30/04/14

Uma clivagem determinante



Confesso-me pouco esclarecido pelo esclarecimento público aqui avançado.
 Deixando para outra oportunidade (ela certamente não deixará de se apresentar) o comentário à "luta política e por carreiras que surge dentro das universidades atiçada pela escassez dos financiamentos" ou a questão de saber quem pretende "criar na universidade capelinhas que reflectem a luta política", importa esclarecer que não corresponde à verdade factual que o convite para participar no Itinerário histórico do 25 de Abril incluísse a informação de quem o organizava. 
O convite que recebi incluía toda a informação disponível no site da iniciativa, com a excepção da que nos informa que a entidade organizadora é o Governo de Portugal. Ei-lo:
Tão pouco se compreende porque razão seria uma "forma retorcida de fazer política" sem "qualquer fundamento sério" afirmar que a coordenação científica de uma iniciativa promovida por uma entidade equivale a uma colaboração com essa entidade. O significado do verbo "colaborar" não se altera apenas porque alguém sente desconforto com a sua utilização em determinado contexto. Raquel Varela colabora com o governo na realização de uma iniciativa comemorativa do 25 de Abril, com as funções de coordenadora científica. O que escrevi aqui sobre o assunto não diz mais nem menos do que isso e eu continuo a não duvidar das boas intenções dos participantes na iniciativa.
É difícil compreender como é que se pode considerar que todo o trabalho intelectual e público deve estar sujeito à crítica pública e depois apresentá-lo como um trabalho técnico comparável às escolhas de um engenheiro. Mas o mais caricato é que Raquel Varela desqualificou há poucos dias António Araújo como "um fanático conservador que é assessor de Cavaco Silva", utilizando um juízo político para passar por cima dos seus argumentos historiográficos e denunciar o "uso da mentira que aparece legitimada como simples opinião ou crítica livre" (e isto depois de, na sua resposta publicada no Ípsilon, agradecer-lhe a leitura do seu livro e afirmar crer "que o debate pode ser muito interessante"). Afinal de contas os critérios para avaliar o que cada um escreve sobre a Revolução Portuguesa são exclusivamente científicos, exclusivamente políticos ou variáveis consoante as conveniências de cada momento?
Confesso que não tenho capacidades para acompanhar a velocidade furiosa a que os argumentos e esclarecimentos são avançados, alterados, refutados e recauchutados, pela mesma pessoa e no espaço de poucos dias. O que escrevi sobre o processo revolucionário terá os seus méritos e deméritos, como todos os trabalhos historiográficos, mas nunca me ocorreu chamar às minhas opiniões "científicas" para evitar debatê-las em pé de igualdade com quem pensa de outra maneira. Assumo a esse respeito uma posição defendida num livro colectivo acerca da Revolução Portuguesa:
Esta aparente diversidade na celebração do 25 de Abril encerra em si uma clivagem determinante da sociedade portuguesa hoje e a sua tradução nas ciências sociais é idêntica: regime democrático e luta pela igualdade social, a dicotomia que atravessou o biénio 1974-75 em Portugal continua a atravessar - objectivamente - a sociedade hoje, bem como a historiografia e a politologia sobre a Revolução dos cravos. 

A rua no centro da actualidade



As medidas de austeridade aplicadas pelo Governo nos últimos dois anos suscitaram o reacender dos conflitos sociais e a multiplicação de manifestações, recolocando a rua no centro da actualidade política e, com ela, a PSP e as instâncias judiciais enquanto entidades responsáveis, em momentos complementares, pela manutenção da ordem pública. O encontro destes dois mundos não sucedeu sem atritos. A emergência de novos tipos de reportório de acção política, para lá dos trâmites legais, embateu com uma força policial que não poucas vezes assume o papel de guarda pretoriana do poder e de instrumento de repressão política.

Ainda que tal raramente surja na opinião pública, a PSP é com recorrência censurada por organismos internacionais pelo uso de uma violência injustificada e pela incompetência no exercício das suas funções. Todos os anos se multiplicam situações aparentemente banais e de rotina, como operações stop e resolução de conflitos, que terminam com jovens mortos sem ninguém saber muito bem como ou porquê. Há ainda diversos indícios e denúncias de que a actuação da polícia varia consoante o perfil social e étnico das populações em causa, intervindo quotidianamente em zonas consideradas «problemáticas» ou «perigosas» com níveis de violência e intimidação que não aplica noutros lugares.

O confronto com manifestações e outro tipo de protestos serviu como base para a reformulação das práticas policiais. Tal como qualquer empresa, as autoridades policiais visam dotar-se de novas tecnologias e formas de gestão, por um lado, mais eficazes e, por outro, mais «humanas». As recentes condenações de agentes policiais traduzem, precisamente, a reconstrução de uma força policial que será tanto mais eficaz quanto menos arbitrária se apresentar. São diversos os exemplos da envolvência do aparelho repressivo de estado (polícia e militares) num sistema mais vasto de controlo social, que inclui entidades públicas (ministério público e tribunais) e privadas (empresas de segurança): a expansão da videovigilância a várias cidades do país, a criação de bases dados de militantes políticos e consequente recurso a processos judiciais, ou a aquisição de drones. Não se trata de abandonar o recurso ao cassetete. Mas sim que, antes deste, seja mobilizado todo um conjunto de dispositivos preventivos que induzam no indivíduo a consciência dos altos riscos de uma determinado ato. Em suma, uma estratégia mais baseada na paranóia do que na porrada.

O objetivo deste observatório é realizar uma análise depurada deste processo. Tal passa não só pela recolha de textos, artigos e imagens mas igualmente pelo acompanhamento de processos judiciais em curso contra camaradas nossos.