13/07/10

Onde se fala do PREC


Num ensaio escrito em 2004, Luís Trindade constatou a impossibilidade de pensar o 25 de Abril enquanto acontecimento imanente:
A realidade da revolução está de tal forma coberta de sentidos históricos que a antecedem e ultrapassam que podemos apenas lê-la como símbolo no século XX português. Só a partir do passado dictatorial e projectando-a no futuro democrático é que parece ser possível falar do momento historicamente mais denso da nossa contemporaneidade. O Estado Novo e a democracia ensombram como duas transcendências essa densidade, esvaziando-a. A revolução fica assim condenada, por excesso ou por defeito, a uma confrontação com realidades que não são exactamente a sua, ora como conjunto de conquistas à luz da privação salazarista, ora como momento de excessos perante uma democracia assente em instituições representativas estabilizadas.
Essa impossibilidade vem frequentemente ao de cima quando nos propomos fazer um balanço histórico do século XX ou, como vem sendo mais frequente, do ciclo político iniciado após o derrube do governo de Caetano e o fim do Estado Novo. Ainda recentemente Pedro Passos Coelho resolveu colocar a origem dos problemas da pátria no longínquo ano de 1974, quando a despesa pública começou a sua cavalgada galopante de investimentos irracionais em escolas, hospitais, abonos de família e subsídios de desemprego. E António Borges, o mago das finanças do PSD, escreve regulamente  artigos  de jornal relembrando os tempos do vibrante crescimento económico anterior ao 25 de Abril, quando os empresários tinham liberdade para conduzir os seus negócios.
A memória do PREC, os discursos de descrição e interpretação daquele período, poderiam ser, eles mesmos, objecto de um estudo histórico, que identificasse a relação entre cada conjuntura política e a respectiva aproximação ao momento fundador do regime democrático. Não seria difícil constatar que as narrativas dominantes até ao final da década de Oitenta investiram muito mais na pesada herança do Salazarismo do que nos malefícios do PREC, ao passo que as narrativas que se impuseram a partir da década de Noventa inverteram essa aproximação. E a partir do colapso da URSS, o período revolucionário passou a ser insistentemente apresentado como um momento de irresponsabilidade generalizada, a origem de todos os males, uma histeria colectiva contra as forças vivas da nação, a propriedade, a família e o Estado. 
Como têm pouca imaginação, os liberais e conservadores pátrios pouparam ao nível da interpretação histórica e resolveram importar, usando e abusando de François Furet e dos seus estudos sobre a Revolução Francesa. O PREC foi assim analisado à luz de uma explosão de ideologia e os seus excessos atribuídos às ideias totalitárias que circularam nos anos anteriores. Ao que parece, fez-se uma revolução devido às más leituras. Estando a origem de todos os totalitarismos na perniciosa ideia de que a ordem estabelecida pode ser alterada e transformada consoante a vontade humana, os portugueses foram as suas mais recentes vítimas.Tudo estava bem e corria pelo melhor, não fora a intoxicação ideológica de alguns capitães e a fúria de um punhado de esquerdistas. Quando se deu por isso, já se caminhava para o socialismo na ponta da G3. Quase foi demasiado tarde, mas vieram os democratas (os verdadeiros) ao colo de Carlucci e puseram tudo na ordem. Consta que o Batalhão de Comandos também deu o seu contributo.


Naturalmente que estas fábulas infantis não convencem senão os que se querem deixar convencer, mas estão-se a tornar cada vez mais numerosas e difíceis de contrariar. Não é que faltem argumentos, mas as certezas que transportam desencorajam qualquer argumentação. Tudo isto está bem patente no texto de Marcelo Ribeiro que o João Tunes chamou à liça e do qual cito algumas passagens esclarecedoras:
Foi este o caldo de cultura que permitiu que em Portugal o radicalismo “esquerdista” nado e criado nas estruturas juvenis do PC, substituísse, ilidisse, banisse, qualquer arroubo social-democrata. Da França vinham livros e revistas  cuja leitura acrítica, inconfrontável com a realidade francesa que se desconhecia, introduzia ainda uma maior distorção na já depauperada análise da realidade nacional.
Reparem bem nos alvos: um caldo de cultura produzido por livros e revistas digeridos acriticamente, porque provenientes de uma realidade francesa que se desconhecia e que distorciam a análise da realidade nacional. Já falei de Furet, mas não faria mal nenhum referir aqui o ódio integralista aos "estrangeirados" para compor o quadro. O resto do texto dá-nos mais do mesmo. O caldo de cultura e os comportamentos que dele resultam são retratados como delirantes e irrelevantes e a história contemporânea portuguesa torna-se um capítulo do diário de Adrian Mole, ao qual nem sequer falta uma alusão à acne revolucionária, que passa com a chegada à idade adulta. 
O problema desta descrição é que passa constantemente por cima do que era a vida  quotidiana e as relações sociais em Portugal, nas décadas de Sessenta e Setenta. Havia subnutrição e  crianças descalças, milhares de pessoas a viver em barracas, uma escola profundamente classista, analfabetismo de massas e uma mortalidade infantil medieval. Penso ser dispensável fazer referências aos horrores da guerra colonial. Como se pode então sustentar seriamente que "qualquer arroubo social-democrata" se viu banido por um caldo de cultura esquerdista? E como se explica que o "fortalecimento dos partidos centristas para apagar os pequenos incêndios de 75", tenha resultado numa Constituição apostada em abolir a exploração do homem pelo homem? Como pretender explicar a revolução pelos excessos de um caldo de cultura ignorando os défices do caldo de legumes?
Mais exemplos poderiam ser dados (a deriva terrorista que se seguiu à campanha de Otelo, por exemplo, foi uma resposta ao bombismo de direita que se verificava há mais de um ano), para ilustrar uma constatação que se impõe - este texto está cheio de buracos e a sua lógica paira sobre os acontecimentos sem os ter em conta. Vou dar apenas mais um. 
Marcelo Ribeiro acusa a extrema-esquerda de ter visto "jardins no deserto e multidões triunfantes num grupo de quatro gatos pingados", avançando o exemplo de "alguns grupos políticos nascidos dos azares da esquerda órfã" que criaram a Frente de Unidade Revolucionária "sem saber que apenas juntavam o último quadrado de fieis para acompanhar um enterro". Ora, são possíveis vários exercícios interpretativos do Outono de 1975, quando a Esquerda Militar e o COPCON perderam várias posições na cúpula político-militar a favor dos «Nove» e o VI Governo Provisório iniciou a contenção do processo revolucionário. O que não vale é fazer de conta que isso foi feito tranquila e pacificamente, como se o desfecho estivesse previamente definido. A FUR dinamizou algumas manifestações com dezenas de milhares de pessoas , a Constituinte esteve sob cerco dos operários da construção civil  e  a situação estava tudo menos esclarecida. Em meados de Novembro, Soares queria levar o governo e as reservas do Banco de Portugal para o Porto e iniciar dali a guerra civil. Em Janeiro de 1976, a polícia carregou e disparou sobre familiares dos presos do 25 de Novembro detidos em Custóias, que se manifestavam pela sua libertação. É por isso manifestamente abusivo afirmar que a juventude revolucionária tenha andado dois dias cozida às paredes a seguir ao 25 de Novembro. Poderá ter sido o caso de muitos, mas seguramente que não foi o caso de todos. Decididamente, as contingências do processo revolucionário não acompanham o olhar depreciativo de Marcelo Ribeiro, por uma razão simples. É que um evento histórico que assumiu, a todos os níveis, a proporção de um drama trágico, não se deixa facilmente narrar na forma de farsa. O passado resiste a semelhante transfiguração e os factos revelam-se teimosos.
O que fica então deste texto? Um ajuste de contas com o passado em que se confunde o percurso  pessoal do autor (respeitável, como é evidente) com a história da segunda metade do século XX. Esse tipo de confusão resulta por vezes em aproximações interessantes ao tempo narrado. Receio que  desta vez não seja esse o caso. Recorrendo ao arsenal do revisionismo (uma nota, o uso deste termo refere-se a uma escola de interpretação histórica e não às polémicas do movimento operário no início do século XX) para traçar um retrato amargo da sua experiência pessoal, Marcelo Ribeiro cavalgou uma caricatura da luta contra o Estado Novo e do processo revolucionário, que vem ocupando um espaço cada vez mais central na narrativa da modernidade portuguesa. 
Por último, a referência "às consequências de um par de anos de medidas económicas tão absurdas quanto contraproducentes" é um elemento tão recorrente deste tipo de narrativas que merece um reparo curto. A economia portuguesa cresceu cerca de 4% em 1974 e decresceu cerca de 2,6% em 1975.  Num contexto de crise da economia mundial, elevação muito rápida dos salários e descolonização acelerada. Não será abusivo argumentar que vivemos actualmente uma crise económica mais séria e grave, com consequências mais gravosas sobre os trabalhadores e os sectores mais pobres da população, sem que alguém se lembre de classificar de "absurdas" as medidas económicas tomadas pelo governo. Para não ir mais longe, a nacionalização dos prejuízos do BPN teve um impacto sobre as contas públicas portuguesas muito superior ao de qualquer medida adoptada durante o processo revolucionário. Mas é conveniente falar da catástrofe económica provocada pela revolução, para se mantenha um silêncio olímpico acerca das condições em que se formaram os grandes grupos económicos durante o Estado Novo e a sua recomposição durante as privatizações do cavaquismo. E será porventura isso, a economia política do cavaquismo, que explica as oscilações da interpretação histórica. Dizia Francisco Martins Rodrigues - um dos fundadores da extrema-esquerda portuguesa - que o salazarismo queria dizer simplesmente capitalismo português. E se assim for, não são de estranhar as permanências ou o eterno retorno dos mesmos de sempre. A interpretação dominante do PREC é a que mais convém a uma oligarquia cuja maior qualidade é a de saber durar. É contra essa interpretação e contra essa oligarquia que se torna imperativo escrever.

34 comentários:

Anónimo disse...

Uma ou duas achegas:
A banalização revisionista, na linha dos discursos contra-revolucionários do PREC, faz das várias “esquerdas” revolucionárias uma só. Caracteriza e uniformiza para simplificar, para que deste modo as características simplificadas caibam no seu mapa ideológico do PREC. Para que se encaixem também na lógica da cruzada sanguinolenta à moda franquista que os Elp’s, MDLP’s, Marias da Fonte criaram naquela (sua) construção de uma situação de pré-guerra civil. A contra-revolução não ganhou no 25 de Novembro, a contra-revolução começou a ganhar no Verão Quente e continuou, como bem disseste, a ganhar com o VI Governo, o Eanes e os primeiros governos constitucionais.
Lembrar ainda o “Caso Walraff” onde se percebe como os vencedores do 25 de Novembro (Morais e Silva, Eanes, Pires Veloso e Galvão de Melo) andavam a par do MDLP ou ainda a necessidade que o Soares teve de ter o Howard Wilson a contradizer o que a Judith Hart (deputada trabalhista) disse quando visitou Portugal (disse que o perigo de atentados à democracia estava mais do lado da direita do que da esquerda). Para além de garantir a contradição, garantiu também o apoio militar britânico em caso de guerra civil.
A contabilidade da violência é normalmente estúpida, convém no entanto relembrar que os cenários de caos e violência tiveram origem nos bandos terroristas em que os ex-PIDES, ex-legionários, militares e empresários contra-revolucionários e que os danos, os mortos e os feridos são facto suficiente para o provar. A esta guerrilha se juntavam os “moderados” na recuperação da oligarquia.
Vale a pena pois escrever contra a gaveta onde encerraram o PREC e donde não se cansam de tirar visões e revisões contra uma memória histórica e política do PREC.

Um abraço

Tiago A.

Rui Bebiano disse...

Não podia estar mais de acordo, Ricardo. E não o digo só por simpatia. Como dizia o outro, «xtava lá e axexti».

Joana Lopes disse...

Ricardo, escreveste «O» post que se impunha. O texto do MCR terá sido o pretexto, mas foste bem para além dele.
A diabolização do PREC e a consequente «bondade» sem mancha do 25 de Novembro passaram, a pouco e pouco, do campo da direita para grande parte da chamada esquerda. Talvez não ainda na década de 90 mas certamente na actual. Será que (já) é possível debater a fundo esta questão? Espero que sim.

Miguel Serras Pereira disse...

Camarada Ricardo,
houve sem dúvida no PREC qualquer coisa que permanece ainda hoje vindouro: uma vontade de participação democrática directa e igualitária, que se traduziu no assombroso movimento das comissões de trabalhadores (enfrentando não só os "patrões" como muitas vezes, e muito explícita e duramente, as estruturas sindicais estabelecidas e o PCP), comissões de moradores, uma multiplicidade enorme de focos de auto-organização prefigurando um auto-governo novo.
Mas houve também uma tentativa constante de boa parte da extrema-esquerda por sabotar a unidade infra/supra-partidária desse "poder popular", por o reconduzir a formas que permitissem à forma do "partido revolucionário" e da "vanguarda organizada", por marca o seu lugar dirigente no regime que a sua lógica de organização, de relação com a "multidão" ou a "classe", prefigurava.
A reconversão posterior de numerosos líderes da extrema-esquerda, identificando o regime normalizado pelo 25 de Novembro, com a "democracia" e nela fazendo as suas carreiras, é menos descontínua do que parece com a concepção que, durante o PREC, faziam do "poder popular" - é também coerente com a sua aspiração, igual antes e depois, a funcionários e profissionais políticos investidos da competência de administrar uma sociedade classista e oligárquica.
Não quero alargar-me, mas aproveito para recomendar aqui a leitura de "A Reolução Impossível" de Phil Mailer (Afrontamento, 1978) sobre estas e outras vicissitudes.
Finalmente, um aspecto de pormenor: é um exagero inverosímil dizer que a deriva FP 25 foi uma resposta ao bombismo do ELP e do MDLP: foi antes um sintoma do desespero da parte de elementos "vanguardistas" desempregados e consagrou a seu modo a natureza profundamente anti-popular que marcou, em graus diversos, diversos grupos da "extrema-esquerda".

Abraço divergente da tua análise, mas solidário dos teus propósitos. Com a amizade e a camaradagem que sabes

miguel sp

Joana Lopes disse...

Miguel,

(Um aparte, com um sorriso: acho uma certa graça ao facto de estar mais de acordo com o Ricardo, que ainda não tinha nascido, do que contigo com quem andei por aí a conspirar e a cindir…)

Começando pelo fim: também julgo que não se pode considerar que as FP’s tenham sido uma resposta às bombas da direita, mas discordo dos termos com que pareces qualificar as motivações de todos os seus membros. Mas não vou por aí, é secundário.

Continuando de baixo para cima. Uma das coisas que me «irritou» no texto do Marcelo foi ele não referir – e tu também omites - que há pelo menos tantos ou mais ex-PC’s do que elementos «esquerdistas» dos anos 70, que fizeram e estão a fazer carreira no PS/Governo. Basta pensar em todos os Pina Moura’s, Mários Linos, Zitas Seabra, «rebanhos» (sem ofensa) de assessores e adjuntos, administradores de empresas municipais, etc., etc. Ou seja: origens de carreira ou carreirismo estão em todos os ex-, não são apanágio dos esquerdistas de 74-75.

Indo agora ao mais importante: julgo que exiges ao PREC, a posteriori, o que ele nunca poderia ter sido, com o condicionalismo histórico e a curta duração que teve. Não havia modelo que não passasse pela tentativa de criação de partidos revolucionários ou vanguardas organizadas. Não houve tempo para que algo fosse criado, se queres mesmo o fundo da minha opinião ou da minha frustração «histórica». Foi interrompido pelo 25 de Novembro e por aquilo que o condicionou. Por esse motivo, e por mais politicamente incorrecto que isso hoje seja, continuo a considerar que Novembro foi uma derrota para o longo prazo - inevitável, talvez, mas real. Nunca levei muito a sério o «perigo» de Portugal ser um satélite da URSS e continuo a pensar que estaríamos hoje bem pior sem os radicalismos que o PREC teve – houve conquistas que ninguém conseguiu ainda matar. E note-se que isto nada tem de nostálgico. Prefiro o nosso PREC à Transição espanhola, ponto.
Tens toda a razão na valorização que fazes das Comissões de Trabalhadores e similares. Como sabes (et pour cause…), a minha pertença a pseudo-vanguardas partidárias cessou em Agosto de 74. O que ficou, e que foi fundamental e uma experiência única, foi a militância, 24h/dia, numa Comissão de Trabalhadores. Teria sido desse tipo de experiências que algo de verdadeiramente novo poderia ter saído (nisso concordamos), mas num processo muito mais longo. O quê? Infelizmente nunca o saberemos.

Miguel Serras Pereira disse...

Joana,
começo por dar-te razão: a minha omissão dos ex-Pc arrependidos. Essa omissão deve-se a razões puramente subjectivas, que não a tornam menos incorrecta: a demasiada evidência que assume aos meus olhos. Quanto ao resto, penso que esse fenómeno deve ser analisado à luz da mesma lógica (ambição governante) que levou à reconversão de muitos ex-esquerdistas.
O que permanece de vindouro no passado do PREC também não nos divide, e a minha experiência na comissão de trabalhadores do "Século" creio que terá tido muito em comum com a tua. E, sim, acabou com o 25 de Novembro, que foi, sem dúvida, um retrocesso enorme e que, deixando subsistir as organizações da extrema-esquerda, assinalou sobretudo a liquidação e repressão dos espaços de autonomia que os excediam e transbordavam.
De acordo também com o que dizes sobre a Transição espanhola, o que me distancia de algumas formulações do Ricardo é o que nelas pode sugerir que a extrema-esquerda terá cometido erros, mas ia no bom caminho, quando a verdade é que, na sua acção organizada, os partidos com que era identificada e que se reclamavam alternativos constituíam modelos de lógica hierárquica e classista, de reprodução ou reciclagem da menoridade política e da subordinação laboral das classes populares e trabalhadoras. Assim, juntamente com o PCP, e por vezes como caricaturas dos traços mais autoritários deste, levaram a que muita gente, ainda que com cepticismo, desse o benefício da dúvida - ou investisse como mal menor - a plataforma dos Nove ou às invocações pluralistas do PS, pois era visível que as organizações "revolucionárias" tendiam, para parafrasear a grande Rosa, a conceber a "democracia socialista" não como aprofundamento das liberdades democráticas e sociais já conquistadas, mas como "supressão de toda a democracia".
Por fim, como o Ricardo e como tu, penso que não devemos esquecer o PREC nem folclorizar a sua imagem. Mas só o faremos bem na condição de não o mitificarmos ou confundirmos com os partidos da extrema-esquerda a que me referi (e também não, é claro, com o PCP).
Abraço para ti
miguel sp

Joana Lopes disse...

Afinal, estamos bastante de acordo, Miguel...

Retornado de Angola disse...

A revolução do 25 de Abril foi meia revolução.

Depois de Angola ser abandonada, os bancos nacionalizados e umas herdades ribatejanas e alentejanas ocupadas, faltava pouquinho!

Era só adiar um anito o 25 Novembro.

Era o suficiente para a revolução ser completa: mais um anito e a nossa "cultura" ficava mais rica.

Ricardo Noronha disse...

Miguel, já li o livro de Phil Mailer, que é engraçado mas um pouco frágil a dada altura. O desafio seria precisamente identificar possibilidades estratégicas a partir da existência do grande movimento popular organizado em comissões de moradores, trabalhadores e outras. E eu penso que esse livro - como aliás o jornal «Combate» nos seus editoriais - foram longe de menos nessa direcção.
Ou seja, por contingências de várias ordens - desde logo as condições de luta da clandestinidade, que favoreceram a dispersão orgânica em vários grupos isolados e desconfiados uns dos outros, todos eles com pretensões vanguardistas - a perspectiva de uma revolução social sem tutelas partidárias foi incapaz de se afirmar como um campo político consistente, capaz de disputar o rumo dos acontecimentos. Esse campo ficou entregue à concepção golpista da revolução social sobre a qual escreveu o Jorge V.
Quanto às FP 25, elas surgiram oficialmente em 1980, num contexto de recrudescimento da extrema-direita (desde logo a campanha presidencial de Soares Carneiro) e não na sequência imediata da campanha do Otelo.
http://pt.wikipedia.org/wiki/For%C3%A7as_Populares_25_de_Abril
A esse propósito, é interessante o livro "Guerrilha no asfalto", que certamente conhecerás.
Eu queria apenas sustentar no post que a luta armada de extrema-esquerda foi posterior ao bombismo da extrema-direita e justificado (pelos seus defensores, naturalmente) pela eventual ameaça de um golpe militar levado a cabo por oficiais dessa área.

Anónimo disse...

Ricardo Noronha,

sabemos os dois das divergências que mantemos. Isso não me impede de lhe dizer que, em termos teóricos e dialécticos, está muito à frente dos seus colegas escrevinhadores, esses sim, claramente novembristas (cobrindo esta categoria, como é óbvio, mil e um matizes). O que me deixa sem perceber por que será que tanto se identifica com eles (falo aqui em termos políticos, claro).
Deixo-lhe apenas uma pergunta: acha mesmo que qualquer movimento de massas que procura realizar uma revolução socialista pode abdicar de uma direcção? Repare, falo para si que parece ter bem presente toda a complexidade das tarefas revolucionárias, ou seja, repressão da reacção e transformação do velho, ou seja, negação e posição, ou seja, superação. Tarefas simultâneas e concomitantes. Não acha que chegado a este ponto está apenas a exprimir os seus desejos e a abandonar a capacidade de analisar a realidade, de que afinal dá mostras? Será essa a factura a pagar para manter certas solidariedades políticas?
Só uma nota, marginal. A sociedade não se transforma segundo a vontade das pessoas.

Aniceto Azevedo

Ricardo Noronha disse...

Caro Aniceto Afonso.
Seria necessário um post mais longo para lhe dar a conhecer tudo o que penso sobre o assunto, mas vou tentar resumir.
Na minha humilde opinião, as "tarefas socialistas" da revolução - expropriar os sectores estratégicos da economia e planificar uma transição, que subtraia o seu funcionamento à determinação mercantil para a subordinar a cálculos de utilidade social - não são concretizáveis a partir de um centro dirigente.
O que pode existir - e aí a minha ambiguidade é plenamente assumida porque não tenho ideias excessivamente sólidas sobre o assunto - é um conjunto de pessoas melhor colocadas do que outras para identificar a natureza dessas tarefas e o combate político que gira em torno delas. E essas pessoas podem agrupar-se em partido e procurar ganhar para os seus pontos de vista o conjunto do movimento. Suponho que a isso poderemos chamar uma vanguarda.
Outra coisa é a vontade de dirigir. Repare que se as instâncias do movimento considerarem necessário delegar tarefas em certas pessoas, incluindo as de coordenação, devido a contingências da luta, isso poderá ser aceitável e até necessário. Mas essas tarefas devem ser revogáveis a qualquer momento e desprovidas de privilégios. Como nos soviets russos em 1917, diga-se.
Outra coisa, substancialmente diferente, é o processo que leva o partido a substituir-se à classe, a direcção ao partido, os organismos executivos à direcção e o secretário-geral aos organismos executivos. Quando nos damos conta, já existe todo um trajecto de carreira delineado a partir da militância partidária e a política transforma-se num expediente administrativo e/ou repressivo.
Essa especialização das funções de direcção prepara as condições para que uma nova camada burocrática ocupe o poder e construa um capitalismo de Estado. Geralmente, essa é a antecâmara de uma contra-revolução. Ou de onde acha você que vieram Gorbachev e Ieltsin?
Penso que este debate ganha mais se girar em torno de casos e problemas concretos - a revolução russa, a guerra civil espanhola, a revolução portuguesa, etc...
Um dos elementos fundamentais teria que passar pela escala da revolução - será possível "construir o socialismo" num âmbito estritamente nacional? Eu penso que não e em Portugal concretamente tenho quase a certeza que não.
Estou disponível para continuar este debate, com todos os interessados. Para satisfazer o João Aguiar, até podemos começar a discutir as implicações da lei do valor e da sua crise.
Uma nota marginal - dizer que "a sociedade não se transforma segundo a vontade das pessoas" é daquelas leis escritas na pedra que não adiantam nada a propósito de coisa nenhuma. Evidentemente que não se trata de projectar no plano do espírito o que depois bastará concretizar no plano da matéria. Esta "vontade" diz respeito ao sentido das transformações históricas (mais igualitárias e democráticas, por exemplo) e ao empenho na sua concretização. Necessariamente, a "vontade" tem também de funcionar num plano de cálculo pragmático e antecipação estratégica. Mas deve também responder a aspirações mais profundas e amplas.
Porque se fosse apenas uma questão de nos "adaptarmos às condições concretas" não seria necessário equacionar uma revolução. O parlamentarismo chegaria plenamente.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Ricardo,
inteiramente de acordo com a tua observação: "a perspectiva de uma revolução social sem tutelas partidárias foi incapaz de se afirmar como um campo político consistente, capaz de disputar o rumo dos acontecimentos. Esse campo ficou entregue à concepção golpista da revolução social sobre a qual escreveu o Jorge V[aladas]".
No entanto, isso não invalida que, para se afirmar, "a perspectiva de uma revolução social sem tutelas partidárias", teria de vencer ou ultrapassar o obstáculo efectivo constituído pela "concepção golpista da revolução social" e pelas suas organizações.
Abraço para ti

msp

AVISO À NAVEGAÇÃO: apareceu neste caixa de comentários um sabujo estalinista que dá pelo nome de Aniceto Azevedo e que, desde os meus tempos no 5dias, investe a intervalos para me chamar "novembrista" - isto, apesar de inicialmente, eu lhe ter com toda a paciência explicado, para além talvez do que devia (mas não sabia que alimária sectária tinha pela frente), não só as minhas ideias sobre o PREC e o 25 de Novembro, como também as grandes linhas da minha trajectória política antes e depois de 1975, antes e depois do 25 de Abril.
Cuidado com o caluniador canino e tchekista, que é falso e tenta morder a quem recue vendo-o arreganhar os dentes.

msp

msp

Zé Neves disse...

ricardo,
aniceto azevedo, e não aniceto afonso.
abç

Anónimo disse...

Ricardo Noronha,

chamo-me Aniceto Azevedo. Repito: Aniceto Azevedo.
De facto, a conversa seria longa.
No entanto, apenas duas nótulas. Eu não elimino a vontade enquanto móbil da acção histórica. Por favor, perceba isso - e não se apresse demasiado. Como é óbvio, falava de algo mais profundo. Não é a vontade que determina, em última instância, as grandes transformações na história. Repare, Ricardo Noronha, que idealismos há vários: desde o clássico, o da consciência; ao do Schoppenaeur, o da VONTADE, justamente. And so on. Por favor, perceba que isto não é expurgar a vontade da história. Descontada toda a boa vontade (lá está ela…) do poeta, definitivamente não «é pelo sonho que vamos». Nem... pela vontade.
Faz muito bem a pergunta, Ricardo Noronha: de onde vêm Gorbatchov e os outros «democratas»? Isto, em primeiro lugar, é a prova de que houve restauração (mesmo que não o reconheça em palavras). A sua resposta, entretanto, centra-se nos mecanismos internos do funcionamento do partido. Tudo é explicado através das estruturas partidárias. Ora, isso, para mim, não é satisfatório, tem que ir mais fundo. A verdade é que tudo isso tem uma raiz económica (que, obviamente, penetra o partido, o estado, etc, e que retroage sobre a sociedade), representa certos interesses em presença - no caso, certas relações mercantis subsistentes, não eliminadas (mas ainda não dominantes, ainda subordinadas ao socialismo, ao plano, clandestinas, de mercado negro, de segunda economia. Diga-me, acha que esta fase, prolongadíssima, como mostra a experiência soviética, é evitável, pode ser apagada no decorrer do processo? Não me parece que pense assim...). Não há tal coisa como a boa sociedade de um lado e o estado usurpador do outro. (Dialéctica, Ricardo Noronha, dialéctica). Um tal raciocínio é pobre, até porque a sociedade soviética não era um bloco monolítico, havia segmentos restauradores, capitalistas, mercantilistas, etc. Muitas vezes fala-se como se «o povo», em geral, quisesse caminhar como um bloco para o socialismo...
Sim, talvez fosse interessante convocar o João Aguiar para o debate. Se ele alguma vez falou em lei do valor, fez muito bem, porque essa é uma perspectiva decisiva. Mesmo na transição, no socialismo.

Cumprimentos.

Aniceto Azevedo

Miguel Serras Pereira disse...

Ricardo,
gostaria de sublinhar a importância que atribuis a qualquer coisa como: "O que pode existir - e aí a minha ambiguidade é plenamente assumida porque não tenho ideias excessivamente sólidas sobre o assunto - é um conjunto de pessoas melhor colocadas do que outras para identificar a natureza dessas tarefas e o combate político que gira em torno delas. E essas pessoas podem agrupar-se em partido e procurar ganhar para os seus pontos de vista o conjunto do movimento. Suponho que a isso poderemos chamar uma vanguarda".
Perfeitamente de acordo, embora não saiba se "vanguarda" é o melhor termo, carregado de conotações equívocas como está. Mais ainda, penso que essa organização, plataforma, grupo de intervenção, não só pode exercer um papel legítimo, como é, sob uma forma ou outra, uma condição necessária, embora não suficiente, da democratização radical das instituições e do poder político. Mas concebo estes colectivos como força de orientação interior ao movimento social e não sua direcção (tal como tu, suponho), e distingo entre esse tipo de organização ou "partido" e o partido como órgão de exercício e detenção do poder. A diferença pode parecer subtil, mas é profunda e carregada de consequências, porque se opõe à cristalização de uma direcção à parte, ainda que inicialmente mandatada para certas funções. Os cidadãos mandatados para o desempenho de certas funções - além de reogáveis, etc.- não seriam representantes de um partido, mas delegados dos órgãos ("conselhos") da democracia governante, e seria perante estes órgãos e os seus membros e não perante o "partido".
Nada disto subestima a necessidade de organizações ou colectivos como o que evocas, sendo evidente, por outro lado, indispensável que esses colectivos se organizasse internamente prefigurando o regime de autonomia e autogoverno generalizados que propõem. Todos os passos que dermos nesse sentido de organização e viabilização da nossa vontade de autonomia são de saudar, e não está excluído sequer, embora a questão não possa ser decidida a priori, que tenham de ser dados apenas fora das formas já existentes (sindicatos, colectivos de luta e de opinião, etc.), desistindo da sua transformação.

Abraço solidário

miguel sp

Ricardo Noronha disse...

Desculpas aos dois Anicetos mas a fonética pregou-me uma partida.
De acordo Miguel.
Quanto ao que diz o Aniceto sobre a relação entre Estado e sociedade penso que nós sabemos pouco sobre essa dialética precisamente devido à natureza do estado soviético. De qualquer das formas os coveiros do socialismo real não vieram das suas margens (o mercado negro, os elementos de restauração mercantil, etc.), mas do seu centro: do politburo, das forças armadas e do gosplan. E isso significa que um bloco substancial e seguramente maioritário da camada dirigente soviética chegou à conclusão que ganhava mais com o capitalismo privado do que com o capitalismo de Estado.
Mas tudo isto são debates nossos e agora. Porque durante décadas negou-se a existência de tal coisa como uma "camada dirigente soviética" e qualquer dialética entre Estado e sociedade que não fosse a harmonia e a comunhão de interesses.
Mais importante ainda é distinguir na experiência soviética o que foram factores específicos daquela formação social (a dimensão do país, o grau de desenvolvimento económico e social à data da revolução, a velocidade do crescimento económico, a burocratização e centralização, etc...) do que possam ser problemas mais gerais da transição socialista. Os exemplos dados pelo Aniceto parecem-me pertencer mais ao primeiro grupo do que ao segundo. E volto a colocar a questão - é possível equacionar a transição para o socialismo num só país?
Peço aos camaradas que se esforcem um pouco mais no que diz respeito à lei do valor. O comunismo é a negação da lei do valor e não a sua exaltação por motivos epistemológicos. A burguesia não precisa de ser convencida de que o valor das mercadorias resulta do trabalho nelas incorporado. E está bem consciente da crise da lei do valor, que se aprofunda à medida que cresce a composição orgânica do capital e aumenta exponencialmente a produtividade do trabalho complexo.
Trata-se precisamente de identificar nessa crise as possibilidades de uma superação e os elementos necessários para a levar a cabo. Entender o socialismo como a afirmação plena da lei do valor equivale a caminhar alegremente no sentido de um capitalismo de estado.

Anónimo disse...

Ricardo Noronha,

1 - a sociedade não tem centro e margens. Isso é uma visão demasiado redutora, esquemática e mecanicista. A sociedade é um organismo vivo, é o resultado de múltiplas relações e interacções. Na URSS, o mercado negro, os segmentos mercantis, os kulaks expropriados, a burguesia derrotada sem meios de produção mas com o know-how e a preparação técnica, política e económica de séculos, todos eles interessados na restauração, não eram "margens". Eram membros activos de um todo social, de uma classe dominada, mas que ainda não desaparecera enquanto tal - e por isso mesmo era dominada. Essa classe tinha peso social, dinamismo político, apoios internacionais, algum espaço de manobra, e lutava (dentro, é certo, dos limites que as forças e possibilidades próprias do socialismo conseguiam impor). Primeiro militarmente, depois associando-se aos apelos trotskistas para levar adiante uma revolução anti-burocrática (a burocracia, NESSE MOMENTO HISTÓRICO, era a defesa avançada da revolução. Note bem: não estou a falar no processo como um todo, nem a dizer que isto é o desejável. Considero é que é uma fase - muito prolongada e inevitável - de qualquer período de transição), depois sabotando a indústria, depois aproveitando a invasão nazi, etc, etc, finalmente ganhando posições de topo, no estado e no partido, e restaurando o capitalismo (a mera passagem de um capitalismo de estado a um capitalismo privado foi o que se deu nas "revoluções coloridas" de há uns anitos. Não confunda isso com a envergadura da RESTAURAÇÃO do capitalismo na URSS). O partido e o estado reflectiam estas contradições, não eram e nunca serão um bloco estanque.
2 - sendo assim, sim, é possível o socialismo num só país (como foi possível o capitalismo num só país, quando a França revolucionária se defendeu da Santa Aliança). Mas atenção: não porque tal seja UM PROJECTO IDEAL OU DESEJÁVEL, mas porque durante um certo tempo (não sabemos quanto) a revolução defende-se contra a reacção internacional. Defendendo-se, defende a sua dimensão internacional e alimenta a luta internacional. Perecendo, afoga e mata a própria luta internacional, a própria revolução mundial.
3 - "Entender o socialismo como a afirmação plena da lei do valor equivale a caminhar alegremente no sentido de um capitalismo de estado". Ninguém falou nestes termos, Ricardo Noronha. O que é preciso pensar a sério (não ultrapassando pelo desejo as reais dificuldades da transição) é até que ponto, em que medida e em que modalidade subsiste a lei do valor no socialismo. É esse o "esforço" teórico (por si exigido) que importa hoje fazer.

Aniceto Azevedo

PS - o estilo forçosamente rapsódico desta troca de ideias talvez não permita que nos entendamos sobre todos os aspectos da questão. Creio no entanto que, no geral, fica bem patente o que nos une e o que nos separa. Sendo que, devo reafirmá-lo, não me parece que o Ricardo Noronha se confunda com o ambiente político deste blogue (e sim, eu sei que cada elemento sustenta as suas próprias posições. O que não é impeditivo de se observar nelas uma certa unidade...)

Anónimo disse...

Ricardo Noronha,

1 - a sociedade não tem centro e margens. Isso é uma visão demasiado redutora, esquemática e mecanicista. A sociedade é um organismo vivo, é o resultado de múltiplas relações e interacções. Na URSS, o mercado negro, os segmentos mercantis, os kulaks expropriados, a burguesia derrotada sem meios de produção mas com o know-how e a preparação técnica, política e económica de séculos, todos eles interessados na restauração, não eram "margens". Eram membros activos de um todo social, de uma classe dominada, mas que ainda não desaparecera enquanto tal - e por isso mesmo era dominada. Essa classe tinha peso social, dinamismo político, apoios internacionais, algum espaço de manobra, e lutava (dentro, é certo, dos limites que as forças e possibilidades próprias do socialismo conseguiam impor). Primeiro militarmente, depois associando-se aos apelos trotskistas para levar adiante uma revolução anti-burocrática (a burocracia, NESSE MOMENTO HISTÓRICO, era a defesa avançada da revolução. Note bem: não estou a falar do processo como um todo, nem a dizer que isto é o desejável. Considero é que é uma fase - muito prolongada e inevitável - de qualquer período de transição), depois sabotando a indústria, depois aproveitando a invasão nazi, etc, etc, finalmente ganhando posições de topo, no estado e no partido, e restaurando o capitalismo (a mera passagem de um capitalismo de estado a um capitalismo privado foi o que se deu nas "revoluções coloridas" de há uns anitos. Não confunda isso com a envergadura da RESTAURAÇÃO do capitalismo na URSS). O partido e o estado reflectiam estas contradições, não eram e nunca serão um bloco estanque.
2 - sendo assim, sim, é possível o socialismo num só país (como foi possível o capitalismo num só país, quando a França revolucionária se defendeu da Santa Aliança). Mas atenção: não porque tal seja UM PROJECTO IDEAL OU DESEJÁVEL, mas porque durante um certo tempo (não sabemos quanto) a revolução defende-se contra a reacção internacional. Defendendo-se, defende a sua dimensão internacional e alimenta a luta internacional. Perecendo, afoga e mata a própria luta internacional, a própria revolução mundial.
3 - "Entender o socialismo como a afirmação plena da lei do valor equivale a caminhar alegremente no sentido de um capitalismo de estado". Ninguém falou nestes termos, Ricardo Noronha. O que é preciso pensar a sério (não ultrapassando pelo desejo as reais dificuldades da transição) é até que ponto, em que medida e em que modalidade subsiste a lei do valor no socialismo. É esse o "esforço" teórico (por si exigido) que importa hoje fazer.

Aniceto Azevedo

PS - o estilo forçosamente rapsódico desta troca de ideias talvez não permita que nos entendamos sobre todos os aspectos da questão. Creio no entanto que, no geral, fica bem patente o que nos une e o que nos separa. Sendo que, devo reafirmá-lo, não me parece que o Ricardo Noronha se confunda com o ambiente político deste blogue (e sim, eu sei que cada elemento sustenta as suas próprias posições. O que não é impeditivo de se observar nelas uma certa unidade...)

João Valente Aguiar disse...

Respondendo ao desafio do Ricardo Noronha e sem pretender esgotar o debate só duas notas para reflexão. Serão um pouco longas...

1- não vou abordar detidamente a questão da teoria do valor no capitalismo. Vocês sabem - ou deveriam - que não há capitalismo sem exploração da força de trabalho e sem a apropriação do excedente económico (produzido pela classe trabalhadora) pela burguesia. É esta relação que define o capital e que o José Neves desconversou aí há uns tempos dizendo que eu estava a definir o capital como uma coisa. E ele sabe perfeitamente que nunca foi nesse sentido que eu a defini...
As tretas do Negri e do Lazzarato sobre o conhecimento são pura asneira. Desde quando o conhecimento não é uma mercadoria? Desde quando é que conhecimento não é, em qualquer sociedade, produto de um processo e de uma actividade (trabalho concreto)? Desde quando é que o conhecimento não é produto de relações sociais assalariadas no capitalismo? Se o conhecimento balizaria as trocas económicas e se a teoria do valor não tivesse qualquer validade então importaria explicar porque todas as grandes empresas continuam a reger-se em torno da extracção e apropriação de mais-valia? E porque, noutra latitude, continuam a definir os seus resultados financeiros anuais em termos monetários - expressão, passe o pleonasmo, monetária de valor? Por último, se tb se considerar o conhecimento como uma entidade apriorística e que tudo explica então em que o Negri e o Lazzarato se diferenciariam dos autores burgueses (Castells, Bell, etc.) que advogam essa mesma tese central?

João Valente Aguiar disse...

2- qto à URSS, ao socialismo e à teoria do valor. Não tenho - será que alguém tem? - ideias definitivas sobre o assunto. Contudo, uma coisa é certa. Não é após a tomada do poder de Estado que a lei do valor se desvaneceria. Isso seria bom demais para ser verdade. A lei do valor (estamos aqui a falar das categorias e das dinâmicas que ocorrem no capitalismo - exploração, mais-valia, propriedade privada...) existirá enquanto as relações sociais de produção não superarem as célebres dicotomias entre trabalho manual e intelectual, entre direcção do processo de trabalho e tarefas de produção no processo de trabalho, etc.

Nesse sentido, apesar de na União Soviética se ter instaurado um regime socialista e se em diversos domínios se atingiu o socialismo, a verdade é que enquanto a base da contradição de classes persistir - o valor - o pêndulo irá para um lado ou para o outro. E neste aspecto o Aniceto Azevedo (que não conheço de lado nenhum mas ao ouvir alguém como o Miguel do Vale das Macieiras a qualificá-lo de "sabujo estalinista" só me posso solidarizar com o Aniceto Azevedo) tem razão.

De facto, a implosão veio de dentro do PCUS como fala o Ricardo Noronha, mas esses dirigentes que traíram eram tb (sobretudo) expressão de correlações de força nas lutas de classes na URSS e de dinâmicas económicas ali existentes.
O próprio Stáline em 1952, portanto 35 anos depois da Revolução!, dizia que ainda existiam (fortes) elementos de produção de valor na União Soviética e que a encruzilhada para o socialismo na altura era a seguinte: ou a propriedade colectiva se fortalecia e com isso iria minando a base económica para uma possível restauração capitalista, ou então expandir-se-iam as relações mercantis e, ainda mais relevante, as relações sociais assentes na clivagem ainda mais pronunciada entre detentores (não legais mas REAIS) dos meios de produção e a classe trabalhadora. E a verdade é que as relações assentes na produção e extracção de valor - que nunca terminaram absolutamente na URSS (só numa sociedade comunista tal aconteceria e acontecerá) - expandiram-se fortemente a partir da segunda metade dos anos 50.

O próprio Maurice Dobb, economista marxista britânico, viu isso nos anos 60 e tem até uma comparação estatística interessante sobre o assunto. Contudo, o Dobb desvalorizou a coisa na altura, achando que o que se estava a viver era uma espécie de mini-NEP. Portanto, nesta questão e independentemente de outros juízos (sobretudo políticos) que se possam fazer, a verdade é que a encruzilhada enunciada pelo Stáline em 52 tinha o seu sentido. Isto não significa que se tenha de se ser stalinista, mas que a própria lei do valor foi sempre algo discutido em inúmeros quadrantes e que ela estará no centro dos debates sobre a transição para o socialismo. O que isto tb serve para mostrar é que a lei do valor ainda era uma realidade que preocupava fortemente (A) a direcção (ou pelo menos parte dela) da União Soviética e do Partido Comunista, logo, a lei do valor nunca será algo que se possa suspender ou "proibir" por decreto mas que, como a experiência histórica mostra, demorará mto tempo a ser plenamente superada. Evidentemente, só superada se o poder dos sovietes se expandir e se, no plano económico, a produção e apropriação do excedente económico passe a ser propriedade colectiva dos trabalhadores a uma escala nacional e internacional considerável.

Outros debates centrais e relacionados com esta questão da transição são a questão do Estado e da esfera simbólico-ideológica. Talvez noutra altura...

Ricardo Noronha disse...

Detendo-me apenas na questão do conhecimento e do valor, penso que o João está a confundir. O argumento é que a incorporação crescente de elementos não quantificáveis na esfera da produção - como o conhecimento - torna problemático o funcionamento da lei do valor, que tem como referência fundamental um elemento quantitativo, como é o tempo. Ou seja, o trabalho concreto de um programador informático é "trabalho complexo" equivalente a muitas e muitas horas de trabalho simples. Basta pensar no impacto da informática e da automatação sobre a produção industrial, que aumentaram massiçamente a produtividade do trabalho.
Aniceto, a ideia de que a transição socialista é historicamente simétrica à afirmação do modo de produção capitalista parece-me o mais jacobino dos equívocos. E se as sociedades são complexas, elas são igualmente atravessadas por mecanismos de poder e relações sociais de dominação. Centro e margem, topo e base, o que você quiser. Mas estar à procura do burguês oculto em cada burocrata parece-me um exercício inútil e fantasioso. É possível governar um capitalismo de Estado enquanto se fala em socialismo e explorar a classe trabalhadora pretendendo estar apenas a dirigi-la. Mas a semântica não resolve o problema das relações sociais concretas que se formam a partir da dominação de uma nova classe social. E seria interessante levar mais longe o exercício. Em que medida e a partir de que altura é que a orientação política do PCUS passou a ser determinada pela burguesia em vias de restauração?

Anónimo disse...

Ricardo,

eu nunca quis fazer passar a ideia de que "a transição socialista é historicamente simétrica à afirmação do modo de produção capitalista". Parece-me óbvio. Ou me expliquei mal, ou foi o Ricardo que não entendeu bem o exemplo que dei.
Também nunca me ouviu dizer, de certeza, que a complexidade dilui ou faz evanescer as relações de poder. O pós-modernismo não é muito cá de casa.
"Em que medida e a partir de que altura é que a orientação política do PCUS passou a ser determinada pela burguesia em vias de restauração?" Grande questão esta, Ricardo. Cheia de interesse, de implicações importantes, e de resposta impossível no quadro destas breves trocas de impressões. A respeito disto, invoco a complexidade, claro. Não para fugir à questão, mas apenas para sublinhar o facto de que o problema não é linear. Partilho da ideia de que no PCUS, simplificando muito, co-existiram sempre duas linhas que, no fundamental, expressavam a luta de classes que atravessava a sociedade soviética: a socialista (as abordagens da lei do valor nunca desapareceram das suas análises, diga-se de passagem) e a restauracionista (representante política da segunda economia, de algumas camadas burocratizadas, etc), que assumiu diferentes formas, diversas palavras de ordem (com um eixo comum, porém: a "democracia" e a "liberdade") e conteúdos específicos consoante a conjuntura. Neste contexto de luta, o pêndulo foi oscilando em favor da segunda. Kruschov e Gorbatchov constituíram momentos de forte ofensiva por parte dessa corrente, que a cada passo favorecia e estimulava a segunda economia. Objectivo: engrossar o peso social dos elementos liberais, fomentar zonas de mercado fora do âmbito do plano e do socialismo, enquadrar politicamente as suas reivindicações não-socialistas, capitalistas. Preparar a restauração (pois é, não puderam deixar de fazer este trabalho: quebrar as baias socialistas que lhes tolhiam a "liberdade" de acção). Ao que parece, saíram-se bem.
A história: contradições. Sempre renovando-se, sempre em movimento.

Cumprimentos, Ricardo.

Aniceto Azevedo

Anónimo disse...

Mas há de qualquer das formas um erro na formulação do problema, Ricardo Noronha. Em rigor não se pode falar de uma "burguesia em vias de restauração". A restauração era o objectivo das camadas da segunda economia justamente porque o socialismo soviético (mesmo no quadro das suas insuficiências) impedia as relações capitalistas e a formação de uma classe burguesa estruturada. Não foi a burguesia em vias de restauração que restaurou a burguesia. A restauração do capitalismo por parte das camadas da segunda economia serviu a formação de uma classe burguesa.

Aniceto Azevedo

João Valente Aguiar disse...

Ora bem, sobre o conhecimento e o valor.

Mesmo que fosse verdade que existiria uma dificuldade em o mensurar - o que não é verdade pois TODAS as empresas capitalistas que fabricam produtos que aplicam grandes doses de conhecimento conseguem manter o seu esquema de lucratividade idêntico aos de outras firmas com produtos que aplicam menos conhecimentos (o que só prova que o esquema de transformação de valores em preços de produção e destes em preços de mercado se mantém válido) - mas como estava a dizer, mesmo que essa quantificação estivesse em vias de ser solapada, acho que o Ricardo está a errar o alvo.

O outro Ricardo, o David, é que considera o valor como adveniente do tempo de trabalho, do número global de horas. Ora, para o Marx a quantidade de tempo socialmente necessário não é o valor, mas a magnitude do valor. Ou seja, a quantidade de horas de trabalho é a expressão NUMÉRICA do valor. E então o que é o valor? Basicamente, trabalho abstracto provindo das actividades de indivíduos desprovidos de meios de produção e do controlo das funções de direcção e gestão do processo de trabalho. Ou seja, a questão fundamental do valor advém do desapossamento evidenciado na produção e não pelo número de horas. A quantificação é um processo necessário ao valor, mas não constitui o seu fulcro. São antes as relações sociais de produção que definem a cisão do trabalhador em relação aos recursos sociais de produção que determinam o valor e não a sua posterior quantificação (que como disse acima não acabou). O valor é, assim, trabalho humano apropriado em condições de desapossamento dos meios de produção, em condições de exploração.

O trabalho abstracto actua como o marcador geral, como a bússola das mercadorias. Por outras palavras, é o trabalho indiferenciado, homogeneizante e mero «dispêndio fisiológico de força de trabalho humana», simples «dispêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos e mãos humanas» (Marx, 1990, p.55) que sustenta, então, uma propriedade social indutora e reguladora da produção e troca de mercadorias: o valor.

Hipoteticamente, no socialismo poderemos ter uma noção do número de horas necessárias para produzir um determinado bem e ele não ter necessariamente de se transformar numa mercadoria portadora de valor, de mais-valia. Precisamente porque não existiriam relações de exploração, pois os produtores associados deteriam a produção colectivamente nas suas mãos. Tal não significaria que não pudessem contabilizar a produção de bens, mesmo não existindo valor (enquanto mais-valia, claro).

No fundo, nota-se neste tipo de discussões uma assunção que a meu ver é errónea e acalenta misticismos sobre o próprio capitalismo. Por outras palavras, existe mto uma noção de que hoje o capitalismo seria uma sociedade altamente marcada pelo conhecimento, ao contrário do que teria ocorrido no passado. É verdade que quantitativamente hoje existe uma maior aplicação de conhecimento à produção e circulação de mercadorias, mas a questão deve ser colocada mto mais em torno da quantidade e menos na qualidade. Ou vocês acham que a máquina a vapor não precisou de conhecimento para ser produzida? Ou a electricidade? Ou o automóvel? E por aí fora.

Em suma, o conhecimento é uma mercadoria como qualquer outra no capitalismo. Desviar as atenções para o conhecimento como deus ex machina do funcionamento do capitalismo é esquecer a mercadoria fundamental neste modo de produção - a força de trabalho.

Anónimo disse...

Nem mais, João Aguiar.
Misticismo, aliás, que vai a par de outro misticismo: o de que acabou a produção material, o de que vivemos no reino da desmaterialização ou da economia imaterial.

Aniceto Azevedo

Anónimo disse...

João Aguiar,

repare que eu não digo que o erro do segundo misticismo de que falei reside em não considerar uma produção material ao lado de uma imaterial. Isto é muito importante, e eu não me expliquei o suficiente. A minha crítica é de raiz. Os fluxos de informação, a produção digital ou com meios digitais, os fluxos financeiros, etc, NÃO são imateriais, são novas formas de materialidade, são propriedades da matéria. As pessoas é que acham - e daí o misticismo - que a matéria se reduz a corpos e a objectos. Lembra-se da querela de Lénine com o empiriocriticismo? No campo da física dos inícios do século XX, dizia-se que, devido à energia, a matéria tinha desaparecido.
Nos idos anos 70 do século passado, dizia-se que muita gente tinha substituído "Ler o Capital" por ler "O Capital". Em relação ao misticismo que aponta, João Aguiar, parece que hoje muita gente deixou de ler "O Capital" para ler "As aventuras da mercadoria".
Desculpe a entrada extemporânea na sua troca de impressões com o Ricardo.

Aniceto Azevedo

Miguel Serras Pereira disse...

Caro e Grande camarada Ricardo,
notável como a caixa de comentários deste teu post sobre o PREC acabou nos últimos dias por se tornar teatro de uma sabatina erudita de dois teólogos e martelos de hejes não menos eruditos em torno da lei do valor e da materialidade da infra-estrutura do modo de produção capitalista.
O traço talvez mais notável do duo é o esquecimento ou lugar subordinadíssimo a que reduzem a luta de classes e a acção política em matéria de repartição do produto. Talvez porque, se tivessem presente que, em última instância, é a luta de classes e a acção política dos trabalhadores versus a classe e a economia política de classe dos capitalistas (privados ou estatais) a determinar a repartição do produto e o custo da força de trabalho, não poderiam continuar a tentar alicerçar na teoria económica e nas suas leis as suas especulações pós-estalinistas e fossem levados a tirar algumas consequências desagradáveis para a sua vontade de ortodoxia e suas consequências em matéria de organização da ideia, já formulada pelo Zé Neves, de que as relações sociais de produção são relações de poder - políticas, portanto - e de que, sobre a conjugação através da luta de classes e da acção política dessas relações de poder, não há objectividade económica nem infra-estrutura material - ou sequer modo de produção - que prevaleçam ou não cedam, dissolvendo-se no ar.

A democracia (socialista, porque democrática) é o autogoverno igualitário dos trabalhadores e do conjunto dos cidadãos, tomando nas suas mãos o poder político (no qual se inclui a direcção da economia), e não a aplicação de uma teoria ou análise económica correcta por um punhado de especialistas ("revolucionários profissionais") cujo poder e influência é inversamente proporcional à autonomia, liberdade e igualdade dos cidadãos.

msp

João Valente Aguiar disse...

Caro Aniceto Azevedo,

Tb concordo com as suas proposições. E como é óbvio nunca se intromete. O objectivo é o diálogo e não o que o senhor Miguel tem Serras na Pereira procura dizer. Aliás, acho que fomos ambos cordatos com o Ricardo Noronha e que se procurou discutir racional e cordialmente diferentes pontos de vista.

Abraço

Ao Miguel Serras Pereira,
não venha dar lições de marxismo a quem pouco sabe ou leu sobre ele. A lei do valor tem uma dimensão estrutural que é inquestionável e que determina em grande medida o valor das mercadorias (da força de trabalho à maquinaria, etc.). É óbvio que a luta popular e assalariada influi. Não por acaso, para dar um exemplo histórico, os salários no fordismo foram bem mais elevados do que no paradigma toyotista/neoliberal actual precisamente, fruto da luta operária. Contudo, a dinâmica de mercadorizar a capacidade e a disponibilidade humana para trabalhar é algo que está incorporado na dinâmica D-M-D'. Claro que é uma dinâmica de classe, mas da burguesia e que tem características sobretudo estruturais e menos políticas. E ninguém aqui, eu ou o Aniceto Azevedo, enveredou pela via unilateral que você tomou: desligar a dinâmica da mercadorização e da acumulação de capital da luta de classes.

Já agora Miguel Serras Pereira, diga lá em que contexto o anarquismo e outras correntes anacrónicas do género alguma vez fizeram e venceram num processo revolucionário? Acertou, está a ver. ZERO. E não venha com a conversa demasiado gasta que a espontaneidade das massas foi arrebatada pelas burocracias leninistas. Em termos hipotéticos, se tal tivesse acontecido seria interessante explicar porque a maioria da classe trabalhadora (e outras camadas populares, como na China, Cuba, Vietname, etc.) apoiou fervorosamente as organizações políticas de vanguarda. Outro ponto fraco dos anarquismos em moda neste blog é que não explica porque o ponto de inicial maior força é "derrotado" por uma força inferior e aparentemente que não teria mto a ver com a revolução. Por outras palavras, se fosse verdade que as massas operárias espontaneamente fizeram a revolução (constituiram sovietes, tomaram conta de fábricas, conquistaram o poder político, começaram a socialização dos meios de produção, etc.) e se os chamados Partidos de vanguarda nada teriam a ver com isso, então como explicar que a primordial força motriz da revolução - uma pura e unilateral espontaneidade das massas - cederia perante as (mal-)chamadas burocracias? Como explicar então que, se a classe sem partidos, sem organizações, sem dirigentes se organizou, mobilizou e consciencializou, foi "derrotada" pelos partidos leninistas? Claro que a resposta é ainda mais simplista: foi a violência dessas "burocracias". Resposta mto pobre e, no mínimo, muitíssimo bem recebida pela burguesia. No fundo, se a espontaneidade era tão forte e poderosa capaz de começar a construir uma nova sociedade, como forças políticas infinitamente inferiores numericamente conseguiriam destruir tal força colossal? E, ainda mais relevante e passando do registo estritamente hipotético para a realidade concreta, como explicar que essa espontaneidade tenha apoiado (e apoiado-se) essas, repito, (mal-)chamadas "burocracias"? Para os anarquismos a ligação das massas com os partidos operários e comunistas só actos de prestidigitação e/ou manipulação poderiam justificar essa "sinistra" ligação. Pudera, se o anarquismo não tem qualquer ligação à luta e às vidas concretas dos assalariados há dezenas de anos...

Miguel Serras Pereira disse...

JVA,

em primeiro lugar, sé verdade que penso que o socialismo libertário (anarco-sindicalismo, algum sindicalismo revolucionário, cooperativismo radical, etc.) tcontinua ainda hoje inspirador e abriu perspectivas que permanecem vindouras. Diria o mesmo de outras correntes socialistas e radicais: os "conselhistas" avant la lettrra russos de diversas filiações, o espartaquismo, o POUM de Andreu Nin e Joaquin Maurín, os movimentos conselhistas, a experiência dos sovietes insurreccionais húngaros em 1956, etc.
Mas nunca fui, que me lembre, espontaneísta e, pelo contrário, há anos que insisto na necessidade da organização política dos revolucionários. A alternativa que oponho ao leninismo não é a ausência de organização (que, de resto, desarmaria os trabalhadores e o conjunto dos cidadãos perante os novos senhores ou aspirantes a detentores dos meios de produção sob um regime de propriedade classista reciclado), mas uma organização democrática que prefigure e seja desde o início uma actualização dos objectivos das lutas e da acção política. Para que os movimentos ou partidos apostados numa revolução socialista, porque radicalmente democrática, não sejam os coveiros e algozes da democracia revolucionária - como aconteceu na URSS, na China, em Cuba, etc., etc.
Mas o que me custa é que você não use um mínimo de boa fé nesta discussão. Deturpa ou ignora tenazmente o que eu disse noutros comentários desta mesma caixa. Acusa-me de espontaneísmo depois de eu ter, em diálogo com o Ricardo, defendido explicitamente a necessidade de organização… E podia multiplicar os exemplos. Receio que tenha sido contagiado pelos métodos abjectos de difamação e calúnia que o seu interlocutor AA usa como armas predilectas. Ou que, como ele e outros, ache que vale tudo menos debater seriamente seja o que for que possa pôr em causa a sua condição de engenheiro da organização científica da sociedade "comunista". Assim, ou muda de maneiras, faz um esforço no sentido de se portar como republicano e democrata, ou melhor será que fiquemos por aqui.
Resta-me remetê-lo e aos frequentadores do Vias para o comentário acima em que insisto na necessidade da organização. (comentário de 15 de Julho de 2010 11:30).

msp

João Valente Aguiar disse...

«Assim, ou muda de maneiras, faz um esforço no sentido de se portar como republicano e democrata, ou melhor será que fiquemos por aqui.»

Agradeço a ameaça feita, à boa maneira anarcóide, e que mtas vezes já foi feita aqui por si e pelo seu amiguinho José das Neves. Fique então a discutir com as paredes, já que faz tanta questão (e tanto gosto) nisso. Passar bem na sua vidinha e neste seu cantinho... Continue a forrá-lo com o seu ego pequeno-burguês e anti-comunista primário assente em ódios e em linhas puras e um dia ficará só você e o José Neves (talvez o paranóico anti-PCP, e especialista em hermeneutica Avantiana, do João Tunes tb o ature) a discutir um Castoriadis e um Negri que ninguém conhecerá nem quererá saber para nada. Como disse acima, passar bem...

Ao Ricardo Noronha, a única pessoa que valia a pena ler e discutir deste e neste blog. Só espero que continue com o seu bom trabalho (tanto o de doutoramento como o teórico-político), independentemente de não concordar consigo em mtos aspectos.

Zé Neves disse...

Caro João Valente Aguiar,

Peço-lhe que me deixe em paz. Debater coisas, melhor ou pior, mais ou menos, tudo bem. Andar por aí, a torto e a direito (do vias de facto ao cinco dias), a insultar-me é que começa a ser desagradável.

Sinceramente, naõ percebo bem que ódio é que o move contra mim. Não só não nos conhecemos pessoalmente, como ainda há alguns meses o João escrevia-me emails a propor que organizássemos livros em conjunto.

(email ao qual não tive a amabilidade de responder, peço-lhe desculpar por isso, mas não creio que a minha falta de educação dê para todo este desvario anti-nevisiano, como você lhe chama).

Nessa altura, em que me escreveu o tal email, já eu tinha publicado a minha tese de doutoramento e já era clara a minha simpatia com as teses autonomistas e com o pensamento de negri e hard, entre outros. não me recordo de ouvir o joão na altura insultar-me deste modo e devo presumir que então não me consideraria assim tão seu "inimigo".

quanto às questões de conteúdo, por assim dizer, a discussão sobre o valor e a sua mensurabilidade ou não é bastante importante e interessante. se me permite duas sugestões de leitura, que de certo conhecerá, deixo-lhe o Harry Cleaver e nomeadamente aquele que é o melhor texto que li sobre o tema, o livro do M.Postone.

passe bem

Anónimo disse...

Caro João Aguiar,

pode ser que a nossa troca de impressões com o Ricardo Noronha, cordialmente, continue noutras circunstâncias. Num espaço onde, sem interferências, se respeite minimamente a preparação teórica e científica e onde não se venha, à partida, "matar a semente de dragão". Aqui, decididamente, não.
Em relação aos novembristas, meu caro, é deixá-los gritar à vontade.

Um abraço (e cumprimentos para o Ricardo),
Aniceto Azevedo

Ricardo Noronha disse...

Camaradas e amigos
é desconcertante que uma discussão sobre a lei do valor acabe nesta troca de galhardetes. Penso que toda a gente abusou dos comentários laterais sobre as leituras e intenções dos seus interlocutores e isso veio perturbar a argumentação mais interessante que, cada um à sua maneira, procurou desenvolver.
Estas caixas de comentários não servem para isso. Ou antes, servem, mas poderiam servir para muito mais.
Proponho que continuemos o debate noutra caixa de comentários, de um post que vou publicar daqui a pouco. E que nos concentremos no essencial sem nos dispersamos pelos juizos acerca da implantação do anarquismo entre as massas, o meu doutoramento (está quase) ou as patifarias da burocracia.

Miguel Serras Pereira disse...

Caríssimo Grande Camarada Ricardo,

A discussão sobre a teoria do valor, a repartição do produto, etc., por um lado, e a acção dos agentes colectivos em presença é, sem dúvida, interessante, e obriga-nos a pensar e a olhar para além da economia, a negar o primado da economia, ainda que da economia marxista se trate.
Quando tiver tempo, tentarei alinhar um pouco melhor as consequências da ideia seguinte: não é a economia que determina o lugar da política ou o teor da instituição. É antes a economia que é, em cada caso, "cultural" (no sentido antropológico do termo, claro) e politicamente definida e delimitada, por um lado, pela instituição social global e as relações de poder que esta instaura, e, por outro lado, pela acção instituinte, da qual a luta política explícita faz parte (mas sem que a esgote), dos agentes em presença (classes, organizações diversas, etc.).

Dito isto, embora aprecie o teu esforço de repor as condições de um debate racional e democrático,
acontece que eu não discuto com tipos que, além de distorcerem sistematicamente os meus argumentos, para começo de conversa, e antes de refocilarem nas suas falsificações, me chamam "novembrista" ou escrevem sobre mim coisas como o AA - por exemplo, isto:

Comentário de Aniceto Azevedo
Data: 15 de Maio de 2010, 15:56
"(…) um auto-retrato, o do miguelista SP, saborosíssimo e revelador. Revelador da inanidade intelectual do sujeito (Daniel Guérin, Henri Lefebvre) e, por decorrência, do carácter mitómano que o marca, comparando-se, ele que rasteja aos bés da burguesia, com a águia Luxemburg. E é simplesmente um impostor quando a reduz a uma «democrata radical», ela que lutou toda a vida pelo socialismo e pela organização revolucionária das massas para derrubar o capitalismo, o qual tão pressurosamente, aqui como em Israel, na Colômbia como no Iraque, em Miami como em Novembro de 1975 em Lisboa, o miguelista SP defende e apoia por detrás de uma imensa pirotecnia de feição «democrata radical»".

Também não falo com quem segue o exemplo do sabujo estalinista citado, como entendeu fazer o marxista científico Aguiar, tentando rivaliza com ele na abjecção moral e no ódio à democracia (sistematicamente concebida em termos que reproduzem os dos clássicos contra-revolucionários do século XX).

Assim, fico com impaciência à espera do post prometido e disponho-me, em sendo caso disso, a intervir com as minhas dúvida e alvitress para a sua caixa de comentários, mas evitando tomar em conta os urros policiais e/ou as ruminações académicas neo-lyssenquistas dos comissários anti-populares de serviço.

Abraço para ti

miguel sp