.
1. Sem dúvida, existe uma espécie de lei fundamental do capitalismo que estipula que os detentores do capital se apoderem de uma parte do produto. Esta lei não é tanto uma lei económica objectiva como uma norma, sem a qual o capitalismo não funciona - e a norma é imposta institucional e politicamente.
2. A repartição desigual do produto é resultado de relações de força ou de poder, e a remuneração do trabalhador, bem como as diferenças entre as várias remunerações, corresponde a uma cristalização particular e a uma relativa estabilização dessas relações de poder. É, com efeito, absolutamente impossível calcular a contribuição quantitativa de cada um para o produto social considerado em termos globais.
3. Nada disto anula a existência da exploração nem a pertinência do conceito.
4. Mas faz com que a redução da força de trabalho a mercadoria, conforme prescreve o imaginário e a ideologia capitalista, não seja efectivamente possível a não ser como tendência e seja politicamente inaceitável e irracional. O que o capitalista extrai da força de trabalho e o controle ou disposição que exerce sobre ela são objecto pelo menos, ainda que na ausência de politização explícita, de uma luta informal constante - dentro e fora do local do trabalho - que faz com que a mercadoria força de trbalho seja incomparável com os outros bens providos pelo mercado.
(continua)

Miguel Serras Pereira disse...

(continuação do comentário anterior)
5. Tanto o montante do excedente como o mínimo correspondente à manutenção, formação e reprodução da força de trabalho, etc. são determinados por relações de poder, e o mesmo vale para a intensidade e extensão da exploração como norma fundamental referida no início - norma que a ficção de que cada um é remunerado em função de uma contribuição produtiva calculável se limita a idealizar e a legitimar "moralmente".
6. A importância destas considerações está, como já fui sugerindo durante a discussão do teu post sobre o PREC, em que a pensar e a olhar para além da economia, a negar o primado da economia, ainda que da economia marxista se trate. E não só da economia como de qualquer teoria da história, da natureza ou da realidade social cuja posse equivalha à posse de uma ciência da política ou da revolução a aplicar em vista de obtermos a organização correcta da matéria-prima social.)
7. Uma conclusão provisória é que, portanto,
não é a economia que determina o lugar da política ou o teor da instituição - ou, em linguagem marxista: não é o modo de produção que determina as relações de poder que são as relações de produção, mas são as relações de produção, enquanto relações de poder, que dão origem a qualquer coisa que se estabiliza temporariamente como um modo de produção. Ou ainda: é a economia que é, em cada caso, "cultural" e politicamente definida e delimitada, por um lado, pela instituição social global e as relações de poder que esta instaura, e, por outro lado, pela acção instituinte, da qual a luta política explícita faz parte (mas sem que a esgote), dos agentes em presença (classes, organizações diversas, etc.).
8. Por fim, como também já disse: "A democracia (socialista, porque democrática) é o autogoverno igualitário dos trabalhadores e do conjunto dos cidadãos, tomando nas suas mãos o poder político (no qual se inclui a direcção da economia), e não a aplicação de uma teoria ou análise económica correcta por um punhado de especialistas ("revolucionários profissionais") cujo poder e influência é inversamente proporcional à autonomia, liberdade e igualdade dos cidadãos". Por isso, a democratização ("socialista", se quiseres) da economia política capitalista exige, não uma modulação diferente da "lei do valor" em matéria de remuneração da mão de obra, mas justamente que a mão de obra, a força de trabalho e a actividade laboral requerida como socialmente necessária a cada um deixe de ser tratada como uma mercadoria, passando a ser retribuída mediante uma igualização radical dos salários e rendimentos. Por duas razões principais: 1. porque não há qualquer base racional ou razoável que permita calcular o contributo de cada um para o produto global, 2. para que, como na assembleia democrática, o voto de uns (no mercado) não pese mais do que o de outros.

Um abraço para ti

miguel sp

Anónimo disse...

O bombo da festa aqui do burgo, qual mafarrico salutarmente anarca em que todos os deuses malham, desqualificando-o, porque o temem como adversário, que dá pelo nome de miguel sp, tem quase tudo apreendido, só que disperso e mal ajuntado. Pelo andar da carruagem, é provável que com o tempo encontre o trilho.

Ele, como muitos de vós, confunde o marxismo com qualquer ciência válida, e querendo chingar o marxismo, que vós acarinhais, chinga a ciência. Também com o tempo, aprenderá a distinguir entre a ciência e as palermices marxistas. Ele é um defensor da liberdade, e isso é muito, muito importante.

Agora, para si, Ricardo:

O tema é complexo, pelo que é temerário abordá-lo tão levianamente, sem questionar os conceitos, aceitando-os passivamente como se de conhecimento certo se tratassem. A fé, neste como em todos os outros casos, conduz ao logro.
Usando, como usa, os conceitos de “valor de uso” e de “valor de troca”, não acha estranho usar um outro conceito como simplesmente “valor”?
Afinal, que é isso do valor das mercadorias? Valor será algo diferente do resultado duma medida (feita a olhómetro, por estimativa, por cálculo ou por comparação)? Se assim não for, de que grandeza será esse tal valor o resultado da medida? Sim, porque deverá haver uma grandeza das mercadorias a que atribuamos valor, para além das grandezas utilidade e relação na troca. Ou não? Desvende este primeiro mistério.
Depois, o que é que cria o valor dessa tal grandeza das mercadorias? O trabalho vivo, como diz o Marx? Então, não lhe parece estranho que essa mercadoria especial de corrida, a força de trabalho, tenha o seu valor criado pelo trabalho passado e não pelo trabalho vivo? Afinal, em que é que ficamos? O que é que cria esse tal valor? O trabalho vivo ou o trabalho morto? Pense nisso, porque como bem notou o Engels: “Ou o trabalho acumulado cria valor, como o trabalho vivo, e então a lei do valor não vigora; ou não o cria (…)” (F. Engels, prefácio ao Livro terceiro de O Capital). Tire você as conclusões que ele não soube tirar.
Só depois disto poderá partir para a desmontagem de toda a tralha marxista, quer se refira à crítica da economia política, quer à profecia messiânica do comunismo proletário, de que me apercebo ser um fiel devoto.
O seu posto está repleto de confusões e até de algumas barbaridades ditas inconscientemente. Seria fastidioso apontar-lhas. Ressalto apenas esta: “o nível de necessidades históricas da classe trabalhadora portuguesa é bastante superior ao da indiana”. Acha mesmo, Ricardo, que as classes trabalhadoras tenham necessidades de nível diferente entre si ou diferente em relação aos capitalistas? Não estará confundindo o nível das necessidades que lhes é permitido satisfazer historicamente com o nível histórico das suas necessidades?
E, depois, o que tem o nível das necessidades a ver com o tal valor das mercadorias? Você pode ter necessidades insaciáveis, mas em que é que isso altera o valor da mercadoria que vende e com o valor que lhe pagam por ela?
Pense. O que lhe faz falta é amadurecer a reflexão e armar-se do espírito crítico, ferramente indispensável para a produção de conhecimento.
JMC.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro JMC,
creio que me atribui uma confusão que, apesar de tudo, não faço. Não confundo o "marxismo" com uma ciência; não creio na possibilidade de uma ciência económica (nomotética), objectiva, etc. de cujas leis se possa deduzir uma "organização científica" da sociedade, e por fim não desprezo a ciência, mas penso que a própria ideia de uma "ciência política", no sentido forte, é auto-contraditória.
A questão: "que leis devemos dar-nos, porquê e para quê ?", a questão do governo da cidade e do seu sentido, etc. não são questões científicas. Do mesmo modo que a acção humana - que é causa e condição de si própria, posição de "fins" e critérios de "valor" irredutíveis a uma ordem de determinações anterior, etc. -, sendo embora passível de conhecimento racional, não pode ser explicada ou articulada em termos de redução causal a condições suficientes. O essencial aqui é da ordem da criação e do acontecimento e não da evolução e dos efeitos necessários.
Asim, a ideia de uma política científica ou de organização científica da sociedade, como a ideia de uma teoria da história e da acção humana (do fazer humano e das suas obras) que as reconduza a uma ordem de determinações meta-histórica, etc., é uma ideia que degrada tanto a ciência como a política e faz com que nos extraviemos em ambos os campos.

Com as saudações democráticas e racionalistas

msp

JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

msp

Peço desculpa se lhe atribuí algo indevidamente. Foi sem qualquer intenção ofensiva e deveu-se a qualquer confusão minha.
O marxismo atribui-se a qualidade de teoria científica da história da evolução social; a sua predição de que o comunismo proletário sucederá necessariamente ao capitalismo é tida como conhecimento obtido de ciência certa. Eu, que não vejo na história da evolução social nada que fundamente uma tal predição e, ao contrário, encontro nela as bases da sua refutação, qualifico-a de profecia messiânica, mas isso sou eu, que não comungo da fezada dos comunistas e sou ateu empedernido não bafejado pela graça da fé, ou, no dizer dos comunistas, anti-comunista primário (mal sabem eles que sou anti-comunista terciário, porque já vou no terceiro grau de aperfeiçoamento).

É claro que algumas variantes do anarquismo comungam daquela mesma fezada. Por desavenças antigas, não se baseando no conhecimento de ciência certa do marxismo, e o seu comunismo não é um comunismo nem proletário nem científico e queda-se por um comunismo pequeno-burguês e idealista, utópico, portanto, como o carimba o marxismo. Como tais crentes não têm a ciência por si e sabem que o futuro não é certo, ao contrário dos comunistas marxistas não lhes basta esperar o amadurecimento das condições objectivas e subjectivas, têm de fazer por acontecer. Imagine-se, portanto, o tamanho da empreitada.

Como fazê-lo? Pela força da vontade, pois então! Se possível, desorganizados, tudo ao molho e fé em deus, porque toda a organização necessita de um mínimo de ordem e de direcção hierarquizada, e toda a autoridade é reaccionária. É uma trapalhada dos diabos! Mais complicada do que a trapalhada comunista marxista, porque sem a segurança conferida pelo conhecimento certinho, direitinho, do futuro por acontecer profetizado pelo marxismo, e porque sem a eficácia garantida, já provada, dos estados-maiores de revolucionários profissionais dos marxistas que são os partidos comunistas marxistas-leninistas. Não se amofine com este sarcasmo, porque um tal idealismo ingénuo não me suscita outra reacção.

JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

(continuação)

Também a crítica marxista da economia política se arroga a qualidade de teoria científica da economia política. Aqui, a coisa é mais sofisticada, e porque baseada num corpo argumentativo que falta por completo à profecia messiânica pode aspirar ao estatuto de teoria científica. Mas, quando se submete a argumentação ao crivo da crítica, aquilo é só buracos de argumentos inválidos, porque eivados de erros lógicos, alguns grosseiros, e de premissas não plausíveis, que não poderiam deixar de conduzir a conclusões e a explicações falsas. Teoria científica, sim, concedamos, mas falsa, porque a ciência não produz apenas teorias consistentes, produz também muita merda bem embrulhada, que depois de submetida à crítica e à refutação é jogada para o sítio adequado.

Errar é humano, e não é de admirar que o Marx tenha cometido tantos erros numa matéria extremamente ingrata e numa época tão parca de conhecimento científico, tentando vencer as barreiras em que a chamada economia política clássica havia encalhado. Como se comprova, até os seres extremamente dotados cometem erros e elaboram teorias falsas. Os erros, contudo, acabam por destituir a crítica marxista da economia política de qualquer consistência, mas não de toda a utilidade, porque criticando-a é possível formular melhores hipóteses, cuja consistência o crivo da crítica confirmará ou não. O que é confrangedor é os marxistas não passarem disso, de marxistas, e mais não fazerem do que papaguear o Marx (e, muitas vezes, mal, porque nem sequer o compreenderam).

Coloquei ao autor do post duas pequeninas questões, basilares, que constituem uma lacuna e uma invalidade da crítica marxista: o que é isso do “valor” e qual a característica das mercadorias a que é atribuído esse chamado “valor”; e o que é que cria esse chamado “valor”, se o trabalho vivo, se o trabalho morto, se nem um nem outro. Depois se verá o seguimento. Porque há muito mais, há pano para mangas, como se costuma dizer.

Voltando a si. Tudo o que existe é passível de ser constituído como objecto científico. A ciência apenas não se pode debruçar sobre o que não existe (ou que não seja conjecturável como existente). Assim, as acções humanas podem ser objecto da ciência. Tanto as actuais, como as passadas (a sua história). E o conhecimento científico obtido sobre elas pode ser transformado em tecnologia e usado para influenciá-las. Não poderá determiná-las, a não ser pela manipulação dos seres, e não poderá predizê-las porque não existem quaisquer regularidades automáticas, as chamadas leis, que determinem as acções de milhões de seres humanos, mas lá que pode influenciá-las, lá isso, pode. Veja-se o uso da psicologia, das religiões sagradas e das suas variantes profanas, as ideologias messiânicas. Tão pouco as acções humanas são guiadas exclusivamente pela razão, quanto mais por qualquer automatismo racional exterior à consciência.

Em relação à organização social, por exemplo, o que se conhece, e em termos muito gerais, são as causas da sua evolução, o que tem feito com que uns modos de produção — formas de organizar o trabalho e de repartir o produto — se vão sucedendo a outros; mas, neste campo, não se conhece o que irá suceder de concreto, nem as formas específicas que esse concreto assumirá. Aliás, o comunismo marxista é que julga saber que modo de produção irá suceder ao modo de produção capitalista, quais as formas concretas que esse sucessor profetizado assumirá — o comunismo — e qual o agente de tal mudança — o proletariado. Com o seu pseudo conhecimento julga poder fazer engenharia de almas, parafraseando o título da tese do seu colega Neves, e erigir organizações sociais racionais que muito pouco têm de racional. A eficácia social e os resultados de um tal logro são conhecidos.

Ricardo Noronha disse...

Então, tentando responder/dialogar com todos.
1) Luís, antes pelo contrário. Trata-se de trabalho, sem dúvida, mas de um trabalho de natureza muito particular. O valor que ele produz é, no limite, impossível de quantificar e calcular. E a multiplicação de trabalhos dessa natureza - que produzem valores não quantificáveis - é o sinal de que o actual funcionamento da lei do valor é absolutamente político. Evidentemente que sempre foram necessárias condições políticas para esse funcionamento, a novidade é que agora essas são as únicas condições. A lei do valor esgota-se quando deixa de ser possível organizar o conjunto da produção social a partir do cálculo do trabalho abstracto incorporado em cada mercadoria. A abundância mercantil (o simples facto de a UE actualmente pagar a agricultores para não produzirem e penalizá-los por produzirem em excesso, por exemplo)equivale aqui a uma crise de valorização do capital. E é aí que entram os anúncios da Nike ou a promessa de férias luxuriantes no Tahiti ou o livro eletrónico do Steve Jobs. Na prática não nos estão a vender uns ténis, uma viagem de avião ou uma ferramente eletrónica mas, cada vez mais, modos de vida. É aí que está, como eles se lembram de nos dizer, o "valor acrescentado". Num plano cada vez mais simbólico, em que capitalismo e vida quotidiana se tornam inseparáveis. Tudo isso, que está a ganhar forma perante os nossos olhos, é a crise da lei do valor, que impele os empresários a procurar formas cada vez mais sofisticadas de produção mercantil onde exista ainda espaço para um aumento da mais-valia. É frágil e precário e por isso mesmo vemos tantas somas de capitais a ser investidas em áreas como o imobiliário e os derivados financeiros, com os resultados que se conhecem.

Ricardo Noronha disse...

2) Justiniano, peço-lhe que esclareça melhor o que entende por menos-valia e não-valor. Eu penso que a crítica da economia política se propõe precisamente equacionar as coisas para lá desse horizonte. Uma cadeira é uma cadeira e serve para nos sentarmos nela ou para outras coisas. O seu valor só se torna um problema se não existirem cadeiras suficientes para todos. Diria eu que numa sociedade comunista o valor de uma cadeira é tão irrisório como o valor de uma sinfonia ou de um poema.

Anónimo disse...

Só umas ideias soltas em torno da teoria do valor. Parece-me que a concepção de valor supra explanada um pouco redutora, contabilística. Veja-se que não se pode medir de forma directa o trabalho incorporado em determinada mercadoria, tal como as teorias clássicas o propõem. Julgo que Marx é claro: só se pode enxertar, por assim dizer, tempo e trabalho em produtos, que assim se transformam em mercadorias, através da abstracção dum e a quantificação do outro, isto é, pela mercantilização do próprio trabalho e a espacialização do tempo (o que, a bem dizer, possibilita também a mercantilização deste). O tempo/trabalho atribuído a cada mercadoria é o resultado particular da relação de forças de um dado sistema socioeconómico (trabalho abstracto) num dado momento. De facto, valor acrescentado não é lucro, sendo que este, como medida da mais-valia, estabelece uma relação diferencial com o valor. Mas por outro lado, o lucro é a medida justa do valor acrescentado pela simples razão que a conversão de valor acrescentado em lucro é, ainda, parte da teoria do valor. A questão da mensurabilidade do valor é falsa no sentido em que o valor é um processo e, contudo, verdadeira porque parte integrante desse mesmo processo. Se tomarmos o valor precisamente como o processo de conjugação daquilo que é irredutível, muito sucintamente trabalho (e tempo) em capital, urge, parece-me, pensar a questão do valor duma forma mais filosófica e menos economicista, não porque o valor não seja demasiado 'material' ou 'real', mas porque se configura como uma máquina terrível de conversão reciproca daquilo que é subjectivo e intensivo em algo que é objectivável e extensivo. Neste sentido, o valor é de facto o segredo do capitalismo, o truque de magia que possibilita o gerar de mais-valias e a sua subsequente privatização através da constante abstracção e usurpação do trabalho e tempo. Quando se pressupõe que uma mercadoria tem um valor inerente e que esse valor advém do trabalho-tempo ( medindo-se trabalho através da quantificação do tempo trabalhado no produto) nela incorporado estamos já no campo do ilusionismo capitalista. Neste sentido estrito, o capitalismo é um modo de produção tão 'espiritual' como material já que apropria o tempo através da sua redução à cronometria e o trabalho por via da sua abstracção e generalização. Uma última nota: talvez a relação entre produção imaterial e teoria do valor seja um assunto ainda por fazer, mas mesmo assim fascinante. Pense-se no trabalho imaterial como algo que, por um lado, é a conclusão lógica da abstracção do trabalho e quantificação do tempo e por, por outro, o momento de crise desse mesmo processo (por exemplo, poderá uma uma ideia ser 'mercantizável', ganhando assim valor, sem que a relação entre trabalho e tempo não se altere?)
nf

Anónimo disse...

1.
Só umas ideias soltas em torno da teoria do valor. Parece-me que a concepção de valor supra explanada um pouco redutora, contabilística. Veja-se que não se pode medir de forma directa o trabalho incorporado em determinada mercadoria, tal como as teorias clássicas o propõem. Julgo que Marx é claro: só se pode enxertar, por assim dizer, tempo e trabalho em produtos, que assim se transformam em mercadorias, através da abstracção dum e a quantificação do outro, isto é, pela mercantilização do próprio trabalho e a espacialização do tempo (o que, a bem dizer, possibilita também a mercantilização deste). O tempo/trabalho atribuído a cada mercadoria é o resultado particular da relação de forças de um dado sistema socioeconómico (trabalho abstracto) num dado momento. De facto, valor acrescentado não é lucro, sendo que este, como medida da mais-valia, estabelece uma relação diferencial com o valor. Mas por outro lado, o lucro é a medida justa do valor acrescentado pela simples razão que a conversão de valor acrescentado em lucro é, ainda, parte da teoria do valor. A questão da mensurabilidade do valor é falsa no sentido em que o valor é um processo e, contudo, verdadeira porque parte integrante desse mesmo processo. Se tomarmos o valor precisamente como o processo de conjugação daquilo que é irredutível, muito sucintamente trabalho (e tempo) em capital, urge, parece-me, pensar a questão do valor duma forma mais filosófica e menos economicista, não porque o valor não seja demasiado 'material' ou 'real', mas porque se configura como uma máquina terrível de conversão reciproca daquilo que é subjectivo e intensivo em algo que é objectivável e extensivo.
nf

Ricardo Noronha disse...

3) Miguel estou genericamente de acordo com o que escreves e as dúvidas ou diferenças são de pormenor e pouco importantes para o que estamos a debater. Queria simplesmente acentuar que a impossibilidade de calcular o contributo de cada um para a produção global é um dos aspectos da crise da lei do valor e representa uma novidade histórica no contexto do modo de produção capitalista. Mesmo que esse cálculo fosse imperfeito e parcelar, era possível saber a que correspondia uma hora de trabalho em cada ramo ou sector produtivo e atribuir-lhe um determinado valor. Isso é hoje muito mais difícil e funciona inteiramente por meio de relações de poder, lá onde o capital atingiu um ponto de maturidade e valorização extrema.

Anónimo disse...

2. (cont.)
Neste sentido, o valor é de facto o segredo do capitalismo, o truque de magia que possibilita o gerar de mais-valias e a sua subsequente privatização através da constante abstracção e usurpação de trabalho e tempo. Quando se pressupõe que uma mercadoria tem um valor inerente e que esse valor advém do trabalho-tempo ( medindo-se trabalho através da quantificação do tempo trabalhado no produto) nela incorporado estamos já no campo do ilusionismo capitalista. Neste sentido estrito, o capitalismo é um modo de produção tão 'espiritual' como material já que apropria o tempo através da sua redução à cronometria e o trabalho por via da sua abstracção e generalização. Uma última nota: talvez a relação entre produção imaterial e teoria do valor seja um assunto ainda por fazer, mas mesmo assim fascinante. Pense-se no trabalho imaterial como algo que, por um lado, é a conclusão lógica da abstracção do trabalho e quantificação do tempo e por, por outro, o momento de crise desse mesmo processo (por exemplo, poderá uma uma ideia ser 'mercantizável', ganhando assim valor, sem que a relação entre trabalho e tempo não se altere?)
nf

Ricardo Noronha disse...

4) JMC, penso que não é a primeira vez que debatemos isto. Eu acho que você navega em equívocos de vários tipo e que leu Marx apressadamente.
O valor é determinado na produção e realizado na troca. É este o argumento fundamental da teoria do valor-trabalho, tal como sugeriu David Ricardo e desenvolveu Marx.
Os conceitos de “valor de uso” e de “valor de troca”, são aqui pouco relevantes. Um martelo que não se vende nem por isso deixa de ter utilidade, mas o seu valor é o resultado do trabalho - ou do conjunto dos trabalhos - que incorpora. O valor é precisamente a medida desse trabalho enquanto "grandeza". Naturalmente que este raciocínio só funciona inserido na totalidade concreta da qual estes exemplos são meras abstracções. Como notava Marx na crítica ao programa de Gotha, a natureza também é produtora de valores de uso. Mas aqui trata-se de conceber a regulação da cooperação social e da troca numa sociedade onde impera a divisão do trabalho e a contraposição dos indivíduos relativamente uns aos outros. Um valor só pode encontrar equivalente noutro valor. Um garrafão de vinho não teria valor se não pudesse ser trocado por um saco de aveia ou um fardo de algodão. O valor respectivo diz respeito à quantidade (e, progressivamente, à qualidade) de trabalho que cada um implicou. O trabalho morto é essencial para a produção, mas não altera o valor do que quer que seja.É sempre necessário o trabalho vivo para produzir uma mercadoria. Mesmo a direcção que você parece apontar - uma linha de montagem inteiramente automatizada - carece de trabalho vivo para a sua manutenção e supervisão, sem o qual não possui qualquer valor de uso. E é esse trabalho que produz o valor das mercadorias que saem da linha de montagem. Por isso mesmo o trabalho assalariado é o ponto em que a contradição entre o valor de uso da mercadoria - ou seja, o trabalho concreto realizado - e o seu valor de troca - ou seja, o salário que o trabalhador recebe - é mais aguda. E por isso mesmo o proletariado ou é revolucionário ou não é nada. Ou toma consciência da sua condição de mercadoria que produz mercadorias e - a partir desse ponto - entende o funcionamento do conjunto do modo de produção capitalista, ou está condenado a ser uma peça na engrenagem, uma componente do Capital, um meio de produção.
Penso ter respondido às duas questões que me colocou, mas adivinho que essas eram apenas preliminares ao que você realmente me queria perguntar. Força.

Ricardo Noronha disse...

NF (Nuno Fonseca?), era isso mesmo que eu queria escrever. Continue por favor. Somos todos uns indigentes teóricos nestas matérias.

Justiniano disse...

Caríssimo Noronha;
"Um martelo que não se vende nem por isso deixa de ter utilidade..." Não se vende ou não se troca ou não se procura porquê, então!? Terá, esse mesmo martelo, valor!? Parece-me que terá de ter o valor, mesmo que se não queira, que equivale ao valor da sua produção acrescido da oportunidade!? Sendo os recursos escassos, económicos, não será esse tal martelo um não valor!?
Comparado com os recursos necessários para produzir cadeiras, que imagine-se eram todas necessárias, procuradas, trocadas, não seria o valor do martelo uma menos valia!?
Um cordial bem haja,

Ricardo Noronha disse...

Estou a dizer, Justiniano, que um martelo que não encontra no mercado a realização do seu valor, continua em todo o caso a ser um martelo e a sua utilidade não se reduz por causa disso.

Anónimo disse...

Caro Ricardo, somos de facto todos indigentes nesta matéria. Eu serei com certeza. Considero contudo que uma certa crítica à teoria do valor do Marx não faz muito sentido. Algumas categorias da economia política mantêm-se , mas é toda uma outra análise ao capitalismo que se desenvolve, pelo que não me parece muito produtivo reactivar as mesmas de forma retrospectiva para demonstrar o que seja (quem julga que o Marx dá saltos de lógica mirabolantes não sabe com certeza qual é a lógica que subjaz ao seu projecto). Daí pensar que uma leitura mais filosófica da crítica ao valor aponte caminhos interessantes. Por exemplo, pensar o valor como processo de aglutinação, ou, se quiser, subsunção do tempo (por certo nunca desligado do trabalho) é algo que me parece fundamental e que posiciona este em excesso relativamente à esfera económica. Entramos no campo da 'cultura' e da ideologia; estamos a falar, digamos assim, do ar que se respira, estando ainda e sempre a falar de trabalho. (neste sentido não se trata de uma mera quantificação do tempo, mas algo de mais complexo).
nf

Justiniano disse...

Mas, caro Noronha, um martelo que não tenha utilidade (imagine um martelo num mundo de parafusos)e tendo valor intrínseco não significará uma perda de valor!? Eu não consigo ultrapassar a premissa da escassez de recursos e tempo. O tempo oportunidade não será em si uma perda quando inutilmente ocupado! Não consigo perceber a produção como categoria ontológica, a produção pela produção, a produção em si como um valor.
É esta racionalidade Marxista que me custa compreender (não percebo - Compreendo os mecanismos de subsidiação pressupondo mais e menos valias, mas não compreendo a equivalencia de valor per si). E será patente quando a ligamos à eficiencia na utilização dos recursos, e à troca! Quantos quilos de trigo para um martelo inútil!!?? São apenas algumas dúvidas que nunca consegui verdadeiramente perceber resposta!!

JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

Ricardo Noronha.

Não guardo recordação de já termos debatido isto (ou qualquer outro assunto). Eventualmente, porque o resultado não terá sido satisfatório. De qualquer modo, você proporcionou agora outra oportunidade, trazendo a matéria a debate, o que poderá ser sinónimo do seu interesse e é salutar e de registar, razão pela qual me decidi a intervir, mesmo sabendo das limitações deste meio para discussões sobre questões desta natureza.

Eu próprio não estou seguro de não navegar em equívocos, tome nota. Não seria novidade, tantos foram aqueles em que já naveguei. Mas você equivoca-se redondamente ao afirmar que li Marx apressadamente (não sei mesmo que tipo de arte adivinhatória lhe permitirá afirmar tal). Elucido-o: as leituras dos textos do Marx foram muitas, demoradas e, nalguns temas, exaustivas, e vêm já de longa data (de há mais de 40 anos, imagine). Poderá invocar que o tenha lido mal, não compreendido, e por aí fora. Conviria, contudo, demonstrá-lo, usando o melhor dos instrumentos: argumentos.

Coloquei-lhe apenas duas pequenas questões, mas constato que não respondeu a nenhuma, ou, pelo menos, não concretizou as respostas, de modo que pudessem ser entendidas com clareza.

Diz que os “conceitos de “valor de uso” e de “valor de troca”, são aqui pouco relevantes”. Não me parece ser o caso, pois eles designam ideias facilmente compreensíveis, a saber: o valor ou dimensão do “uso” ou da “utilidade” e o valor ou dimensão da “relação de troca”. Com eles, portanto, ficamos a saber que as características “utilidade” e “relação de troca” são duas grandezas que definem as mercadorias (e por isso podem ter valor, o resultado da medida da sua dimensão ou quantidade). Já quanto àquilo a que chama “valor das mercadorias” continua sem designar a grandeza (característica mensurável) das mercadorias a que esse valor (resultado da medida) se refere.

Ficamos a saber apenas que esse valor — quantidade de trabalho que as mercadorias contêm — se refere a qualquer grandeza, ainda não designada, que o trabalho confere às mercadorias. Não sendo muito, é o bastante para não sairmos da ambiguidade em que o Marx deixou o assunto (assim como os clássicos que o antecederam). Isto porque a utilidade, por exemplo, é também uma grandeza conferida pelo trabalho às mercadorias produzidas (abstraindo, portanto, das que são oferta da natureza), ainda que o seu valor não seja expresso na quantidade de trabalho que contenham.

Diz depois que o ”valor respectivo (das mercadorias) diz respeito à quantidade (e, progressivamente, à qualidade) de trabalho que cada um(a) implicou”. Mas imediatamente antes afirma que ” Um garrafão de vinho não teria valor se não pudesse ser trocado por um saco de aveia ou um fardo de algodão”, o que constitui uma manifesta contradição com a ideia de que o chamado valor constitui a medida do trabalho implicado na sua produção. Deste modo, parece que o garrafão de vinho teria sido produzido pelo divino espírito santo (ou pela natureza, ou lá pelo que fosse) e não pelo trabalho humano.

É claro que o garrafão de vinho tem “trabalho implicado” e, como tal, tem o chamado “valor”. Chamemos, por comodidade, a este trabalho implicado “custo de produção”, o tal músculo, nervo e cérebro, a que se refere o Marx, que custou aos trabalhadores que o produziram, e a este valor “valor do custo de produção”, identificando assim a grandeza a que esse tal “valor” se refere. Em mais das suas muitas contradições, o Marx disse que este valor apenas se manifestava na troca, ideia que você repete um pouco atabalhoadamente dizendo que o tal “garrafão de vinho não teria valor se não pudesse ser trocado”.

JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

(continuação)

Nota-se que é coisa estapafúrdia, não? Ou bem que o garrafão de vinho é fruto do trabalho humano, e tem custo de produção, ou bem que é fruto do divino espírito santo e não tem custo de produção. O que o glosado garrafão de vinho, se não for trocado, não tem é valor de troca, dado que se não for vendido não chega a relacionar-se com qualquer outra mercadoria. Isto quer apenas dizer que o produto útil garrafão de vinho, não sendo trocado, não adquiriu a qualidade de mercadoria, aquilo que se merca, que se compra e vende. Neste caso, o seu valor de custo de produção transformou-se em mero desperdício.

Mas, se for vendido, continua a ter o seu “valor do custo de produção” e adquire “valor de troca”. O erro do Marx foi pensar que este valor de troca das mercadorias expressava fielmente o seu valor do custo de produção, erro decorrente da aceitação duma falácia da ideologia dominante que afirmava que as mercadorias se trocavam pelos seus valores e que a troca era uma troca equitativa. Daí que, se as mercadorias se trocavam pelos seus valores, o chamado “valor” tenha passado, para o Marx, a ser a mesma coisa que o “valor de troca”. Isto, de facto, é o que se passa, em geral, nas trocas entre os capitalistas (verificável pela similaridade das taxas de lucro), e não admira que eles assim vejam o mundo, mas não é o que se passa nas trocas entre os capitalistas e os trabalhadores assalariados. Doutro modo, como seria originado o lucro?

Para sair da trapalhada, e poder explicar a génese do lucro, o Marx inventou a “força de trabalho” (que como o Engels muito bem afirma, foi a sua única originalidade em relação à economia política clássica) como sendo a mercadoria vendida pelos trabalhadores assalariados, ao contrário do trabalho, tido até então como sendo a mercadoria vendida pelos trabalhadores. Uma mercadoria muito especial, diga-se de passagem, pelas capacidades que lhe foram conferidas, com a qual o Marx resolve, de uma penada, todas as dificuldades em que esbarrara a economia política clássica.

Eu chamo-lhe “mercadoria mágica”, tão irreal é a suposta mercadoria. Para encurtar caminho, uma tal mercadoria, como todas, sendo vendida pelo seu suposto valor (o valor das mercadorias compradas pelo salário), tem a faculdade de fornecer mais valor do que esse seu suposto valor, como se alguma coisa pudesse fornecer mais do que contém, seja do que for que contenha, numa clara violação das leis da física. Esse suposto valor a mais que teria a faculdade de fornecer (a famosa mais-valia) não era mais do que o lucro. Assim se resolvia o maior dos quebra-cabeças.

O maior virtuosismo da “força de trabalho” estaria ainda para vir (mas desse o Marx talvez não se tenha apercebido). Sendo as mercadorias produtos do trabalho humano, e o seu valor criado pelo trabalho humano vivo (num mecanismo também muito engraçado), esta especialíssima mercadoria, afinal, escapava a mais uma das condições: ela não tem o seu valor criado pelo trabalho vivo, visto este não entrar na sua produção, não constituindo seu factor produtivo, mas constituir somente o seu produto. Deste modo, em coerência, a “força de trabalho” não teria valor. É claro, seria um absurdo não atribuir valor a uma tal mercadoria. Daí que o Marx lhe tenha atribuído como valor o seu “valor de troca”, o trabalho morto constituinte das mercadorias compradas pelo salário.

O efeito da exploração, o valor a menos atribuído na troca à mercadoria vendida pelos trabalhadores (fosse ela qual fosse), era confundido com a sua causa, passando a constituir o valor a mais (a famosa mais-valia) que a “força de trabalho” tinha a faculdade mágica de fornecer. Também não é engraçado? E aqui temos a famosa mercadoria mágica, cujos “dons” especiais de que está possuída permitiram ao Marx ultrapassar as dificuldades até então não ultrapassadas para a explicação da génese do lucro.

JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

(continuação)

Por esta razão lhe perguntei o que é que criava o tal valor das mercadorias e o valor desta tão especial mercadoria “força de trabalho”. Você não respondeu e preferiu remeter-nos para uma suposta direcção em que eu pareceria apontar (de sua inteira imaginação), a de um hipotético futuro longínquo de ”uma linha de montagem inteiramente automatizada”, quando eu lhe colocara uma questão bem real, existente desde os primórdios do capitalismo. Seria melhor ter tentado desvendar o mistério, retirando as conclusões que o Engels não soube tirar. Mas os marxistas parecem mais interessados em imaginar o futuro do que em desvendarem os mistérios do presente. Para eles, a verdade foi já revelada.

Não se prenda com as minhas supostas leituras apressadas do Marx. Prenda-se com as minhas ideias. Dê-me troco. Refute-as. Se faz favor. Porque eu gostaria de saber a sua consistência.

Justiniano disse...

Caríssimo JMC, já tive oportunidade de o acompanhar num outro fórum acerca da mesma temática e com as mesmas aporias, mas com interlocutores muitíssimo desqualificados(incapazes de compreender verdadeiramente o que diziam), aguardo, portanto, desta vez, alguma claridade e superação das dúvidas que podem bem ser aporias, por parte do caro Noronha, que me parece habilitado a tal! O meu interesse na questão deve-se ao facto de nunca, verdadeiramente, ter compreendido como o marxismo supera tais aporias e se não esgota no socialismo ou na social democracia.
Aguardo a continuação do debate com genuino interesse!!
Um bem haja, para ambos

Ricardo Noronha disse...

Caro JMC,
Os conceitos de valor de uso e de valor de troca são úteis quando nos debruçamos sobre a esfera da circulação, mas não quando abordamos a da produção. Porque aí trata-se de compreender precisamente a origem do valor. Se não for realizado na troca, o valor incorporado numa mercadoria perde-se e a sua utilidade ou inutilidade são irrelevantes para o que nos interessa. O tempo gasto a produzi-la foi tempo perdido.
De qualquer forma esses conceitos também não resolvem os problemas que você levanta. Qual a medida da utilidade de uma coisa? E se os preços das mercadorias variam, então o seu valor também não pode ser quantificado com precisão. Os conceitos usados por Marx procuram precisamente identificar elementos abstractos de processos concretos. Penso que é a isso que você chama "ambiguidade".
Não existiu qualquer contradição no exemplo do vinho e do algodão. Eu sublinhava que o valor de um só pode ser calculado tendo um outro valor como referência. E o valor de qualquer um deles resulta do trabalho que cada um incorpora. Não existe nenhum valor intrínseco a cada um deles, porque a categoria valor é relacional e resulta da divisão do trabalho.
O vinho pode ser bom ou mau independentemente do trabalho gasto a produzi-lo. Mas o seu valor é algo bem diferente. E em ponto algum sugeri que o vinho é resultado da divina providência em vez de ser resultado do trabalho dispendido para o produzir.
Peço-lhe que me indique a passagem em que Marx afirmou que o "valor de troca das mercadorias expressava fielmente o seu valor do custo de produção". É uma novidade absoluta para mim.
Quanto ao trabalho como fonte do valor. Não há, parece-me, qualquer mistério no processo. O valor de troca da mercadoria trabalho é inferior ao seu valor de uso. Ele produz mais do que recebe e a palavra "produz" é mais indicada do que a que você emprega - "contém". A reprodução da força de trabalho também envolve trabalho vivo, a não ser que fora do seu horário de trabalho o trabalhador ainda vá cultivar a terra e cardar a lã. Mas então seria preciso compreender porque razão iria trabalhar. Você pretende captar as várias componentes do ciclo do capital isolada e detalhadamente, mas elas só são compreensíveis no seu movimento geral e não uma de cada vez.
O trabalhador vende a sua força de trabalho em determinadas condições. O capitalista usa essa força de trabalho combinada com outras forças de trabalho e potenciada por meios de produção (que são, eles próprios, trabalho morto). O resultado desse uso é um conjunto de mercadorias com um determinado valor, que corresponde aos custos de produção acrescidos de uma margem de lucro variável. Tudo isto - salário, preço e lucros - é determinado pelas várias condições que rodeiam a produção e a circulação das mercadorias. Mas é na produção que tudo começa.

miguel disse...

Justiniano: "... aguardo, portanto, desta vez, alguma claridade e superação das dúvidas que podem bem ser aporias ... O meu interesse na questão deve-se ao facto de nunca, verdadeiramente, ter compreendido como o marxismo supera tais aporias e se não esgota no socialismo ou na social democracia."

Já lhe passou pela cabeça que pode estar a fazer as perguntas certas no sítio errado? O que o leva a pensar que as suas interrogações podem ser atendidas neste espaço? Dito de outro modo: o que o leva a pensar que as respostas que por aqui se formulam se enquadram dentro do que o Justiniano pensa ser o "marxismo"?

Justiniano disse...

Caríssimo Noronha,
""valor de troca das mercadorias expressava fielmente o seu valor do custo de produção"É uma novidade absoluta para mim." Mas Marx, concordando com A. Smith, vê a origem e causa do lucro na propriedade, deduzindo que ao obliterar a propriedade (diferente de socializar) decai a razão de ser de um valor acrescido sem correspondencia com os valores da produção e deste modo depreende-se que o seu valor de troca corresponda ao seu custo!!
É pelo menos assim que compreendo!
A consequencia disto é que o trabalho perdido e os recursos consumidos sem valor de troca (perdas) quedam-se no suporte do trabalho de outros!! Não será assim!?

Anónimo disse...

Vou tentar responder de forma clara, talvez um pouco simplista, mas, espero, minimamente satisfatória. Há que distinguir mercadorias de produtos. As mercadorias são a objectivação do valor de uso e de troca num dado produto. A questão não é saber se o valor de uso é intrínseco ou extrínseco ao produto, mas ter em consideração que este, enquanto inerente à mercadoria, está necessariamente associado ao valor de troca (ninguém bebe vinho da mercadoria garrafão de vinho, mas pode-se comprar um garrafão de vinho para beber vinho). Neste sentido, poder-se-á dizer que o valor de uso é extrínseco pelo simples facto de estar ligado ao valor de troca (não há mercadorias sem os dois). Este é o ponto de partida para a crítica à criação de valor capitalista. Pensar que o trabalhador produz o produto e que este, como mercadoria, adquire por via do trabalho, energia vital empregue na produção da mercadoria, valor de uso e de troca, um ao lado do outro, não satisfaz Marx. A mercadoria, como forma de objectivação de valor, não resolve o seu carácter contraditório. Isto porque o valor de troca não assenta no trabalho particular usado na produção, mas na abstracção do trabalho em si (nem na força do trabalho particular, nem nos custos de produção). De forma muito simples: mercadorias só adquirem valor de troca através da mercantilização do trabalho. O valor de uso manter-se-á particular porque ligado a um determinado uso/necessidade possível; o valor de troca fundamenta-se na abstracção, generalização, do trabalho que é, aqui, quantificado em termos de trabalho tempo.
nf

JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

Ricardo Noronha.

Se preferir, poderemos interromper aqui o debate e retomá-lo noutra altura que lhe pareça mais adequada. Com tempo, poderá encontrar em O Capital, logo à entrada do Livro I, as citações do Marx que me pede. Não sou muito dado a citações; parto do princípio de que os marxistas conheceriam suficientemente bem a obra do Marx para não necessitarem de citações para relembrarem as ideias em causa. Este método é também um pretexto que uso para que os menos conhecedores, que aprenderam por cartilhas de divulgação, passem a ir à fonte e, aí, não se fiquem por citações desgarradas e fora do contexto. Sei que a matéria é complexa, que exige grande capacidade de abstracção, e que o estilo do autor é denso e repetitivo, reflexo das suas próprias dificuldades, mas só tendo compreendido as ideias do Marx é possível discuti-las. E tê-las compreendido é coisa que falha à generalidade dos marxistas, que apenas as papagueia.

Sei também que é talvez exigir demasiado, porque se tivessem compreendido as ideias do Marx os marxistas ter-se-iam apercebido das ambiguidades e dos (e de alguns dos) erros e já teriam, ao menos, contribuído para saná-los e para as melhorarem com contributos originais. Constata-se, ao fim destes 143 anos desde a publicação do Livro I de O Capital, que cada geração de marxistas anda a tentar compreender o Marx e morre sem que o tenha conseguido; quando algum o consegue, abandona o marxismo, por ter percebido o logro. Nem calcula as exclamações que eu próprio fui proferindo, à medida que a cada releitura compreendia um pouco melhor a coisa (cujo espanto está reflectido nas anotações à margem e em outros meios). Por isso, nenhum deu qualquer contributo que superasse o próprio Marx. É surpreendente, mas é assim. Isto é revelador de quanto é difícil apreender e reconstituir conceptualmente a realidade social, mesmo partindo duma boa base, como é O Capital (que é o que mais importa da obra do Marx); de quanta capacidade de abstracção e da dose de espírito crítico são necessários para nos interrogarmos acerca de cada conceito que nos parece óbvio e de cada significado que nos parece plausível.

Não vou comentar a sua resposta. Não julgue que é por menor consideração. É por achar que não seria profícuo. Acontece que ela tem muitas confusões, mesmo em relação às ideias do Marx, e algumas contradições e passagens incompreensíveis, o que me faz pensar que terá sido uma resposta apressada e que este poderá não ser o momento adequado para continuarmos a debater. Deixo-lhe, sem qualquer sublinhado, apenas um parágrafo da sua resposta que justifica o que digo, para que possa reflectir um pouco melhor: ” Quanto ao trabalho como fonte do valor. Não há, parece-me, qualquer mistério no processo. O valor de troca da mercadoria trabalho é inferior ao seu valor de uso. Ele produz mais do que recebe e a palavra "produz" é mais indicada do que a que você emprega - "contém". A reprodução da força de trabalho também envolve trabalho vivo, a não ser que fora do seu horário de trabalho o trabalhador ainda vá cultivar a terra e cardar a lã. Mas então seria preciso compreender porque razão iria trabalhar. Você pretende captar as várias componentes do ciclo do capital isolada e detalhadamente, mas elas só são compreensíveis no seu movimento geral e não uma de cada vez.”. Mas se preferir continuar a debater por minha parte estarei disponível, ainda que tenha de usar respostas extensas.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro NF,
duas notas, que não são objecções ao seu último comentário - mas o registo de uma associação de ideias induzida pelo que você escreveu.
1. É verdade que não há capitalismo sem "mercantilização do trabalho". No entanto, esta nunca é completa (se o fosse, o capitalismo que conhecemos teria dado rapidamente lugar a uma sociedade de escravos industriais em vez de conhecer a história, ainda em curso, que até hoje conheceu). E não é completa, nem a força de trabalho uma mercadoria como as outras, porque a negociação no mercado do seu preço depende fundamentalmente de uma relação de forças, por natureza instável e que atravessa e inflecte toda a lógica puramente económica. Trata-se da relação de forças - da "luta de classes" - a que já me referi noutros comentários, como elemento determinante e último da "repartição do produto" e da "apropriação do excedente".
Do mesmo modo, o que o comprador da mercadoria sui generis que é o trabalho pode extrair dela depende também de uma relação de poder e de uma luta de todos os instantes no interior da empresa e ao longo do processo de produção. Neste sentido, a infra-estrutura da economia política do capitalismo é a política ou a instituição entendida como regime de relações sociais de poder - faltando acrescentar, todavia, que a infra-estrutura da instituição e da política não é uma estrutura porque é a própria sociedade (instituinte) e/ou a sua acção sobre si própria (a história seria o fluido desta acção da sociedade sobre si própria - como dizia o historiador da Revolução Francesa Georges Lefebvre).
2. O valor de troca procede, em termos genéticos, de um valor de uso anterior, que é sua condição. Mas o que se passa hoje é que so capitalismo passou a promover frenética e compulsivamente a criação de novos "valores de uso" a partir do primado hierárquico que concede ao "valor de troca" ou à "mercadoria" e à expansão do seu empreendimento de colonização ilimitada da existência social.

Bom, acho que já temos aqui matéria para futuras conversas.

Cordiais saudações republicanas

msp

Justiniano disse...

Caríssimo Miguel, já me passou pela cabeça estar a fazer as perguntas erradas no sítio certo e, sim, ocorre-me que pensando erroneamente o "marxismo" também poderemos interessadamente pensar o "capitalismo", sendo isso o que quer que seja!! Como me ocorre não ser possível a justiça sem prudencia e tudo mais! Assim como muitas e muitas mais questões que nem lhe sei colocar!

JOSÉ MANUEL CORREIA disse...

Justiniano.

Por desatenção não respondi a um seu comentário. Faço-o agora.
Como vê, as coisas não são fáceis. Ou o Marx falou grego, embora se tenha exprimido num alemão que até deu para os tradutores entenderem; ou eu falo grego, embora me pareça que me exprimo num português escorreito. Nestas condições, a discussão de ideias é muito difícil.
Os marxistas, infelizmente, não compreendem a obra do Marx, pelo que se torna muito complicado debater com eles as ideias do seu mestre. Num tal debate, amiúde temos de refutar as ideias do Marx e as ideias deformadas que eles têm dessas ideias, pelo que é um trabalho duplamente árduo e geralmente improfícuo.
Se pretender avançar um pouco mais, vá até ao meu blog (passe a publicidade, razão pela qual me abstenho de comentar frequentemente na blogosfera). Tem lá, destacados, os textos mais importantes que tenho produzido sobre a temática da obra do Marx. Vai ver que passará a compreender minimamente a porca da realidade e os erros e falsidades das ideias do Marx; não as aporias, que essas não existem, na medida em que ele, com recurso a premissas não plausíveis e a erros lógicos, elaborou um modelo aparentemente consistente.
Eu já me exaspero, a cada vez que vejo gente jovem repetir barbaridades como a do trabalho, sendo produto duma suposta mercadoria, criar valor e mais valor do que o da suposta mercadoria que o teria produzido, como se alguma coisa pudesse fornecer mais do que contém, seja do que for que contenha, e da criatura criar mais do que o criador que a criara. No tempo do Marx, em que as ciências físicas e naturais balbuciavam os primeiros passos, estas baboseiras ainda podiam passar despercebidas, mas repeti-las e aceitar violações de simples leis da física passados quase dois séculos é coisa que nem lembra ao diabo. Enfim, é o que temos.