25/04/10

Abril e o excesso

Não há curva de Abril para Maio que não nos mostre a dificuldade da direita em lidar com o momento revolucionário inaugurado pelo 25 de Abril. Exemplos não faltam. Basta pensar no entendimento da revolução como «evolução», ensaiada pelo último governo PSD/PP, ou na proposta para tornar feriado nacional o 25 de Novembro, muito cara a Alberto João Jardim. Aguiar Branco tentou agora uma nova forma de releitura, bem esmiuçada pelo Zé Neves aqui em baixo, e que consistiu em consensualizar de tal forma a data que a única coisa que passa a existir é uma espécie de cinzento apolítico.

Curiosa é também a coluna de opinião que Vasco Pulido Valente (VPV) assina hoje no Público. Concedendo que Abril trouxe «liberdade bastante» e «Estado providência» – uma novidade, o Estado providência estar no campo das «coisas boas» - VPV lamenta o facto dos militares, em vez de promoverem de imediato a descolonização e a realização de eleições, terem deixado que o «Partido Comunista e alguns loucos desirmanados» transformassem o pronunciamento militar numa revolução. Os danos da aventura foram tão profundos que só a pouco e pouco se foi conseguindo alguma «normalidade». VPV adianta mesmo um novo ponto a partir do qual a coisa começou a entrar nos eixos: a revisão constitucional de 1989.

O problema desta interpretação não é apenas o de estruturar o reconhecimento do legado de Abril a partir do que os militares deveriam ter feito. Isso seria apenas um erro epistemológico. O mais curioso é o modo como ela revela uma vez mais a recorrente incapacidade das elites portuguesas em pensar o povo como actor histórico, mesmo quando ele, como um louco desirmanado, ia tomando o poder e recriando a vida. Pois é: tenho muita pena, mas a democracia existe por causa da revolução, e não apesar dela. Podia agora fazer um relambório sobre o modo como a democracia portuguesa se foi constituindo através das conquistas desse período, mas prefiro deixar aqui um parágrafo de um excelente texto escrito pelo Luís Trindade em 2004 na revista História:

Ironicamente, a derrota da revolução talvez seja a única forma de pensar hoje o salazarismo, essa sua profundidade orgânica, estrutural, e portanto a sua sobrevivência. É esta sobrevivência que, por sua vez, dificulta pensar-se o 25 de Abril, concedendo-lhe uma espécie de desforra: como se o PREC, enquanto negativo de uma dinâmica social sem densidade, estranheza numa existência política vazia, se mantivesse irredutível a um discurso democrático meramente institucional e portanto preso a uma incapacidade atávica de transformar a realidade. O atavismo não deixa pensar o PREC, mas o PREC obriga a pensar o atavismo como atavismo. Neste sentido, Abril, enquanto acontecimento na contemporaneidade portuguesa, não pode ser visto senão como excesso.

3 comentários:

Manuel Vilarinho Pires disse...

"...pensar o povo como actor histórico, mesmo quando ele, como um louco desirmanado, ia tomando o poder e recriando a vida..."

Escreveu isto porque considera que o povo não tomou o poder? Que hoje em dia não escolhe em liberdade quem entende que deve governar e que opções de governo deve ter quem governa?

Tem a certeza que era mesmo o povo que, como diz, ia tomando o poder? Ou alguém por ele, em seu nome, sob o seu pretexto, mas sem procuração para o fazer, nem legitimidade, exceptuando a que lhe advinha da força de estar muito mais organizado que os outros à época e de ter aliados poderosos nas forças armadas de então, ou seja, a legitimidade da força?

Se quiser, até pode achar que o povo foi imbecil por ter optado por caminhos que lhe parecem uma derrota da revolução. Parece-me é que concluir daí que o povo não tomou o poder é abusivo, como se o poder só fosse do povo se o povo o tivesse entregue aos que nessa altura o iam tomando pela força e, como em todas as eleições livres o povo disse, contra a sua vontade.
A revolução conseguiu instituir em Portugal uma democracia, fazer a descolonização e tornar possível a entrada de Portugal na UE. Perece-lhe mesmo que foi derrotada? Não eram mesmo esses os grandes objectivos dos revolucionários que a fizeram? E do povo que a recebeu de braços abertos?
Cumprimentos

Miguel Cardina disse...

O que digo é que não se pode compreender a democracia sem compreendermos o que foi o biénio revolucionário de 1974-1975. Elas não se equivalem, nem confundem, mas uma é filha da outra. O que censuro é o apagamento recorrente do tempo quente da revolução como se tivesse sido uma espécie de interlúdio totalitário e tenebroso que a sensatez de Novembro veio pôr nos eixos. Não há dúvida que muitas das lógicas políticas e sociais do período - ocupações, controlo operário, nacionalizações, reforma agrária, socialismo - foram abandonadas ou sofreram profundas reconfigurações. Daí falar de uma «derrota». Mas uma série de direitos políticos, sociais e económicos foram precisamente forjados nesse período.

Quanto ao resto, acho que é preciso colocar as coisas no seu devido tempo. De outra forma não perceberíamos porque é que o PS defendia uma «sociedade sem classes em que os trabalhadores serão produtores associados», o PPD citava Marx (ainda antes do leninista Aguiar Branco) e o PPM tinha murais em que falava da reforma agrária. Portanto, loucos desirmanados havia muitos. E que muitas vezes andavam a tentar «acertar a agulha» com o movimento das coisas, e não propriamente a «dirigi-lo».

Já agora, a democracia (que compreende mas não se esgota na exigência do voto) e a descolonização eram temas «da revolução». Mas a entrada de Portugal na UE não me parece. Aliás, nunca foi, nem antes nem depois, objecto de um efectivo debate.

Anónimo disse...

M. Cardina: Algumas notas sobre o seu texto, que me parece muito honesto e didáctico no bom sentido dos termos, claro. Como deve saber, talvez melhor do que eu, existem 120 mil teses sobre o Estaline/ estalinismo. Sobre o 25 de Abril existem dezenas. E a do VPV- se bem que eu goste muito do " estilo " dele-é uma tese de circunstância jornalística, no máximo. O livro dele, VPV, sobre o" Poder e o Povo", é sobre a I República, como sabe. As élites lusas jamais " toleram " o povo, só para o enganar/iludir/manipular quando dele necessitam. Essa é uma das mais velhas lições da História, pelo menos desde a Revolução Francesa.Por outro lado, o " golpe militar " que gerou o 25 de Abril 74 tem enredos na enorme revisão do Marxismo-Leninismo e do Anarquismo/Conselhismo que foram implementadas pelas sequelas de Maio 68- Euro-americano- pois, ainda encontrei revistas yankees em Paris do Berkley de 66/67...Uma via que urge ser explorada- no meu modesto entender, repito- é a tese do Guy Debord sobre a Dominação Espectacular: o " segredo generalizado que se situa por detràs do espectáculo como complemento decisivo do que revela, e se se desce ao fundo das coisas como a sua mais importante operação ", in "Comentários à Sociedade do Espectáculo"." O espectáculo fez triunfar o segredo e deve estar cada vez mais nas mãos dos especialistas do segredo ". Niet