30/04/10

Um Post de Fernanda Câncio e a "Douta Ignorância" do Primeiro-Ministro

Gostaria de indicar brevemente duas ou três pistas suegridas pela interrogação que remata de um post cortante que a Fernanda Câncio publica no jugular.
Depois de começar por escrever: "…quando vejo o primeiro-ministro e o líder do principal partido da oposição, depois de reunidos para discutir a situação difícil do País e, presumo, formas de dela sair, perfilarem-se para anunciar a aplicação imediata do PEC mencionando com especial ênfase a alteração das regras do subsídio de desemprego, espero que me digam, de imediato, em que é que isso diminui o défice ou contribui para alterar a situação da dívida externa"; e depois de explicar, continuando, por que razões a "lei [que temos é] já suficientemente draconiana", de tal modo "que é difícil distinguir o proposto do que está em vigor", a Fernanda deixa a questão cuja deixa me parece valer a pena explorar um pouco mais: "De modo que, e volto a perguntar, que foi mesmo este anúncio e serviu para quê?"
Eis os primeiros passos que gostaria de arriscar por conta própria por estas pistas.
1. Com efeito, para que serve um anúncio, apresentado como sendo uma novidade, que fundamentalmente reitera e confirma a determinação de manter o regime já presente? Eu diria que, aparentemente e pelo menos, serve para o seguinte, que nada tem de despiciendo: normalizar a precariedade ou precarização, sublinhando que quem quiser trabalho terá de o aceitar cada vez mais desprovido de direitos e garantias "sociais", e que quem o não quiser assim deverá ser castigado com crescente dureza e obrigado a aceitar não só que a realidade é como é, mas que este como é coincide, por imposição da razão económica, com o que deve ser. Como o outro dizia do "socialismo real" perante os menos aquiescentes, é esta a "realidade económica", e não há outra, nem outro "princípio de realidade". O facto, também sublinhado por Fernanda Câncio, de o primeiro-ministro ter declarado, segundo o Público,"não saber qual o impacto da redução do subsídio de desemprego na economia" é um indício mais da "douta ignorância" com que está decidido a defender o poder político da actual economia governante. A sabedoria hierárquica demonstrada consiste precisamente na validação que José Sócrates assim decreta, como que incondicionalmente, da subordinação da mão de obra efectiva ou de reserva ao regime económico estabelecido.

Jornalismo Económico

Eu até tenho uns amigos que são jornalistas económicos e não é deles que estou a falar porque eu sou como o Rui Pedro Soares e não deixo cair os meus amigos. Mas, com efeito, não evito o apelo generalizado: os jornalistas deveriam fazer aos jornalistas económicos aquilo que durante muito tempo fizeram - por snobismo e ignorância, mas fizeram - aos jornalistas desportivos: considerar que um tal jornalismo não é jornalismo. Isso ou o Sócrates mandar o Rui Pedro Soares correr com o Camilo Lourenço. Juro que de mim não ouvirão nenhuma crítica.

De como eleger um governo com o voto do povo para que se tomem medidas contra o povo - Ou o que podemos esperar de qualquer governo nos próximos anos

O título resume uma proposta da jurista Isabel Moreira. Mas vamos por partes. Em poucos meses o governo quebrou uma série de compromissos que constavam no contrato eleitoral mas eu não digo isto para acusar o governo de faltar à verdade da palavra dada ou coisa do género. O governo alega que mudou porque agora existe uma situação de crise que não conhecia antes (enfim, não vou dizer que não cola, que é para não dizerem que estou de má-fé neste post) e por isso o governo diz que é necessário mudar de programa e que a realidade não é estática e que portanto a verdade é uma coisa relativa e etcetra e tal. Eu também acho que a verdade é uma coisa relativa e essas coisas todas (palavra que acho). Mas chegámos a um ponto em que se começa a perceber que PS e PSD já não estão sequer a falar de como a verdade eleitoral tem uma relação de correspondência relativa com a verdade pós-eleitoral. Neste momento, é pura e simplesmente da contradição entre uma e outra coisa que estamos a falar. O post da jurista Isabel Moreira é apenas um exemplo. Ela escreve: "Há sempre qualquer coisa a melhorar. Desde logo a questão da estabilidade do poder em caso de governos de minoria, introduzindo, por exemplo, a figura da moção de censura construtiva. Já escrevi sobre isso. A instabilidade governativa é inimiga de medidas estruturais, impopulares, inimiga da economia, etc". Ora, não há aqui nada de relativo. Há pura e simples contradição. Tudo muito, muito molar. Com efeito, no raciocínio da Isabel Moreira há simplesmente isto: a jurista defende que é necessário ter um governo de maioria absoluta (ou de minoria especialmente protegida) e este governo, podendo apenas ser eleito com o voto da maioria dos portugueses (isto é, governo popular), é necessário para tomar medidas impopulares. Ou seja: a um momento de Verdade sucederá pura e simplesmente um momento seguinte de Falsidade. Mas o primeiro momento é carne (governo popular) e o segundo é peixe (governo impopular). Entre uma e outra coisa não há nada de relativo (um esforço mais se quereis ser vegetarianos!). É por estas e por outra que às vezes acho que os líderes populistas se arriscam a ser considerados mais democráticos do que os restantes...

Special Mou


Mourinho triunfou sobre o Barça matando o futebol, imitando o que a finança tem feito e continua a fazer à economia. Até à crise, vai ter o mundo dos pragmáticos que pisam a estética rendido a seus pés, especialmente os opinadores do rating para quem o futebol (só) existe no 90º minuto, o do resultado. E raramente o capitalismo dos tempos actuais terá encontrado melhor metáfora desportiva.

Histórias do PEC

Chego ao balcão, sento-me, peço uma imperial e um prego. O objectivo - além da imperial e do prego - é ver na tv o Barcelona contra o Inter. Ao lado, dizem-me: "O Mourinho vai dar cabo da paciência dos tipos". Meio à defesa, digo: "por acaso até estou pelo Barcelona". Resposta: "pelo Barcelona? Quero é que os espanhóis se lixem". Resposta minha: "Eu vivi uns mesitos lá por Barcelona". Resposta do tipo do lado: "Mais uma razão para que esteja contra eles!". Sorrio diplomaticamente e respondo: "Mas olhe que há muitos entre eles que nem se acham espanhóis; têm a mania que são catalães". Resposta do tipo: "Para mim são todos espanhóis". O jogo, entretanto, segue empatado a zeros. "Os italianos têm esta mentalidade... são óptimos a defender". (Nota 1: Depois do José Gil, o Herrera deve ter sido o tipo que mais facilmente conseguiu produzir um estereótipo nacional por dá cá aquela palha). Mas, ainda assim, respondo de novo: "Olhe que não está nenhum italiano em campo...". Resposta: "Sim, sim, mas é a táctica, amigo, é a táctica". Respondo de novo: "Mas olhe que a táctica é lá do Mourinho, ou não é?". (Nota 2: Por acaso não é só do Mourinho e aí está parte da especificidade Mourinho, embora os mourinhistas portugueses retenham apenas, de Mourinho, o perfil autoritário do treinador que "tem mão nos jogadores" e não o treinador que diz que prepara os jogadores para o imprevisto e lhes confere autonomia; só quem nunca jogou futebol, isso e a carrada de ex-futebolistas candidatos a futuros treinadores que andam a comentar nas televisões, é que acha que a táctica "é" do treinador. O Mourinho, a julgar pelo que sobre ele se leia além da palhaçada de artigos e livros sobre a sua capacidade de "liderança", saberá bem que a táctica não "é" do treinador). E insisti finalmente: "Afinal, está pelo Inter porque os tipos são italianos ou porque o Mourinho é português?". Resposta do tipo: "Ó amigo, eu nem gosto do Messi. O Ronaldo é muito melhor. Só é pena que passe a vida a divertir-se em vez de se concentrar apenas no trabalhinho". Deve ser por isto que preferiram o Figo para o anúncio...

29/04/10

Vestuário imodesto e terramotos - um estudo empírico

Há dias, o hojatoleslam Kazem Sedighi, um religioso iraniano, disse que as mulheres que se vestem "imodestamente" contribuem para os terramotos.

Jen McCreigh, uma estudante universitária norte-americana, decidiu realizar uma experiência para testar essa hipótese. As conclusões.

Default bancário - correcção

Este meu post de ontem era excessivamente catastrofista - o risco médio de default dos bancos portugueses é de cerca de 3% (em vez dos 30% que tinha escrito inicialmente).

Ainda sobre o risco de default dos bancos


[Via Bussiness Insider]

A saída do euro (II)

O Daniel Oliveira escreve sobre o mesmo assunto. A respeito do comentário de um dos seus leitores, realmente há uma coisa que temos que ter presente - só faria sentido sairmos do euro se, com a saída, a dívida pública portuguesa (actualmente denominada em euros) fosse também redonominada para "novos escudos" (o que, na prática, seria o equivalente a uma espécie de default da dívida) - ou então se renunciássemos mesmo ao pagamento da dívida externa. Caso contrário, se mudássemos para o "novo escudo" mas a nossa dívida continuasse denominada em euros, a provável desvalorização da nova moeda em breve iria atirar a dívida para a estratosfera.

A saída do euro

A opinião dominante entre os economistas é de que é quase impossível um país abandonar o euro - a ideia é que, se um país anunciar que vai sair do euro, toda a gente (antes dos euros serem trocados por "novos escudos" ou "novos dracmas") vai transferir correr ao banco transferir o seu dinheiro para contas noutro país (e hoje em dia isso é relativamente simples) provocando o colapso do sistema bancário.

No entanto, Paul Krugman hoje levanta uma questão - e se a crise bancária acontecer antes?

But now I’m reconsidering, for a simple reason: the (...) argument is a reason not to plan on leaving the euro — but what if the bank runs and financial crisis happen anyway? In that case the marginal cost of leaving falls dramatically, and in fact the decision may effectively be taken out of policymakers’ hands.

Actually, Argentina’s departure from the convertibility law had some of that aspect. A deliberate decision to change the law would have triggered a banking crisis; but by 2001 a banking crisis was already in full swing, as were emergency restrictions on bank withdrawals. So the infeasible became feasible.

Think of it this way: the Greek government cannot announce a policy of leaving the euro — and I’m sure it has no intention of doing that. But at this point it’s all too easy to imagine a default on debt, triggering a crisis of confidence, which forces the government to impose a banking holiday — and at that point the logic of hanging on to the common currency come hell or high water becomes a lot less compelling.
Agora, uma autocrítica - eu fui um adepto entusiasta da adesão ao euro, e estava convencido que era o primeiro passo para a criação dos "Estados Unidos Socialistas de Europa" (eu era um trotskista entusiasta na altura). Hoje em dia, continuo a achar que uma confederação socialista europeia ou, pelo menos, uma união económica com um orçamento comum significativo seria a melhor solução; mas estou cada vez mais convencido que tal é politicamente impossível, logo a segundo melhor opção talvez seja mesmo o regresso às moedas nacionais (repare-se que a economia portuguesa paraticamente parou de crescer desde a adesão ao euro). Se for assim, talvez a crise orçamente e bancária que está à porta seja uma benção disfarçada.

A crise como profecia auto-cumprida?

O Miguel Botelho Moniz e o Rui L. Castro, de uma ou outra forma, perguntam-se se as pessoas que acham que a crise foi criada artificialmente pelos mercados especulativos vão aproveitar a oportunidade de negócio e comprar dívida do Estado português.

Não sei se esse argumento fará grande sentido - creio que o que muitas pessoas acreditam é que a crise é uma profecia auto-cumprida: que a expectativa de "default" da Grécia e de Portugal (e eventualmente de Espanha, Irlanda e Itália) está a fazer subir os juros da dívida grega e portuguesa (para compensar o risco percebido), e que é exactamente essa subida dos juros (motivada pelo risco de default) que está à beira de realmente provocar o default.

Ora, para uma pessoa que pense assim, não faz sentido investir em dívida pública portuguesa - esse racioinio diz que são as expectativas dos mercados que estão a causar os problemas financeiros, mas não nega que, a partir desse momento, os problemas financeiros e o risco de default existem realmente.

Uma analogia - imagine-se que eu tenho dinheiro num banco (numa sociedade sem garantia estatal de depósitos),e acho que os negócios do banco são fundamentalmente sólidos, mas toda a gente mete na cabeça que o banco está à beira da falência e vai levantar o seu dinheiro. Faria sentido neste caso eu manter o meu dinheiro no banco (oua até reforçar a conta)? Não; a partir do momento em que toda a gente vai levantar o seu dinheiro, o banco vai rebentar, por melhores que sejam  (ou fossem) as suas contas, logo tenho é que me apressar para levantar também o meu.

28/04/10

Crise e cidadania

Cada vez que a crise aperta, o pessimismo depressivo aumenta. Nada mais natural, dir-se-á. Mas também, e será o pior, há um baixar de guarda em todas as vertentes da cidadania. Em vez de estratégias de respostas com projectos e a mobilização de vontades e brios, os governados sabem que os governantes vão aproveitar a oportunidade para questionar o adquirido e rasparem euros e cêntimos nas âncoras do Estado social. E nunca é aproveitada a crise como oportunidade, que é, de, impulsionando solidariedades, redistribuir os contributos consoante a capacidade para contribuir, tornando a sociedade menos desigual. Não, os bolsos que se atacam, os direitos que se corroem, são sempre os dos mesmos: os assalariados, os reformados, agora até os desempregados com direito a subsídio. Assim, falando dos partidos charneira dos governos, se o PS, desde Guterres, cristalizou a sua “identidade socialista” no assistencialismo aos deserdados pela intensificação da polarização dos lucros e da selva capitalista e financeira, o PSD, por sua vez, justificando a sua natureza classista, atira as responsabilidades dos problemas para as costas do Estado, propondo sempre e monotonamente a diminuição do seu alcance social. Do lado do PS, invoca-se que a regressão social é uma necessidade para viabilizar o Estado social, o que, no mínimo, é um paradoxo. Pela parte do PSD, não se disfarça a evidência que a pulsão insaciável pelas privatizações mais não visa que inventar novos mercados, mercantilizando os serviços que dão corpo aos direitos sociais. E o Estado, o grande ponto de unidade de interesses entre o PS e o PSD, na medida que alimentam as suas imensas clientelas de beneficiários das ocupações massivas e partilhadas, com ou sem alternância, do aparelho de Estado e dos aparelhos municipais, verdadeiras molas reais do poder político efectivo em Portugal, surge no debate público concentrando a aparente disparidade ideológica entre os partidos governantes. Mas entendendo-se, se for caso disso, como parece ter resultado do acordo saído da cimeira entre Sócrates e Passos Coelho e com bênção cavaquista que, de tão evidente, não necessita ser explicitada. Entretanto, os portugueses que trabalham, os reformados e os desempregados sabem que vão ficar mais pobres num país ainda mais injusto porque, enquanto apertam o cinto, os intocáveis, os das grandes fortunas, manterão as suas isenções de contributos para os sacrifícios, sob o argumento sofismático de que são eles, os ricos, que criam emprego e geram riqueza. E mais pobreza com mais injustiça social gera menos cidadania, menos democracia e menos interesse pelo valor supremo da liberdade. O que, evidentemente, e como costume e natureza, não incomoda as hienas dogmáticas do revolucionarismo e da violência como parteira da história. Pelo contrário, mais e pior crise, segundo os revolucionários de tacticismo democrático, aproximam o apocalipse redentor, o momento revolucionário. E para que este ocorra, julgam os dogmáticos teimando num engano recorrente, o desespero ajuda mais que a cidadania. Recusando-se a aprenderam que, olhando para as lições dadas pela história, a extrema-direita sempre soube melhor e mais vezes tirar as castanhas do lume das grandes decepções.

(publicado também aqui)

Assim, sim!

Um belo murro na mesa! Chega!

Justiça social à moda do PS

Adivinham quem o governo do PS resolveu sacrificar no altar, para apaziguamento dos mercados financeiros internacionais? Quem, segundo o governo do PS, deve ser responsabilizado pelo pagamento dos juros acrescidos sobre a dívida pública portuguesa? Os desempregados e aqueles que recebem prestações sociais, em particular pensionistas e recipientes do rendimento social de inserção. E os deputados do PS foram eleitos para isto?! Deviam ter vergonha.

Todos à rua no 1 de Maio! Vamos mostrar-lhes a nossa força!

Estes comunistas querem acabar com as criancinhas

Deixo um excerto da recensão a Commonwealth, de Negri e Hardt, que foi publicada no Wall Street Journal há já algum tempo...

"For the revolution to succeed, three supposedly corrupt forms of the common must be destroyed. Some of the harshest language in "Commonwealth" targets the family: Mom, dad and the kids might not know it, but they are part of a "pathetic" institution, a "machine" that "grinds down and crushes the common" with "the blindest egoism." Messrs. Hardt and Negri cry: "Down with the family!" The two other killers of the world's spirit: the corporation and the nation. When the multitude seizes "control of the means of production and reproduction," we're promised, the evil trio will wind up on Marx's ash heap of history.

As lições argentinas

Neste momento, Grécia, Portugal e se calhar grande parte da Europa estão à beira de um cenário semelhante à Argentina há verca de dez anos (p.ex., se um pais decidir sair do euro, quase de certeza que vai ter que congelar as conta bancárias durante alguns meses).

Assim, há pelo menos duas experiências argentinas que talvez também venham a ser copiadas (e que merecem, de qualquer forma, estudo atento):

 - a ocupação pelos trabalhadores de várias das empresas que abriram falência nessa altura

- a criação de "moedas alternativas" para compensar a escassez de moeda oficial

Não é só o Estado que pode ficar sem dinheiro (corrigido)

Nos últimos meses, dias e horas têm-se falado muito do "rating" da República Portuguesa, da "consolidação orçamental", do PEC,  etc., etc.

Mas parece que há outro sector que os mercados internacionais também acham à beira da falência (talvez ainda mais do que o Estado):


[gráfico roubado ao Bussiness Insider]

Basicamente, um CDS (credit defaul swap) é uma espécie de contrato que funciona como seguro contra incumprimento - se eu investir em CDS's  no valor nominal de 1000 euros sobre o banco X e esse banco falir (ou, por qualquer razão, não conseguir pagar as suas dívidas), recebo 1000 euros; no fundo, o valor de mercado dos CDS corresponde à probabilidade estimada da entidade em causa falir - se os CDS's dos bancos portugueses estão a ser transaccionados a 300 (o que quer dizer que um CDS no valor nominal de 1000 euros 10.000 euros custa realmente 300 euros), significa que os investidores acham que há 30% 3% de probabilidade dos bancos portugueses falirem (isto é uma média, claro - para alguns bancos, a probabilidade será maior que esta, para outros menor).

E, claro, se um banco português falir (ou andar lá perto), aí é que o Estado português vai também à falência (lembram-se do aval e garantias afins?).

27/04/10

Aproximam-se dias críticos

As hesitações da Alemanha estão a colocar a Grécia numa situação insustentável. O rápido agravamento das condições de financiamento do Estado Grego junto da banca e fundos privados efectivamente garante que este não conseguirá pagar as suas dívidas, parte das quais vence a 19 de Maio, a não ser que a União Europeia e/ou o FMI lhe façam empréstimos avultados urgentemente. O Estado Português está a ser arrastado para uma situação semelhante.

Os próximos dias poderão ser determinantes na definição do nosso futuro. Grécia e Portugal poderão ser obrigados ou a abandonar o euro, ou a implementar medidas draconianas para atingirem rapidamente o equilíbrio orçamental. Não duvido que o poder económico em ambos os países forçará os respectivos governos a optarem pela segunda via, obviamente exigindo ser excluídos dos sacrifícios a que querem obrigar os outros. O abandono do euro por parte de Portugal levaria inevitavelmente à nacionalização de quase todos os bancos, com a excepção daqueles que o Estado deixasse falir. Podem imaginar o pesadelo que tal seria para o poder económico em Portugal! Não admira, por isso, que este já se tenha começado a mobilizar de modo a assegurar a criação duma coligação efectiva entre PS e PSD que possibilite a antecipação e agravamento das medidas propostas no recente Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) da autoria do governo, como sacrifício ritual necessário ao apaziguamento dos mercados financeiros, FMI e UE. Neste contexto, as manifestações previstas para o próximo 1 de Maio poderão ter uma importância fulcral. É necessário demonstrar na rua a força da oposição ao PEC, deixando bem claro que qualquer tentativa para o implementar ou agravar as propostas nele previstas terá como resposta uma explosão da conflitualidade social.

Sobre o parlamentarismo branco

Se um tipo como Aguiar Branco cita Lenine, escolhendo um momento institucional e solene, no palco parlamentar e nas barbas de Cavaco Silva, como posso eu passar sem invocar o mestre de todos os mestres revolucionários? Mal parecia, atendendo às trajectórias políticas e partidárias tão diferentes que me distanciam do antigo ministro da justiça e candidato falido à liderança do PSD. Para mais, durante o PREC, ensinar Lenine em horário pós-laboral aos camaradas então mais atrasados em teoria e leituras foi uma das tarefas revolucionárias que me couberam em sorte. E que, como todas e tantas outras, cumpri com disciplina e fé. Pois quanto a Lenine e ao leninismo, tenho pergaminhos velhos e lustrosos que nada têm a ver com o fascínio incipiente que agora por ele nutre este barão provocador das hostes laranjas.

O grande problema de Lenine e do leninismo é que ambos só se adequam, se for esse o caso, a momentos históricos em que a política se centra e se decide pela brutalidade, pela violência, pelo terror, pela revolução ou por golpes. E, nesse sentido, Lenine e o leninismo entendiam-se e serviram (com a eficácia reduzida das particularidades da dimensão lusitana) nos momentos de desmantelamento da ditadura derrubada e na resposta à violência contra-revolucionária liderada por Spínola e outros. Como aprender com Mao, Giap e Che só fazia sentido se a perspectiva fosse a opção pela guerrilha de base camponesa (o que significou que, em Portugal, mesmo no PREC, o maoísmo e o guevarismo nunca tenham passado de excitações juvenis e … urbanas). Numa democracia estabilizada, em que o problema que se coloca é o seu aperfeiçoamento, não se questionando o regime mas sim a governação, citar Lenine, invocar Lenine, ou alimenta um jogo perverso de duplicidade entre democracia e revolução (em que a primeira só serve de “sala de espera” até que a segunda opção, a estimada, adquira condições objectivas e subjectivas), categoria de que dispenso incluir Aguiar Branco, ou então é recurso usado na área da retórica da ironia de alfinete. Ter-se-á, claramente, verificada a segunda hipótese. O que, sem a profundidade da autenticidade ou da oportunidade, teve o efeito do insólito. Sobretudo ao provocar risos nos companheiros parlamentares e leninistas que nunca invocam Lenine ali, na Assembleia da República, templo da democracia burguesa por quem o mestre dos mestres revolucionários nutria um profundo e coerente desprezo.

(também publicado aqui)

Da Criminalização da Precariedade à Banditização da Polícia

A propósito desta notícia que se pode ler no Público: O rapper português MC Snake, ou Nuno Rodrigues, não bebeu álcool nem consumiu drogas no dia em que foi perseguido e baleado por um agente da Polícia de Segurança Pública (PSP), em Lisboa. É pelo menos essa uma das conclusões da autópsia realizada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, cujo relatório foi remetido recentemente à Polícia Judiciária (PJ) e ao Ministério Público -, o Tiago Mota Saraiva formula no 5dias a pergunta que se impõe: E agora não seria de responsabilizar a fonte da PSP que afirmava aos jornais exactamente o contrário?
Esta interrogação do TMS sugere uma conclusão importante e de longo alcance.  Criminologistas, sociólogos e pensadores como Nils Christie, Loïc Wacquant ou Zygmunt Bauman, entre outros que poderiam ou deveriam ser citados,  têm insistido na deriva penal das sociedades ocidentais, na "indústria do controle"(Nils Christie), na tendência à reciclagem neo-liberal da culpabilização/criminalização vitoriana dos pobres e da miséria, na evolução que conduz do Estado-Providência ao Estado-Penitência (Loïc Wacquant), na erosão do espaço público convivial e democrático pelas paixões securitárias e a privatização que incita à busca de soluções individuais para problemas sistémicos (Zygmunt Bauman).
Mas o que a notícia e o seu comentário pelo TMS nos indicam é que é preciso ir mais longe, compreendendo, a favor das análises de autores como os referidos e da nossa própria experiência quotidiana, que a criminalização e segregação de camadas precárias cada vez mais amplas são acompanhadas do reforço das prerrogativas policiais e da justificação do seu recurso a meios que, invocando a defesa da lei e da ordem, violam os próprios princípios da legalidade estabelecida que inspiraram os direitos constitucionais clássicos, conquistados por lutas seculares de reivindicação social e política. Criminalizam-se as condições precárias e banditiza-se a polícia para combater o crime. A criminalização da inutilidade ou da subalternidade económicas e políticas programa assim, e legitima-a, a banditização da polícia.

O que dizer sobre Abril?

O Paulo Granja discorda e eu tento clarificar, mantendo a discordância, creio, e talvez aumentando a confusão. Então é assim: a Revolução de Abril pode ser entendida como uma Revolução que é património de todos os portugueses, é claro que sim. Pode mas não deve. Isto é, não vejo o que tenhamos (nós, os revolucionários, os puros, os da bayer) a ganhar com isso. Embora também não creia que tenhamos a ganhar com as tentativas de patrimonialização que dizem que Abril é do Partido X ou da ideologia Y, parece-me que erigir Abril em património nacional tem várias implicações problemáticas e que me preocupam. Desde logo, reduz uma revolução popular a uma revolução nacional. Depois, subordina o antagonismo de classe à unidade nacional. Em seguida, secundariza a dimensão internacional anticolonial e terciariza a importância de um ciclo de lutas e revoltas internacionais dos anos 60 e 70 em que se pode inserir Abril. Também desvaloriza a importância da resistência antifascista, na medida em que a torna simples "meio" para um "fim".

26/04/10

Uma Expressão de Duas Palavras

O autor de um desses posts irremediável e reincidentemente idiotas - exemplos vivos de que a patifaria, se espevita talvez o pior da esperteza, obnubila o melhor da inteligência - que, com demasiada frequência, estragam o interesse e o gosto com que muitos de nós continuamos a visitar o 5dias, esse autor, dizia eu, depois de publicar meia-dúzia de denúncias vociferantes, entremeadas com citações de Lenine laboriosamente descontextualizadas, contra os que, em seu entender, se servem da questão religiosa para afastar as massas dos combates verdadeiramente importantes (contra, por exemplo, blogues como o Arrastão, o jugular e o Vias de Facto, crismado "Rádio Miami") que ele próprio anima, sempre secundado pelo seu camarada Renato o Teixeira, esse autor, repito, recebe na sua caixa de comentários o seguinte apoio de outro denodado caçador de esquerdistas:

Realmente o Lénine era pragmático, objectivo e determinado.
No lugar de andar a envenenar o proletariado com guerrinhas religiosas, ele apontava o caminho para a libertação economica, social e cultural das classes trabalhadoras e laboriosas.
A fracturância pequeno-burguesa, muito ao estilo «sucialista» e «bloquista» gostam de arranjar guerras para distrair o povo dos reais problemas.
Quem quiser acompanhar a visita do Papa que vá e aproveite a tolerância de ponto que é concedida.
Quem estiver contra, muito bem, que vá trabalhar, ou dar um passeio de burro, sugestão aliás que dou de barato a esse Sr.Vale de Almeida, que é um sectário, intolerante e esquerdista da pior espécie.
Vá passear o seu burro, ó amélia!


E Salazar era antifascista porque não gostava do Rolão Preto

O João Galamba acha que o Aguiar Branco foi brilhante. Mas não tem razão. Qualquer concepção patrimonialista do 25 de Abril é um erro: mas, se isto é válido para quem "defende" Abril, também é para quem procura nacionalizar o dito Abril. Propriedade privada ou propriedade nacional, aqui como em tudo, não apresentam uma diferença assim tão grande entre si. O que interessa, em relação a Abril, é trabalhar no quadro de uma concepção não-proprietária da liberdade. Que celebre a revolução mais do que o regime, a libertação mais do que a liberdade. Sem a libertação não teríamos liberdade. E a libertação é por definição demasiado fluida para ser apropriada ou patrimonializada. De onde me situo, Abril são os inúmeros corpos que se comprometeram em lutas passadas contra a opressão. E essas lutas passadas não serão passadas se soubermos manter vivo o perigo que acarretaram. O que implica não termos simpatia por ter Aguiar Branco, num discurso pura e simplesmente táctico, a citar Lenine só porque quer dar uma de iconoclasta. (E por que não citou Cunhal?). Aguiar Branco, diga-se, não me irrita e o problema não tem que ver com ele directamente ou sequer com o PSD. Aliás, quanto aos efeitos do discurso de Aguiar Branco, uma coisa é certa: vai ser mais difícil começarem a dizer que o camarada Lenine era mais aterrador do que o Doutor Salazar depois da colagem de ontem. Com mais um esforço, ainda teremos deputados do PSD sob alçada da PSP.

Notícias da frente de batalha

O processo em que dez arguidos estão a ser julgados por ofensas a polícias numa manifestação realizada em Lisboa, faz hoje três anos, contém um relatório da PSP que identifica 30 cidadãos estranhos ao processo, com o seu nome e convicções ideológicas.
Estes indivíduos não são arguidos nem foram identificados no inquérito criminal da manifestação do 25 de Abril de 2007, mas aparecem identificados no respectivo processo, por alegadas ligações, na maioria dos casos, a movimentos anarquistas, de extrema-esquerda e ecologistas, que as autoridades associam àquela manifestação.
O documento começa por relatar factos da vida de cinco dos 11 arguidos, sem que nenhum dos imputados - tentativas de furto em supermercados, ruído na via pública... - os ligue àquele tipo de grupos. O único facto "político" ali descrito decorre da integração de uma arguida num grupo que, na tarde de 25 de Abril de 2007, atirou ovos e tomates contra um cartaz xenófobo do PNR, no Marquês de Pombal.
Não se ficando pelos arguidos, a PSP começou por identificar seis dos atiradores de ovos. Ao primeiro da lista, imputou o incitamento à realização de seis greves e manifestações, em duas escolas secundárias. Mas sublinhou o activismo político do jovem de forma mais curiosa: "Em 4 de Novembro de 2006, participou o extravio de documentos, entre os quais se encontrava o cartão de militante da Juventude Comunista Portuguesa", apontou a PSP.
Jornal de Notícias 

A revolução portuguesa e a transição espanhola

Este ano não ouve muito essa conversa, mas nos últimos anos era moda em certos sectores dizer que teria sido melhor termos tido uma transição "à espanhola" do que o 25 de Abril.

Em primeiro lugar, é duvidoso que sem o 25 de Abril tivesse havido a transição espanhola como houve - pelo menos de acordo com uma série que há uns anos o Canal História passou sobre "a transição", foram muitas as ocasiões em que Adolfo Suarez só conseguio vencer a resistências da "linha dura" mostrando-lhes o exemplo português (mais ou menos numa "se não reformamos, é isto que vai acontecer").

E, de qualquer forma, segundo o FMI, entre 74 e 79 (o período da nossa revolução e da transição deles) a economia portuguesa teve um crescimento médio de 3,06% ao ano, contra apenas 2,51% em Espanha - ou seja, a tese que a culpa do nossa atraso é do PREC parece ser desmentida pelos números.

25/04/10

Um livro a anotar

Espanhóis no Gulag
Agustín Llona, Francisco Llopis e Juan Bote. Um marinheiro, um piloto
e um professor dos 'niños de la guerra'.
Os três acabaram na Sibéria.


Comemorar a liberdade – não apenas a nossa, mas «a liberdade» como fundamento da existência colectiva e da igualdade – é também redimir o passado daqueles que a viram negada. É contornar a conspiração colectiva do silêncio. Um fragmento da crónica semanal de Antonio Muñoz Molina.
Gracias a la mediación de William Chislett acabo de descubrir un yacimiento de memoria del que no tenía ninguna noticia, que se ha abierto delante de mí como un país entero hecho de negrura: sabemos bastante de las vidas de los republicanos españoles en los campos de concentración alemanes, pero yo no tenía ni idea sobre los que acabaron en los campos soviéticos. Chislett, buscador de libros sin sosiego, me ha dado noticia de un trabajo de investigación doctoral de Luiza Iordache, Republicanos españoles en el Gulag (1939-1956), publicado hace dos años por el Institut de Ciències Politiques i Socials de Barcelona. La historia despierta más angustia al comprender el poco caso que se les ha hecho a los testigos y la rapidez con la que uno por uno se estarán extinguiendo. Jóvenes aviadores republicanos que a principios de abril de 1939 estaban terminando sus cursos de pilotos en la URSS y ya no pudieron salir del país; marineros de buques mercantes que habían llevado armas y suministros a la España republicana y se quedaron atrapados en el puerto de Odessa al final de la guerra; niños en edad escolar enviados a la URSS, extraviados en la guerra y la miseria, condenados a trabajos forzados en los campos más crueles de más allá del Círculo Polar Ártico; militantes comunistas que al llegar a lo que habían imaginado como un gran paraíso se encontraron en el interior de una cárcel. Querer marcharse de la URSS ya era de antemano un delito: entre los documentos pavorosos que ha rescatado Luiza Iordache están las pruebas de la saña inquisitorial con que los dirigentes del Partido Comunista Español en Moscú persiguieron a los compatriotas o ex camaradas que se atrevieron a manifestar alguna forma de disidencia. El libro de Iordache está lleno de listas de nombres que yo no había escuchado nunca, de libros de memorias publicados o inéditos de los que yo no tenía noticia. Una vez que el hilo se corta ya no hay manera de repararlo. Algunas formas extremas de olvido no serían posibles sin una especie de conspiración colectiva.

Luiza Iordache. Republicanos españoles en el Gulag (1939-1956). Institut de Ciències Politiques i Socials. Barcelona, 2007. 142 páginas.
Publicado originalmente em A Terceira Noite

Abril e o excesso

Não há curva de Abril para Maio que não nos mostre a dificuldade da direita em lidar com o momento revolucionário inaugurado pelo 25 de Abril. Exemplos não faltam. Basta pensar no entendimento da revolução como «evolução», ensaiada pelo último governo PSD/PP, ou na proposta para tornar feriado nacional o 25 de Novembro, muito cara a Alberto João Jardim. Aguiar Branco tentou agora uma nova forma de releitura, bem esmiuçada pelo Zé Neves aqui em baixo, e que consistiu em consensualizar de tal forma a data que a única coisa que passa a existir é uma espécie de cinzento apolítico.

Curiosa é também a coluna de opinião que Vasco Pulido Valente (VPV) assina hoje no Público. Concedendo que Abril trouxe «liberdade bastante» e «Estado providência» – uma novidade, o Estado providência estar no campo das «coisas boas» - VPV lamenta o facto dos militares, em vez de promoverem de imediato a descolonização e a realização de eleições, terem deixado que o «Partido Comunista e alguns loucos desirmanados» transformassem o pronunciamento militar numa revolução. Os danos da aventura foram tão profundos que só a pouco e pouco se foi conseguindo alguma «normalidade». VPV adianta mesmo um novo ponto a partir do qual a coisa começou a entrar nos eixos: a revisão constitucional de 1989.

O problema desta interpretação não é apenas o de estruturar o reconhecimento do legado de Abril a partir do que os militares deveriam ter feito. Isso seria apenas um erro epistemológico. O mais curioso é o modo como ela revela uma vez mais a recorrente incapacidade das elites portuguesas em pensar o povo como actor histórico, mesmo quando ele, como um louco desirmanado, ia tomando o poder e recriando a vida. Pois é: tenho muita pena, mas a democracia existe por causa da revolução, e não apesar dela. Podia agora fazer um relambório sobre o modo como a democracia portuguesa se foi constituindo através das conquistas desse período, mas prefiro deixar aqui um parágrafo de um excelente texto escrito pelo Luís Trindade em 2004 na revista História:

Não foi um passeio no parque

Defender Abril, ideia a que nos habituámos, não é a mais feliz das missões. Defender implica patrimonializar e não se pode defender o que está por cumprir e que todos reconhecemos como estando por cumprir. Há, na generalidade da esquerda abrileira (na qual me incluo, diga-se), uma ambivalência a este respeito que me parece ambígua mas improfícua. Agora, de uma coisa haverá seguramente que defender Abril. Da sua patrimonialização abusiva. Aguiar Branco tem todo o direito em meter o cravo à lapela e fica-lhe bem. Dispensa-se é a poesia barata segundo a qual Abril foi feito "para todos os portugueses". Não foi. Foi feito por muitos portugueses e por muitos não-portugueses mas foi feito contra alguns portugueses. Daqui a nada estão a dizer que os descobirmentos foram feitos para toda a humanidade, só os escravos é que demoraram algum tempo a perceber. A isto acresce que alguns desses portugueses contra o qual Abril foi feito pertenceram à direita portuguesa e a ela pertencem. Hoje é feriado nacional e por isso todos estamos sob o espectro de Abril, mas o pior que poderia acontecer era esquecermos o antagonismo que pauta toda e qualquer revolução. Esse antagonismo não é um "mal necessário" ou um "excesso", mas é a própria essência da revolução a que daqui brindamos. Abril foi um passeio revolucionário no parque. Não foi apenas um passeio no parque. E pronto, vou para a avenida. Talvez fique por lá até amanhã, uma vez que levo um cachecol vermelho para o frio da noite.

25 de Abril de 1974

Walter Benjamin fala dessa inspiração do trabalho histórico que, ao reconstruir o passado, torna para nós a sua presença "uma recordação tal como cintila no momento de um perigo".
Por mim, se queremos persistir na "…busca / dum país liberto / Duma vida limpa / e dum tempo justo", de que nos fala um poema de Sophia, não vejo melhor maneira de recordarmos o dia 25 de Abril de 1974, do que não renunciarmos a vê-lo à luz deste outro poema seu:

          Esta é a madrugada que eu esperava
          O dia inicial inteiro e limpo
          Onde emergimos da noite e do silêncio
          E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen, 1974, in O Nome das Coisas, 1977.

A vida não faz pausa

O cravo
Relembro os «velhos republicanos» da época em que ainda havia «velhos republicanos». Apareciam frágeis mas aprumados, com os seus dignos cabelos brancos, as medalhas limpas a Solarine e as coroas de flores, e lá rumavam a cada 5 de Outubro até ao lugar onde descansavam os antigos companheiros. Sabíamos todos que eram os sobreviventes de um tempo que se esfumara no tempo. Evocavam um dia distante, perdido algures nas névoas de uma memória em declive, ao qual apenas nos ligavam os laços simbólicos oferecidos pelos manuais escolares ou as colunas de efemérides. Mas nada mais. O «herói da Rotunda» era já uma fotografia desbotada, José Relvas e os seus apenas um grupo de cavalheiros ligeiramente descompostos habitando um filme de cinema mudo.

Os portugueses com menos de 50 anos olham agora da mesma forma quase sempre desatenta as imagens a preto e branco da multidão no Largo do Carmo, a tensão no rosto do capitão Maia, a tropa na rua com cravo vermelho na boca da G3. Não pode deixar de ser assim pois aquele foi um tempo, outro tempo, ao qual muitos dos portugueses de agora chegaram apenas pelas evocações televisivas, pelos insípidos livros escolares, os discursos hirtos num Parlamento florido, a narrativa nostálgica de aulas repetitivas. Algumas vezes pela inteligência, mas jamais pela experiência. É assim porque as Revoluções com maiúscula só são Revoluções com maiúscula por não poderem viver-se todos os dias. Para os filhos e os netos de Abril tudo começou a 26 com o conta-quilómetros a zeros, e por isso para poucos deles há um «Sempre!». É assim e não há que ter pena. Há que olhar para o que está para vir e o resto é memória a guardar. Quente para alguns – sou um deles, resistente e militar em Abril se querem saber –, mas para cada vez menos porque a vida não faz pausa.

Publicado também em A Terceira Noite

Em honra das mães e filhas da madrugada

Não há mágoas nem queixas ou indignações, frustrações, rancores e revoltas que apaguem o significado e a profundidade das mudanças de 24 para 25 de Abril de 1974. Mas não vou gastar latim retórico a enumerar os indicadores da mudança pois ia-vos enfadar sem conseguir ser exaustivo. Escolho, por isso e neste dia, apenas uma provocação simbólica: imaginam as damas, as senhoras, as jovens e as adolescentes que só pelo 25 de Abril se tornou possível saírem à rua e ocuparem espaços públicos sem serem mandadas, impedidas, molestadas ou incomodadas? Não sejam modestas em demasia, minhas caras concidadãs, vocês foram, sobretudo por mérito vosso (pois claro), a conquista menos corroída, porque mais estrutural, daquela madrugada.

(também publicado aqui)

As despesas com o Rendimento Social de Inserção

No 31 da Armada, Manuel Castelo Branco escreve:
os custos do rendimento mínimo estão em descontrolo. total. O ano passado gastaram-se mais de 500 milhões de euros e este ano ultrapassaremos de certeza os 620 milhões. A fraude é hoje estimada pelos serviços em 25% (200 milhões de Euros). Se a isto somarmos algumas  limitações ou restrições na renovação poderemos conseguir poupanças semelhantes. (...)

A implementação destas medidas com carácter imediato, teria de certeza mais impactos na nossa credibilidade externa e efeito positivo sobre as contas, do que as medidas apresentadas na quinta feira em Conselho de Ministro, cuja demagogia é superior ao valor arrecadado. 

Em primeiro lugar, gostava que me explicassem desde quando 25% de 620 milhões são 200 milhões; e, como o PIB português é (segundo este site) de164 mil milhões de euros, mesmo essa poupança de 200 milhões iria significar uma redução na despesa de 0,12% do PIB - era mesmo isso que iria ter um grande efeitos sobre as contas e sobre a tal "credibilidade externa" (bem, lá baixaria o deficit de de 9,4% para 9,28%...).

24/04/10

Da necessidade de um relativismo católico



A obsessão da igreja católica com o relativismo tem muito que se lhe diga.  O catolicismo depende mais do que julga do relativismo contemporâneo... Que tal?  Um belo paradoxo para animar o fait divers, não? Não queremos que isto se torne sisudo...
Pois bem:
Refere-se muitas vezes que a situação actual da igreja católica, no quadro do actual pontificado, corresponde a um recuo face ao espírito de abertura e renovação que caracterizava a ênfase no diálogo ecuménico promovido pelo Concílio Vaticano II. Deplora-se esse recuo. Acontece que esse recuo, ou antes, este tipo de oscilação – este estertor, digamos – é inevitável.
O ecumenismo procura promover o diálogo entre religiões (nomeadamente, entre as religiões cristãs). Mas não nos iludamos acerca do que aqui está em causa. Vejamos, o ecumenismo – sob pena de se confundir com uma espécie de “multiculturalismo religioso” – nunca se desliga de uma concepção do diálogo que pressupõe que com ele se visa a “unidade na verdade”. E uma tal verdade, quer se queira quer não – e cabe aos cristãos querê-lo (o cristianismo é alguma brincadeira?) – é a Verdade Revelada. Ou seja, pode dialogar-se em torno de uma tal Verdade, mas esta, inevitavelmente, permanecerá absoluta. Tudo o que se afasta deste veracidade absolutista, abre o flanco à “ditadura do relativismo”. A igreja católica não pode ter outra visão do universalismo que não seja o que decorre dessa verdade absoluta. Não há meio termo. A única saída, são efeitos de maquilhagem...
Vou considerar admitido à partida – por consideração pela inteligência dos leitores – que não passa pela cabeça de nenhum que haja uma relação directa entre ateísmo e relativismo. Isso é conversa de catequese, por favor...
O problema é justamente esse. É preciso, em várias frentes, combater o relativismo e o modo como dele se alimentam as ideologias contemporâneas. Mas encetar esse combate, para a igreja católica, significa necessariamente deixar cair a máscara, revelar todo o seu reaccionarismo dogmático...
Trata-se de um impasse embaraçoso, este em que a igreja católica se vê encurralada historicamente: ela ou se revela um cadáver, esbracejando contra a “ditadura do relativismo” (que outros equiparam à “ditadura da democracia”); ou, para sobreviver – ou melhor, para parecer que sobrevive (para sobreviver simplesmente de facto) – tem de se relativizar...
Desastroso seria se o “anti-relativismo” católico fosse o único pensável.

23/04/10

Poderá o Espírito Santo não Iluminar Cavaco?

Na continuação do meu post anterior, dando conta das posições do encontro de um grupo de "leigos católicos pela responsabilidade social", promovido pedir "ao Espírito Santo que ilumine o Presidente da República, para uma questão que ainda não está acabada e que agora só está nas suas mãos", gostaria de partilhar com os frequentadores desta casa uma outra questão que a reconsideração do assunto fez com que me pusesse.

A questão é a seguinte: Poderá o Espírito Santo não iluminar Cavaco?

Pois bem, reflectindo com prudência, parece-me que a resposta só pode ser negativa. Para não iluminar Cavaco, seria necessário que o Espírito Santo não ouvisse a oração dos fiéis que lhe pediram que o fizesse, para os salvar, a eles, da "ditadura da democracia".
E poderá o Espírito Santo não atender as preces de quem se lhe dirige tão fervorosamente? Manda a fé partir do princípio de que não.
Ora, se assim é, Cavaco será, ou já está, quiçá já estaria até antes da prece, iluminado - só não o declarando por modéstia e espírito de missão.

A Esquerda do capital


O diploma aprovado ontem em Conselho de Ministros agrava a tributação das mais-valias mobiliárias, mas mantém as actuais isenções aos contribuintes não-residentes em Portugal e das cúpulas dos grupos económicos, por onde passa parte significativa desses rendimentos.
Apesar de instado, o Governo não esclareceu por que razão deixou de fora os investidores não residentes ou as sociedades gestoras de participações sociais (SGPS). Ou seja, manter-se-á o actual regime de quase isenção para os grandes investidores. Tributar estas mais-valias tem sido tabu desde a reforma fiscal de 1989. O IRS continua a ser pago pelos assalariados e pensionistas. Em 2000, o PS acordou com o PCP englobar as mais-valias no rendimento a tributar, mas a queda do Governo Guterres em 2001 acarretou a contra-reforma fiscal do Governo Durão Barroso. O regime da quase isenção foi então restabelecido. 


O Espírito Santo contra a "Ditadura da Democracia"

O Público dá notícia de que "um grupo de leigos católicos pela responsabilidade social organizou ontem um encontro de oração, na igreja da Encarnação, em Lisboa", a fim de, a propósito de um problema de legislação em matéria de costumes, pedir "ao Espírito Santo que ilumine o Presidente da República, para uma questão que ainda não está acabada e que agora só está nas suas mãos".
Um dos membros do grupo, José Maria Duque, declara ao jornal: "Caminhamos num sentido em que cada vez mais as leis vão contra o sentido natural da vida. Caminhamos para uma ditadura da democracia por não reconhecer um valor que está acima da lei escrita", justificando assim o apelo que o grupo endereça directamente ao Espírito Santo, indirectamente a Cavaco Silva e, na realidade, em termos políticos, a ambos ao mesmo tempo.
Ora, não sendo verdade que a democracia sacralize, acima de todos os valores, a lei escrita, uma vez que, pelo contrário, só reconhece legitimidade à lei escrita que resulte da vontade política explícita dos cidadãos e da autonomia deliberativa e instituinte destes, o que o argumento de JMD procura estabelecer é a necessidade de um poder político acima da vontade, da liberdade e da responsabilidade democráticas dos cidadãos, investido da tarefa de os submeter e lhes impor a obediência à sua autoridade sempre que estejam em jogo valores superiores, os quais não deverão poder ser postos em questão por aqueles que governam e a quem são prescritos pelas "iluminadas" autoridades competentes.
Aqui pouco importa que a fonte desses valores seja a revelação operada pelo Espírito Santo e cuja interpretação é confiada a uma hierarquia eclesiástico-sacerdotal, a verdade decretada por um colégio ou partido político que se apodera do monopólio da interpretação científica da sociedade e da sua condução, a codificação dos usos e costumes dos antepassados sobrenaturalmente sábios,  ou a "objectividade" das exigências da economia e da sua expansão ilimitada. Em todos estes casos, a conclusão é sempre a mesma: limitar, impedir, reduzir à menoridade e, no melhor dos casos,  a um regime para-penitenciário de liberdade condicional, a participação livre, igualitária e responsável dos cidadãos no exercício do poder político por que se governam, e, para isso, censurar e submeter ao imprimatur da hierarquia esclarecida e "acima da lei escrita", na base dos seus direitos absolutos de decisão superior e última, a expressão da opinião e da vontade dos cidadãos, esses instrumentos da "ditadura da democracia".

A amnésia para com os crimes das ditaduras não passará!

A forma seguidista como o Supremo Tribunal de Espanha está a pactuar com os fascistas da Falange, tentando inculpar o juiz Baltasar Garzón por este ter “ousado” considerar os crimes do franquismo e atender às pretensões dos familiares das vítimas em darem sepultura condigna aos fuzilados às ordens de Franco, continua a desencadear ondas de indignação. As Associações para a Recuperação da Memória Histórica entregaram um manifesto de apoio a Garzón que, pela internet, já recolheu 100.000 assinaturas. E, no próximo sábado, em Madrid, os que não faltam na solidariedade a um juiz que se recusou a pactuar com a amnésia perante os crimes do franquismo, vão concentrar-se numa manifestação contra a “impunidade do franquismo”, em que serão oradores o cineasta Pedro Almodóvar, a escritora Almudena Grandes e o poeta, comunista e antigo prisioneiro do franquismo Marcos Ana.

Por aqui, onde a sede da PIDE vira condomínio de luxo e o Forte de Peniche se degrada até se descaracterizar sob a forma mercantilista de uma Pousada, sabemos como a sede de amnésia e apagamento das marcas do fascismo português pula e avança. É a lógica do negócio a querer triunfar sobre a memória. Pese embora a revolta, expressa ou íntima, dos que tendo vivido e sofrido o fascismo sofrem novos golpes, agora pela negação de, para as gerações mais novas, lhes ser garantida a revisitação, mesmo que simbólica, das marcas maiores da ignomínia da ditadura. Não por saudosismo ou nostalgia, mas sobretudo para construírem o futuro sem quebrarem os laços com o passado e valorizarem a democracia que o redimiu, o que comportou vítimas e sofrimentos. Talvez o “exemplo espanhol”, em que cresce o movimento dos que se recusam a esquecer o franquismo e os seus crimes, abane a nossa quietude e indiferença perante os que cimentam negócios, todos bons negócios, montando projectos imobiliários e hoteleiros sobre os últimos escombros dos sítios onde os esbirros da ditadura prendiam, torturavam, assassinavam.

(também publicado aqui)

Aviso à navegação


Já podemos formar uma equipa de futebol: o João Tunes acaba de se juntar ao «Vias de Facto».

22/04/10

O Teste do Otero

É preocupante que exista um professor de direito constitucional de imaginação tão prodigiosa quanto escabrosa? Sim. Mas isso não devia autorizar a facilidade com que a Isabel Moreira dá como inequívoca a diferença entre ensinar e doutrinar (fosse assim tão fácil...). Nem a naturalidade com que assume como devida a limitação de um debate académico acerca de direito constitucional à necessidade desse debate respeitar a própria constituição e até o protocolo parlamentar. Se há cadeira em Direito que não se deveria conter pela Constituição que temos é a cadeira de Direito Constitucional.

Mais diria. Tivesse eu tempo e respondia à primeira questão, relativa à constitucionalidade do casamento poligâmico, de modo a ter um dezito. E até a questão da bestialidade merecia ser discutida com mais cautela, porque se é verdade que os animais não têm personalidade jurídica, certo é que os animais humanos têm e que a diferença entre natureza e cultura não é assim tão linear como o Professor Otero (cujo nome, aliás, indicia a própria proximidade entre as diferentes espécies) julgará. No que na constituição remeter para ecologias e afins, por aí e em diante, não será inviável fazer com que o tiro do Professor Otero lhe saia pela culatra. Ou seja, o problema do teste do Otero não está nas pergunta que faz: estará na correcção às respostas.

Do contribuinte

A TAP vai pedir ajuda ao Estado para fazer face aos prejuízos causados pelo cancelamento dos voos durante a «crise» das cinzas vulcânicas islandesas. A verdade é que os passageiros foram tão ou mais prejudicados do que as companhias de aviação. Boa parte não quis ou não pode permanecer dias nos aeroportos, esperando por um voo sem data. Restou-lhes apanhar um comboio ou autocarro ou, nos casos mais drásticos, optar pelo aluguer de um automóvel. Portanto, se a TAP pretende também ressarcir os seus passageiros defraudados, acho muito bem e é só dizerem que mando já o NIB. Se não, é favor o Estado retirar desse cheque futuro que o senhor Fernando Pinto almeja embolsar a quantia de 107 euros, que foi quanto me custou a viagem de autocarro Paris-Coimbra, e enviar para a morada que consta na minha declaração de rendimentos.

Ilusões


A novela do pagamento das viagens de Inês de Medeiros a Paris chegou ao fim, toda a gente a conhece, até o taxista mais distraído sabe do que se trata e não vou perder tempo a resumi-la. O Correio da Manhã diz que nos custam 6.000 euros por mês (quem sou eu para acreditar naquele jornal), mas nem é isso que está em causa neste momento.

Devo ser orgulhosa, populista ou outros cem adjectivos que queiram atribuir-me mas, nem que tivesse de lavar vidros ao Sábado na pirâmide do Louvre para tratar dos filhos ao Domingo, eu aceitaria beneficiar de uma lacuna regulamentar em meu proveito, se tivesse sido eleita para o que quer que fosse. Mas adiante porque é outro o ponto a que quero chegar.

A votação acabou desempatada pelo voto de qualidade do inefável José Lello e o PCP não esteve presente, aparentemente por razões circunstanciais, mas tem uma posição sobre o assunto, explicada por António Filipe (à qual cheguei através de jpt). Pura ingenuidade da minha parte porque (ainda!) esperaria deste partido uma posição política e ética, perante o problema e o país, e não uma justificação puramente burocrática e administrativamente correcta.

21/04/10

O operário nordestino do Vítor Dias

Trago para aqui a resposta que o Vítor Dias deixou na caixa deste post. Não se trata de prolongar um debate “miudinho”, como ele por fim depreende, mas de, a partir do detalhe, conseguir ter uma discussão séria e que julgo importante. E o Vítor Dias é uma pessoa com quem tenho o prazer de ter uma discussão que julgo séria e importante. A discussão é importante por isto: seja em relação a Brasília, seja em relação à Expo’98, seja em relação ao Estádio da Luz, não devemos celebrar uma obra sem atender ao seu modo de produção. Creio que este é um princípio elementar, do qual o Vítor Dias e eu não deveríamos abdicar em momento algum. O Vítor Dias sugere que sou injusto com ele, porque não atendo ao facto de ele ter justamente escolhido uma imagem do arquitecto e do operário de Brasília. Mas, caro Vítor Dias, a visibilidade não garante coisa nenhuma. Há vários regimes de ver e dar a ver. Na legenda, que o Vítor Dias retoma no comentário que me fez, há sinal de tudo menos de desigualdade e exploração: o trabalhador nordestino a mostrar à mulher a cidade em cuja construção participou?!?!? Eu acho simplesmente que a palavra participação dá um bucolismo à cena que é abominável.

Re: Engenharia social

Aparentemente, Helena Matos considera como "engenharia social" que duas lésbicas bitânicas tenham sido reconhecidas como "pais" (na verdade como "mother" e "parent", o que não é mesma coisa que "father") legais da filha nascida por inseminação artificial e que o nome do dador de esperma não apareça no registo de paternidade.

Não lhe ocorrerá que é tanto "engenharia social" duas lésbicas puderem registar-se ambas como "pais" como a outra hipótese - serem obrigadas a registar o pai biológico como pai? A partir do momento em que há registos de paternidade regulados por lei, é tanto "engenharia" a lei ser usada para legitimar as "famílias alternativas" como para defender a família "tradícional", não?

Ainda mais se pensarmos por referência ao que seria uma sociedade sem "registos de paternidade" oficiais - numa sociedade dessas, se um casal de lésbicas quisesse que uma criança fosse considerada filha delas, em vez de filha de uma e de um pai biológico, nada as poderia impedir; o que é que as obrigaria a identificarem um pai biológico para o seu filho? Mesmo que esistissem (como provavelmente existiriam) sistemas voluntários de "registo de paternidade" (exemplo tradicional: baptismo na Igreja; exemplo não tradicional - um sindicato que emitisse cédulas de nascimento para os filhos dos associados) e elas quisessem (como provavelmente quereriam) registar o seu filho, de certeza que haveria, algures, uma associação ou coisa parecida que emitisse registos de paternidade com duas mulheres como "parents". Ou seja, o reconhecimento dessa possibilidade pelo Estado mais não é do que aproximar a realidade ao que surgiria espontaneamente se o Estado não regulamentasse o registo da paternidade. Ou seja, se havia "engenharia social" até era na situação anterior.

Mas, curiosamente, esse chavão da "engenharia social" só costuma ser usado quando são feitas politicas com o objectivo de transformar a sociedade; essa expressão raramente se utiliza para a "engenharia de manutenção de sistemas", ou seja quando as políticas estatais contribuem para sociedade se manter como está.

Quem disse que o centrão nasceu ontem?


Não é fácil que os mais novos consigam imaginar a efervescência com que foram vividos, há 35 anos, os últimos dias da campanha eleitoral para as primeiras eleições livres – as da Assembleia Constituinte, que tiveram lugar em 25 de Abril de 1975, e nas quais votaram 91,7% dos eleitores.

No dia 20, um Domingo, multiplicaram-se os comícios, um pouco por todo o país.

Mário Soares: «Não queremos o imperialismo americano, como também não queremos nenhum outro. Estamos a fazer um caminho original, que está a ser seguido em todo o mundo.»

No Campo Pequeno, a UDP presta homenagem ao «heróico povo do Cambodja que varreu o imperialismo da usa pátria», com a ajuda «da Grande República da China», e Acácio Barreiros afirma que «mantendo-se o estado burguês, as nacionalizações nem são irreversíveis» e podem permitir que o «falso Partido Comunista» passe a «gerente do capital».

Gonçalo Ribeiro Teles propõe «a imediata nacionalização da Companhia das Lezírias».

Dois ou três dias antes, Álvaro Cunhal dissera numa entrevista: «Somos contra a censura à Imprensa nas condições portuguesas, ainda que admitindo que haja condições em que uma censura é absolutamente legítima.»

Um pouco por toda a parte, incidentes contra comícios dos 12 partidos concorrentes, de esquerda ou de direita.

Alguns aconselham a abstenção mas aproveitam a campanha: «A arma é o voto do povo», diz o PRP/BR.

O PS viria a ganhar as eleições, com 37,9% dos votos, logo seguido do PPD com 26,4%. Quem disse que o centrão nasceu ontem?

(Fonte, entre outras: A. Gomes J. P. Castanheira, Os dias loucos do PREC)

(Também em Entre as brumas da memória)

Economia, Ética e Política

A propósito deste post do Ricardo, é interessante notar como Francisco Sarsfield Cabral redescobre que não é, afinal, possível entregar a condução da economia - ainda que capitalista - à sua "autonomia sistémica", ainda há pouco celebrada, num momento menos inspirado (não são raros nele), por Jürgen Habermas. Confiar na autonomia sistémica ou na auto-regulação da economia equivale a condená-la à auto-destruição ou a confiar-lhe a subordinação implacável de tudo o mais que uma sociedade possa propor-se como fins ou valores.
Subjacente a esta redescoberta de um economista "canónico", está o facto de o crescimento, prosperidade, dinamismo de um sistema económico, avaliado pelos seus critérios internos, nada nos dizer acerca da sua utilidade ou adequação à satisfação das necessidades e bem-estar dos cidadãos. Acresce que há bens ou riquezas que a economia - o seu regime actual - desconhece e que não são calculáveis nem passíveis de ser providos e/ou adquiridos através do mercado.
Dando-se conta de alguns destes aspectos, FSC sugere a necessidade de uma regulação ética da economia e da subordinação dos agentes económicos a outros fins ou objectivos, uma vez que os critérios éticos capazes de a regular são um dos "bens" que justamente a racionalidade económica pura e axiologicamente neutra do capitalismo é incapaz de fornecer. Mais ainda, a pura lógica do interesse económico estipula que os critérios exteriores de regulação por considerações éticas ou políticas sejam ignorados. Há dias, dei aqui o exemplo de que assim é as palavras de Mira Amaral, defendendo a tese de que não há razões para que um empresário não aproveite a oportunidade de negócio num ramo de actividade que as suas próprias ideias políticas condenam (o facto de, em princípio, o empresário considerar a opção nuclear errada não deve impedi-lo de aproveitar a oportunidade de negócio que o investimento no nuclear possa oferecer-lhe). Diga-se de passagem que esta mesma racionalidade económica torna absurda outra ideia de Habermas: a "auto-limitação consciente da economia".
Voltando a FSC, no entanto, a pergunta a fazer é: que significa regular eticamente a economia - e que implica essa regulação? Ora, aqui a pura moralidade individual não basta, não só porque os critérios que fornece variam de indivíduo para indivíduo, mas porque é do regime institucional de funcionamento da economia que se trata. E isso faz com que a resposta tenha de ser política. De resto, as próprias considerações do agente económico que, para além de o ser, se pretenda sujeito moral o levarão a responder à questão de como regular eticamente a economia dizendo qualquer coisa como: "intervindo em vista de que sejam definidas politicamente as suas normas de funcionamento".
Chegados aqui, teremos de considerar a questão da natureza do poder político que aplicará as normas e a do modo de determinação dos critérios dessas normas.
Como serão escolhidos esses critérios e por quem? Como se decidirá, para pegar no exemplo referido por FSC, se o critério justo é o de "Peter Drucker, (…) [que] considerava razoável que um executivo de topo ganhasse 20 vezes o salário médio da sua empresa": ou o que fazia com que os executivos das empresas, nos Estados Unidos, "[e]m 2008 ganharam 81 vezes. E nos Estados Unidos, em 2008, ganha[ssem] 318 vezes o salário médio"; ou ainda o que estipule uma democratização da política de rendimentos que adopte como princípio o critério análogo ao veiculado pela reivindicação democrática de um voto por cidadão, para todos os cidadãos?
Numa perspectiva democrática, a resposta não é difícil: os critérios de regulação da economia e de distribuição dos bens, bem como os da organização e funcionamento da actividade económica, além dos critérios de validação e limitação da esfera do mercado, deverão ser decididos por um poder político em que os cidadãos possam participar e exercer o seu direito de proposta em condições de igualdade e liberdade a todos comuns.
Por fim, só a acção política nesta perspectiva poderá opor-se, na medida em que se torne uma força efectiva, quer à perpetuação das condições devastadoras da presente economia política global, quer a soluções de intervenção política antidemocrática que, conduzidas a pretexto de imperativos de salvação pública, levem a restrições cada vez maiores das liberdades e direitos dos cidadãos, à privatização/mobilização forçada destes sob a tutela de uma classe ou oligarquia governante que confiscará em seu benefício privado o espaço público da cidadania, ao mesmo tempo que empreenderá a consolidação da exploração e da opressão da massa dos governados.

20/04/10

Cartada


Flash-mob contra a Privatização dos CTT
Estação dos CTT nos Restauradores (Lisboa),
na próxima quinta-feira, 22 de Abril, às 18h15

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A Brasília do Vítor Dias

Muita água passou sob a ponte que nos liga a Brasília. E muita continuará a passar. De modo que, entre a crítica romântica do "novo" e a defesa embascada do "moderno", muito haverá por onde escolher. Na verdade, é todo um ver se te avias: de teses, de teorias e de teoremas ao dispor do intelectual de esquerda, de maneira a que este consiga engendrar a sua mais correcta posição acerca daquele enorme bicharoco urbano. Não é tarefa fácil. Um comunista, porém, tem sempre a vantagem de poder encurtar caminho, ao afinar o seu diapasão pelo simples critério da exploração.

A Inquisição, essa salvadora da pátria!

Pedro Arroja passou a fazer parte das minhas leituras diárias na blogosfera. Não posso guardar só para mim pérolas como esta: «a solução racional». A indignação também se alimenta.

«Existem agora estimativas aproximadas de que durante os cerca de três séculos da sua existência (aproximadamente desde o início do séc. XVI até ao início do séc. XIX) terão morrido às mãos da Inquisição cerca de 3 mil pessoas, 5 mil no máximo. A questão relevante a perguntar é: quantas teriam morrido se a Inquisição não existisse?
O objectivo da Inquisição foi o de impedir que qualquer heresia entrasse em Espanha e Portugal. Por isso, os alvos da Inquisição foram os protestantes e, antes deles, os judeus e os muçulmanos. A Inquisição cumpriu o seu objectivo. Quando, sobretudo a partir da Reforma protestante, a Europa se dividiu religiosamente, Espanha e Portugal permaneceram homogeneamente católicos.
E o que sucedeu àqueles países da Europa onde não havia Inquisição, e onde a liberdade religiosa era permitida? Entraram em guerras religiosas por toda a parte e que duraram quase três séculos, enquanto Portugal e a Espanha não tiveram nenhuma.
Só a Guerra dos Trinta Anos, sem contar as outras, produziu mais de 10 milhões de mortos. Alguém, no seu perfeito juizo, teria preferido isto à Inquisição? Embora sejam de lamentar os seus mortos, a Inquisição foi a solução racional às divisões religiosas que atravessaram os seus séculos de existência. Portugal e Espanha, mais uma vez, bem podem agradecer à Igreja Católica terem sido poupados a milhões de mortes.»

Ashes to ashes (in Paris)

É possível a primavera quando não há aviões no céu. Um vulcão bate as asas na Islândia e o futuro como probabilidade fica suspenso. Então os homens, as mulheres e as crianças amontoam-se como numa fila para o pão, varados pelo mesmo frio perpendicular, esperando que nossa senhora dos transportes terrestres interceda por si e pelos seus. Há a rapariga que cheira a um bom Patchouli e a espanhola histérica que exige compensações. Há gente a rezar ao seu próprio deus e outros que descobrem o valor da má poesia. Cada um sente à sua maneira o tempo a mostrar-se para além das horas. Por mim recusarei ambulâncias e outras formas bruscas de regressar à realidade. No meio da cidade há umas árvores brancas, quase transparentes. Até amanhã ficarei à espera que sob elas caiam finalmente as cinzas.

19/04/10

O último a saber


Não se tem dado suficiente importância aos efeitos sociais e políticos deste crescente desequilíbrio nas sociedades modernas. As quais tendem a estratificar-se, com os ricos a trabalharem e viverem em circuito fechado, sem contacto com os pobres.[...] 
No caso dos gestores, a presente disparidade salarial retira legitimidade ao capitalismo. O que parece não preocupar os gestores milionários, convencidos de que, depois do colapso do comunismo, tudo lhes é permitido. Daí escândalos como o da Enron e as loucuras financeiras que levaram à crise (o banco Goldman Sachs é agora acusado de fraude). Ou a chocante falta de sensibilidade social de alguns banqueiros salvos da falência com o dinheiro dos contribuintes americanos e britânicos, e que não tiveram vergonha de vir depois embolsar bónus astronómicos.
Em Portugal os desequilíbrios de rendimentos são maiores do que na maioria dos outros países europeus, o que é razão adicional para nos preocuparmos com a autêntica bomba-relógio que as economias de mercado estão a fabricar. E há, sobretudo, uma razão ética para não aceitar estas desigualdades. Mas parece que a ética caiu em desuso em largas faixas das nossas sociedades.
Francisco Sarsfield Cabral, A bomba relógio do capitalismo

«Tarrafal: memórias do Campo da Morte Lenta»


Propaganda institucional: é um filme da Diana, que já vi e recomendo. Trata-se de um documento muito importante para que não desapareça a memória daquele que foi um dos mais terríveis locais em tempos de ditadura.

Um filme de Diana Andringa (*), no IndieLisboa’10

Sexta-feira, 23 de Abril, às 21H30 no Grande Auditório da Culturgest
Domingo, 25 de Abril, às 18H30, no Pequeno Auditório da Culturgest
(Edifício da Caixa Geral de Depósitos, Campo Pequeno, Lisboa)

Chamavam-lhe “o Campo da Morte Lenta”. Os críticos, naturalmente. Que as autoridades, essas, chamaram-lhe primeiro, entre 1936 e 1954, quando os presos eram portugueses, “Colónia Penal de Cabo Verde” e, depois, quando reabriu em 1961 para nele serem internados os militantes anticolonialistas de Angola, Cabo Verde e Guiné, “Campo de Trabalho de Chão Bom”.

Trinta e dois portugueses, dois angolanos, dois guineenses perderam ali a vida. Outros morreram já depois de libertados, mas ainda em consequência do que ali tinham passado. Famílias houve que, sem nada saberem o destino dos presos, os deram como mortos e chegaram a celebrar cerimónias funebres.

“Ali é só deixar de pensar. Porque se não morre aqui de pensamentos. É só deixar, pronto. Os que têm vida ficam com vida. Nós aqui estamos já quase mortos.” A frase é do angolano Joel Pessoa, preso em 1969 e libertado, com todos os outros presos do campo, em 1 de Maio de 1974.

No 35º aniversário desse dia, a convite do presidente da República de Cabo Verde, Pedro Verona Pires, os sobreviventes reencontraram-se para um Simpósio Internacional sobre o Campo de Concentração do Tarrafal.

“Tarrafal: memórias do Campo da Morte Lenta” resultou desse reencontro. Durante os dias em que os antigos presos voltaram ao Tarrafal, gravámos entrevista após entrevista, registando as suas recordações. Trinta e dois presos, desde o português Emundo Pedro, um dos que o estreou, em 1936, aos angolanos e cabo-verdianos que foram os últimos a deixá-lo, no 1º de Maio de 1974, passando pelos guineenses que, ali chegados em Setembro de 62, saíram em 64 uns, em 69 os restantes. Um guarda, Joaquim Lopes, cabo-verdiano e convertido ao PAIGC. Uma das raras pessoas que testemunhou a vida no Tarrafal desde a sua abertura ao seu encerramento, Eulália Fernandes de Andrade, mais conhecida por D. Beba.

É um documentário feito à base de depoimentos e filmado quase sempre no interior do campo, afinal, o espaço em que os presos se moviam. Entre as raríssimas excepções, o cemitério, onde acompanhamos a homenagem dos sobreviventes aos que ali ficaram. Vozes, caras expressivas contra fundo de cela. Alguns objectos surpreendentes: as calças rasgadas pelo chicote e puídas pelo chão prisional, a planta do campo desenhada num osso de vaca, a bengala que testemunha o resultado da tortura. A alegria de se verem lembrados em duas exposições nas celas que tinham ocupado.

* com imagem de João Ribeiro, som de Armanda Carvalho e montagem de Cláudia Silvestre

Ratzinger


Afirma Pacheco Pereira (cheguei lá pela Joana) que a teologia da libertação "transformava o cristianismo numa espécie de progressismo político muito influenciado pelo marxismo".
É interessante que tenha adoptado semelhante formulação, quando se poderia jurar que o catolicismo  está cada vez mais apostado em transformar o cristianismo numa espécie de conservadorismo político muito influenciado pelo fascismo. Nem as crianças lhes escapam.

18/04/10

Bento XVI não será Gorbatchev

Gorby e João Paulo
Todas as Igrejas falam em nome da História, mas na maioria das vezes fundam a sua intervenção terrena na luta contra ela. Constituem-se a partir de um gesto de rebelião – combatendo determinadas formas de poder, outras modalidades de fé ou uma ordem moral e social que os seus adeptos rejeitam – mas rapidamente se institucionalizam, contrariando a insubordinação fundadora e reproduzindo novos modos de opressão. Assentes no rito e no dogma, preservam-se por isso das heresias ou das práticas que possam abrir o caminho a rupturas, dúvidas e sedições. Ao mesmo tempo, organizam sempre que podem sistemas teocráticos, com os seus rígidos estatutos, as suas castas dirigentes, os seus mecanismos disciplinares, que para cumprirem o seu papel devem fundar-se na lei e na obediência. Assim acontece desde há dois mil anos com a Igreja romana, e assim continuará a acontecer com ela, por muito que os fundamentos nos quais se apoia sejam contestados por aqueles que a combatem, ou, numa escala diferente, pelos que, a partir de dentro ou das suas margens, a desejam reformada.