Ao ver ontem que tinha sido inaugurada em Lisboa uma nova avenida, a minha primeira reacção foi apenas de indignação, sobretudo ao ler que, para Cavaco, «ao homenagear a figura do marechal António de Spínola, a Câmara Municipal de Lisboa pratica um acto de grande justiça, a que todos nos devemos associar com o maior júbilo».
A memória tende a ser curta para todos, mas talvez nem se trate de falta dela no caso do presidente de todos nós: muito provavelmente, ele rejubila-se mesmo quando pensa em Spínola e em tudo o que a sua figura e a sua complexa vida representou. (Menos compreensível, digo eu cheia de boa vontade, é ver António Costa associado ao evento, mas adiante.)
Podia lembrar aqui apenas, e seria o suficiente, a ligação de António de Spínola ao ELP / MDLP, organizações terroristas responsáveis, entre muitos outros actos, pelo ataque a dezenas de sedes de partidos de esquerda e pelo assassinato do padre Max.
Mas vale a pena recordar mais alguns elementos da sua biografia e J. M. Correia Pinto fá-lo bem no Politeia. «Como militar serviu devotadamente o Estado Novo e Salazar, como tantos outros», «era um fervoroso apreciador da bravura do exército alemão, cujas façanhas acompanhou, no cerco de Leninegrado, como observador», «simpatizava politicamente com o que de mais reaccionário havia então na Europa: o franquismo, a tradição prussiana do exército alemão enquadrada e dominada pelos nazis, e Salazar. Este pendor autoritário e anti-democrático acompanhá-lo-ia durante toda a sua vida».
Sabe-se que «Spínola, uma vez na Guiné, teve uma percepção mais correcta da guerra em que estava envolvido», mas também que «tal como Marcelo também ele não compreendeu o nacionalismo africano e sempre acreditou, ao ponto de ter mitificada a ideia durante toda a sua vida, que seria possível encontrar um rearranjo constitucional capaz de acomodar a presença política (económica e social) portuguesa com as aspirações autonomistas dos povos colonizados» e que o que «nunca foi capaz de superar foi a subalternidade do interesse nacional português no processo de libertação dos povos africanos».
É verdade que foi o primeiro PR em democracia, mas todos estarão recordados das suas tibiezas desde a noite do dia 25 de Abril, por exemplo com as hesitações quanto à libertação de todos os presos políticos. Para não falar, obviamente, do 28 de Setembro e das manobras de bastidores que antecederam o 11 de Março.
Não há como ver e ouvir para recordar e por isso aconselho vivamente este vídeo da RTP, nomeadamente do minuto 33:29 ao 44:06. Extraio apenas a seguinte afirmação de Spínola, em vésperas do 28 de Setembro:
«Não estamos dispostos a transigir, a nossa determinação de amor à Pátria com que nos batemos no Ultramar mantém-se intacta.»
Eu não me rejubilo com personagens destas, nem reconheço a ninguém o direito de se rejubilar por mim.
P.S. - Leitura absolutamente indispensável: «Antes Lisboa tivesse ganho uma Avenida Erich von Stroheim», de João Tunes.
(Publicado também em Entre as brumas da memória.)
5 comentários:
("Post" reaccionário da semana)
Venha lá então uma sova cibernética ao Doutor Cavaco Silva (DCS)...
No entanto, não há naquilo que ele diz nada de contraditório!
O DCS não era comunista antes do 25 de Abril, e também não é dos que se tornaram comunistas a seguir.
Suponho que deve ver no General António Spínola (GAS) o catalisador que permitiu uma revolução quase milagrosa, porque praticamente sem ter vertido uma gota de sangue (mesmo sem esquecer que algumas foram vertidas).
E isso deve-lhe ser mais querido do que perceber se a visão do GAS sobre a independência das ex-colónias era mais ou menos lúcida, ou se durante a juventude se entusiasmou com a Espanha ou a Alemanha, como outros se entusiasmaram com a igualmente democrática URSS.
Depois do 25 de Abril, foi dos que lutaram contra a tentativa de instauração de um regime anti-democrático em Portugal, e também poderia ter sido mais lúcido, nomeadamente se não tivesse enveradado pelo apoio ao terrorismo (de que não teve na altura o monopólio, há-que sublinhar).
O balanço visto por DCS deve ser claramente de alguém que não fez, mas contribuiu para, um dos maiores e melhores acontecimentos da História de Portugal.
Por isso, o que ele afirma.
Mas não foi ele que deu o nome à rua, como tu muito bem dizes.
Que a saraivada de insultos cibernéticos ao DCS que provavelmente se seguirão aqui ou na mente dos leitores, que evitarão olhar para o responsável pelo baptismo da rua, enquanto certamente sonham com avenidas com nomes de outros "heróis de Abril" que também enveredaram pelo apoio ao terrorismo, lhes saiba a coerência!
Mas não é coerente...
Há aqui vários pontos, Manel.
Dou de barato, como disse, que Cavaco se identifique, globalmente, com a figura de Spínola e a sua história.
Quanto ao que o GAS fez depois do 25/4 pela democracia, na minha opinião fez mal e abandonou depressa o barco quanto a essa tarefa - barco a que, aliás, não pertencia e onde entrou circunstancialmente porque estava «à mão» dos capitães e era General.
Não sei quem sugeriu o nome para a avenida,sei sim que há uma comissão de toponímia na CML, que aprova ou não essas coisas. Por mera curiosidade, talvez tente saber mais detalhes sobre este processo concreto.
VIVA OTELO SARAIVA DE CARVALHO!
" Se o soldado medita, destrói a disciplina; e em cadeia, destrói o Exército e o Estado ! Caso não tente meditar, torna-se numa máquina cega e feroz nas mãos do Estado ".- M. Bakounine, A R. Social em França. OC.VIII.
Spínola e Costa Gomes- até pelos compromissos invisíveis tecidos na escola da NATO - nunca se comprometeram com a génese e a marcha do processo libertador do 25 Abril 74. Tudo isso está, magistralmente, narrado no livro de O.S Carvalho, a " Alvorada de Abril ".Spínola tinha um grupo de " fiéis " construído na Guiné, que valia muito pouco, conforme se viu na operação das Caldas, a 16 de Abril. E Costa Gomes era dado como fiel amigo dos USA...Como C. Gomes- que não participou de forma nenhuma na preparação do 25/4 - não quiz aceitar a oferta do Posto de Comando Operacional da Pontinha- o núcleo das operações essenciais da Libertação - para presidir à Junta de Salvação Nacional, os spinolistas e outros habilidosos " jogaram " para que fosse o " seu " General o indigitado. E em poucos meses,Spínola, desbaratou quase todo o capital de confiança que lhe tinham entregue. E começou a fazer " jogo duplo " com os partidos da burguesia nacional mais à direita, com os " cabos-de-guerra " sedentos de sangue e a rede bombista ramificada pelo centro/Norte do País, que tinha armas e meios financeiros avultados obtidos no contrabando e na transferência fraudulenta de ouro,jóias e quadros para o estrangeiro. Cavaco Silva usa, hoje, aquele processo eleitoral clássico - as Presidenciais estão à porta -para passar com a escova no lombo das franjas mais direitistas e restauracionistas do eleitorado.E A. Costa " ajuda ", até para se iludir no papel de alternativa a Sócrates, a três dimensões, se assim se pode dizer. Niet
Caro(a)anónimo(a)
A forma como filtra os factos que comenta, sublinhando a tolerância (ou mais) do GAS face ao terrorismo, e omitindo a tolerância (ou mais) do Otelo (OSC) face ao terrorismo, designando os partidos em quem o povo português sempre votou em maioria da forma que designa, e manifestando um sentido de "fora de pé" com as eleições livres e democráticas que os portugueses têm há décadas, sugere-me que se a revolução tivesse sido ganha, não por quem o povo quis, mas por quem o(a) senhor(a) queria, hoje em dia seria eu que tinha de assinar os meus comentários como anónimo.
Ou ficar calado.
Mas, essencialmente, faz-me desconfiar que o(a) senhor(a) não vive neste mundo, ou não vive neste século.
Joana,
A toponímia tem umas coisas engraçadas...
Aí por volta de 85, antes de chegar a Partugal o dinheiro da Europa, não havia dinheiro para obras públicas, como te deves lembrar.
Pois uma vez o Ludgero (por onde anda o Ludgero?), esse restauracionista do fascismo, disse ao almoço que a única grande obra pública do regime democrático português era a ponte 25 de Abril...
Mas por onde anda o Ludgero????
Acho bem que se perceba quem sugeriu e aprovou o nome da avenida, se bem que a mim não me aqueça nem me arrefeça.
Mas porque a democracia deve ser transparente.
Alain Badiou: o 25 de Abril puro-
Ao contrário do que lhe é habitual, Alain Badiou não brande a " reckless " quando elogia o " verdadeiro " 25 de Abril. Aqui fica o seu testemunho polémico e transparente: " Parmi les séquences politiques, longues ou brèves, identifiées comme travaillant, dès le milieu des années soixante-dix, à réinstaler l´hypothèse communiste( même si le mot était souvent honni), c´est-à-dire transformer, à contre-courant de la domination du capitalo-parlementarisme, le rapport entre la politique et l´État, on peut citer: LES DEUX PREMIÈRES ANNÉES DE LA RÉVOLUTION PORTUGAISE(...) la première fase de l´insurrection contre le Shah de l ´Iran; le mouvement Zapatiste au Mexique ".Niet
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