10/04/10

Garzón e os republicanos silenciados


Os recentes episódios em torno de Baltazar Garzón têm contornos jurídicos e políticos difíceis de compreender para quem vive do lado de cá de Valença. E certamente não podem ser desligados da personalidade controversa do juiz e da sua acção ao longo dos anos, cultivando fortes simpatias e inimizades virulentas. Mas o fio da história é fácil de sintetizar em traços largos: a pedido de famílias e associações dedicadas à recuperação da memória histórica, Garzón, na qualidade de membro da Audiência Nacional, decidiu investigar os milhares de republicanos desaparecidos durante a guerra civil e o franquismo. Existem estimativas que apontam para cerca de 114 mil vítimas. Homens e mulheres que o franquismo teimou em exterminar mesmo depois de terminada a guerra civil. Boa parte deles, esclareça-se, ainda estão literalmente cobertos de pó e lama, em locais mais ou menos adivinhados.

Entretanto, o juiz Varela veio esta semana dar seguimento às queixas de três organizações de extrema-direita e acusou Garzón de «prevaricação» por pretender investigar matéria para a qual não estaria habilitado. O New York Times referiu o assunto em editorial, mas as coisas podem não estar fáceis para Baltazar Garzón, que para já arrisca-se a ser suspenso. As associações de recuperação da memória histórica já sublinharam o facto do juiz Varela enviar à sociedade uma perturbante mensagem: quem pretender a partir de agora investigar os crimes do franquismo irá sentar-se no banco dos réus. Garzón apresentou hoje mesmo recurso da decisão do Tribunal Supremo, ao mesmo tempo que acusou Varela de ser um veículo de perseguição ideológica.

Não deixa de ser irónico que o grande argumento usado para acusar Garzón e colocar um tampão sobre o passado franquista seja a lei da amnistia de 1977, que funcionou como um instrumento para que se operasse uma transição relativamente indolor entre a ditadura e a democracia. Na verdade, uma anestesia política que agora permite aos herdeiros da primeira calar aqueles que, em nome da segunda, perderam tudo – a vida, o nome, uma história. E quando o luto não se cumpre, o passado arrasta-se num eterno presente, sempre por cumprir. Escusado será dizer que uma sociedade que assim vive será sempre uma sociedade menos justa e mais bloqueada.

Já vai sendo tempo, portanto, do Estado espanhol olhar de frente este seu passado. A lei aprovada em 2007 foi um passo importante, mas a batalha pela memória e pela dignidade das vítimas continuará. E diz respeito a todos nós, quanto mais não seja porque foi pela democracia e pela República que aqueles espanhóis se bateram. Quando me falarem do Centenário da República, é disto que também me vou lembrar.

4 comentários:

Joana Lopes disse...

Acabei de ler uma notícia interessante: perante o que se passa com B. Garzón, famílias das vítimas do franquismo vão recorrer á justiça na Argentina:

« L'Argentine, ex-colonie espagnole, jugera les crimes de l'Espagne comme ce pays l'a fait avec les dictatures du cône sud. »

Miguel Cardina disse...

Também tinha visto. Muito curioso. Até porque se baseiam nos mesmos pressupostos que possibilitaram a Garzón de perseguir judicialmente Pinochet.

Lusitano disse...

Caro
Miguel Cardina,

Venho aqui pela primeira vez tecer um comentário, esperando que o mesmo não seja censurado, mas passemos ao que interessa, o Miguel Cardina afirma a determinado local do seu post o seguinte: ..."quem pretender a partir de agora investigar os crimes do franquismo irá sentar-se no banco dos réus."..., ora parece-me pouco correcto apenas falar nos crimes do Franquismo, e a República Espanhola não cometeu igualmente crimes???
Sou fotógrafo e quando estagiava num jornal já desaparecido, em princípios da décda de 70, o chefe da secção fotográfica desse jornal, contava-me muitas vezes o que tinha visto, pois ele e um jornalista português, cobriram a guerra civil de Espanha para, salvo erro, o Diário de Notícias e contava ele, que aquilo era um autêntico horror de ambos o lados, quando um dos bandos chegava a uma aldeia contrária, matavam todos os que encontravam e que lhes eram opostos, aliás não é o único testemunho que conheci, mas há bons livros absolutamente neutros que apontam que dos cerca de meio milhão de vítimas, cerca de dois terços não foi no campo de batalha, mas nas retaliações que ambos fizeram, esta é que parece ser a verdade, por isso, só classificar o vandalismo de um dos lados como crime e deixar transparecer que o outro não passavam de santinhos, não ajuda a esclarecer a verdade e é contrário a um princípio básico de Justiça.
Dou-lhe um exemplo, fala-se muito da morte de Garcia Lorca às mãos dos franquistas, essa figura é exaltada ao máximo, mas igualmente José António Primo de Rivera, fundador das Falanges Espanholas, um movimento de cariz sindicalista revolucionário, mas também era escritor e igualmente poeta. Também ele foi morto, mas pelos republicanos, pois como era contra a República socialista espanhola, tem sido continuamente ignorado, chegando-se ao ponto de o fazer um adepto fervoroso de Franco, quando na realidade, ele era independente das esquerdas e das direitas, claro, que era contra a confusão socialista/comunista/anarquista em que a República tinha caído, mas como ele, havia milhões de espanhóis que tinham a mesma opinião igualmente e não eram nem fascistas, nem franquistas.
Sabe, meu Caro Miguel Cardina, a História está cheia de "estórias" e quem está na mó de cima conta sempre a "verdade" à sua maneira, esta é uma verdade que infelizmente se repete eternamente.
Cumprimentos.

LUSITANO

Miguel Cardina disse...

Caro Lusitano,
Ja tinha respondido ao seu comentario, mas talvez por ter sido nessas terras de ninguem que sao os "aeroportos", nao apareceu. Ca vai (peco desculpa pela falta de acentos).

Como diz, ambos os lados da barricada cometeram atrocidades. 'E um facto. Mas so' os franquistas continuaram a matar depois da guerra, em termos e em numeros que mostram intencao (e efectivo cumprimento) de um exterminio politico em larga escala. Foram mais de cem mil os republicanos assassinados nestas circunstancias, ja para nao falar do exilio forcado e do ostracismo a que muitos foram votados. Por outro lado, enquanto os mortos do lado nacionalista tem o seu "Vale dos Caidos" (feito com trabalho escravo republicano), as vitimas do franquismo - as vitimas da pacificacao nacionalista - continuam em muitos casos literalmente cobertos de po e lama, em lugares mais ou menos adivinhados. Isso faz toda a diferenca.

Uma nota final: faca a justica historica de chamar "fascista" a Primo de Rivera. Ele nao era moco para se envergonhar disso.