11/04/10

Da Esperança Crente à Vontade Política

Saudando o post publicado pela Joana Lá como Cá: Marcha dos Precários em França , deixei na respectiva caixa de correio um comentário, que começava por dizer que oxalá a marcha dos precários de Marselha a Paris tivesse por desfecho a tomada da Bastilha do governo económico em funções e a libertação dos precários das condições prisionais que a sua ordem lhes impõe , e concluía, pontuado por outros "oxalá", nos seguintes termos: Oxalá essa tomada da Bastilha fosse o prelúdio próximo do pôr termo ao exercício do poder político que a direcção da economia confere a um Primeiro Estado ou camada oligárquica cada vez mais restrita e mais poderosa - o prelúdio próximo do fim do regime que condena à Bastilha da precariedade uma parte crescente dos seus cidadãos e mantém os restantes sob a ameaça da mesma exclusão cívica - o prelúdio próximo de uma transformação da economia pela extensão da capacidade política dos cidadãos e da sua autonomia governante.
Ao que a Joana me respondeu: Oxalá, sim, Miguel, sem grandes esperanças no imediato, confesso... - fornecendo-me com estas palavras a ocasião das reflexões que a seguir resumo.
Tal como a Joana, também eu não tenho esperanças excessivas, embora a minha impaciência cresça com a idade. O que me pergunto, sobretudo, apesar dos "oxalá" que repeti no meu comentário, é, com efeito, se não será preferível não darmos demasiada importância aos sentimentos de esperança. - O que talvez seja uma maneira saudável de não desesperar. E também de manter a lucidez e a vontade. Que, no sentido de vontade política é um pouco mais reflectida e construída, mais definida e, ao mesmo tempo, mais aberta do que o impulso, os desejos, as insatisfações e protestos: deliberação e decisão que dá conta e razão dos seus motivos e dos seus propósitos.
Sem dúvida, qualquer coisa como o impulso de transfiguração projectiva do passado, que não se deixa limitar ao facto consumado e que o Rui Bebiano tão bem evocou aqui a propósito do pensamento de Ernst Bloch, é uma dimensão por assim dizer antropológica que podemos reconhecer como condição necessária da instituição da política enquanto actividade explícita do governo da cidade. Mas não é sua condição suficiente: o que se torna ainda mais claro quando consideramos o modo como é imaginada na ágora e através da assembleia governante (ecclesia) como a mais arquitectónica das artes - arte autónoma na medida em que os seus critérios e as suas leis são aqueles que se dão livre e responsavelmente os cidadãos seus artistas (ao mesmo tempo, fazedores e artesãos).
Acresce que a transfiguração projectiva do facto consumado pode dar lugar, afirmando-se em termos anteriores ou reactivos à sua articulação/elaboração pelas exigências do livre exame de uma razão política suficientemente secularizada, ou à desmesura (hubris) utópica que justifica a arbitrariedade de um poder consagrado pela invocação do paraíso futuro a alcançar pela resignação ao inferno das suas imposições actuais, ou à degradação deste mundo mortal pela afirmação de um além mais poderoso e permanente cujas forças superiores devemos adorar ou temer, e, em todo o caso, conciliar por meio da subordinação da ordem humana à verdade e as leis que os seus sacerdotes ou governantes por vontade divina estipulem.
Haverá por aí quem diga, ao sabor de divagações extremistas em que todos os gatos são pardos, que a vontade política é pouco subversiva e não suficientemente fracturante. Não implica, afinal, a reivindicação das responsabilidades que o exercício do poder democrático igualitariamente participado exige para todos? E não disse Deleuze que a responsabilidade é um termo de chui (flic), e Foucault, além de já não sei bem o quê, que toda a resistência a todo o poder engendra um outro poder mais eficaz ainda, ao qual poderemos e seremos levados a resistir, mas sem qualquer perspectiva de o conquistarmos como ou transformamos em potência de liberdade ? Ou não afirmou o próprio Barthes - é verdade que sem se preocupar com outros seus modos de ler - que toda a linguagem é fascista?
Pois bem, deixemos que o tenham dito, e abandonemos o culto da esperança escatológica na divinização da condição humana aos que repetem essas fórmulas opiáceas e se recusam a admitir que as actuais formas estatais e oligárquicas de poder só podem ser vencidas por um outro poder diferente, mas efectivo, instituinte, que queremos democrático e confiado à responsabilidade mútua e regular de cidadãos livres, que garanta e potencie a liberdade diferente de cada um através da sua igual participação na deliberação e decisão da lei da liberdade dos demais.
Não é outra a tradição que reivindica a liberdade de criação democrática como criação responsável de liberdade. E que melhor coisa poderíamos desejar às marchas contra a precariedade do que a superação, na esteira dessa tradição, de uma esperança sempre ainda crente pela força instituinte e lúcida da vontade política?

2 comentários:

Anónimo disse...

" O passado encoraja-me, o presente electriza-me e não temo o futuro". Marquis de Sade, in Juliette.
Caríssimo: O teu questionamento implica a palavra, o conceito dos outros. Que todos dancemos,pois, em torno do " Saber Alegre"!
E já agora não resisto a dar a ler este fragmento de uma entrevista de Deleuze sobre Foucault: " Existe muito pouca gente no Mundo com quem podemos partilhar/dizer coisas insignificantes. Passar duas horas com alguém sem quase dizer nada, é o cume da amizade. Isso só se verifica com os grandes amigos com quem conseguimos falar de coisas insignificantes. Com Foucault,o diálogo era do tipo uma frase para aqui, outra para lá.Um dia, no decorrer de uma conversa, ele disse: eu gosto muito de Péguy, porque é um louco. Questionei: por que é que diz que ele é louco? Respondeu-me: basta ver como escreve. Nisso também se revela o que havia de interessante e singular em Foucault. Ele queria sublinhar com essa posição, que quem sabe inventar um estilo novo, produzir novos enunciados, é um louco ". In " Deux Régions de Fous ", Éditions Minuit,2003. Niet

Anónimo disse...

" Só existe uma única expressão para a verdade: o pensamento negando a injustiça ". T.W.Adorno

Caro MSPereira: E o teu belo e profundo texto- sobre a Vontade e a Coragem Política - não pode ficar com um só texto meu pendurado. Fico sempre à espera que outros mais valorosos se pronunciem...Antes. Bem, tenho lido muita coisa diferente nos últimos dias,diferente só na aparência. E dei com um texto do Adorno onde se levanta o véu da obra do J. Maistre,composta por inúmeros volumes das O.C. quando, tirando Eduardo Lourenço, nunca ninguém da Esquerda ou extrema-esquerda lusitana se aventurou a citá-lo.
Mas é sobre a violência e a dominação- de classe, claro-que eu queria revelar uns enunciados absolutamente espantosos de Adorno." É sobre a violência, seja qual for a legalidade com que se mascare,que repousa em definitivo a hierarquia social. A dominação das leis naturais reproduz-se no interior da Humanidade. A civilização cristã partiu da ideia que era preciso proteger os que são fisicamente débeis, e utilizou para explorar o escravo robusto. Apesar de tudo, não conseguiu conquistar inteiramente os corações dos povos ocupados. O princípio do amor foi fortemente criticado pelo entendimento agudo e pelas armas ainda afiadas dos mestres cristãos, até ao dia em que o luteranismo abole a antitese entre o Estado e a doutrina, fazendo da espada e do chicote a quinta-essência do evangelho. Identificou desse modo directamente a liberdade espiritual à afirmação da opressão real ". E a auto-instituição da política e da democracia -da liberdade e da Justiça - joga-se muito na forma como - sem hierarquias nem sofismas ,nem "iluminados"- conseguirmos erguer, a pouco e pouco, as instituições onde tudo se pode questionar para uma qualificação sempre em marcha. Niet