23/04/10

Poderá o Espírito Santo não Iluminar Cavaco?

Na continuação do meu post anterior, dando conta das posições do encontro de um grupo de "leigos católicos pela responsabilidade social", promovido pedir "ao Espírito Santo que ilumine o Presidente da República, para uma questão que ainda não está acabada e que agora só está nas suas mãos", gostaria de partilhar com os frequentadores desta casa uma outra questão que a reconsideração do assunto fez com que me pusesse.

A questão é a seguinte: Poderá o Espírito Santo não iluminar Cavaco?

Pois bem, reflectindo com prudência, parece-me que a resposta só pode ser negativa. Para não iluminar Cavaco, seria necessário que o Espírito Santo não ouvisse a oração dos fiéis que lhe pediram que o fizesse, para os salvar, a eles, da "ditadura da democracia".
E poderá o Espírito Santo não atender as preces de quem se lhe dirige tão fervorosamente? Manda a fé partir do princípio de que não.
Ora, se assim é, Cavaco será, ou já está, quiçá já estaria até antes da prece, iluminado - só não o declarando por modéstia e espírito de missão.

Só que aqui surge outra dúvida. Que pergunta:
a) estando Cavaco iluminado fará o que os orantes do grupo esperam que faça no que se refere à lei reguladora dos costumes que está nas suas mãos, a menos que, pelo contrário, apesar da sua inveterada hostilidade à "ditadura da democracia", resista à graça e faça o contrário do que a iluminação, já garantida, prescreve, incorrendo no mais grave dos pecados, que é o pecado contra o Espírito Santo?
- ou b) não resistindo à graça nem à iluminação assegurada pelas orações do grupo, fará, todavia, coisa diferente da que o grupo espera, pela simples razão de que, se o Espírito Santo não pode deixar de iluminá-lo, pode perfeitamente não ter a respeito da legislação civil em matéria de costumes as mesmas ideias que o colectivo dos "leigos católicos pela responsabilidade social"?
É evidente que a hipótese b) levanta novos problemas, em cuja análise e enumeração não posso entrar, mas que deixam entrever no limite a possibilidade verdadeiramente miraculosa de, iluminado, Cavaco se tornar democrata malgré soi e tentar ultrapassar Manuel Alegre pela esquerda, anunciando ao recandidatar-se que se empenhará, caso seja reeleito, numa revisão constitucional que leve, entre outras coisas, à abolição do cargo de Chefe de Estado e limite as funções presidenciais, a rotativizar no mais curto prazo de tempo possível, ao exercício da presidência de uma república autónoma da cidadania governante.
Quem se sairia mal, se fosse este o sentido da iluminação implorada - e quem conhece os desígnios de um Espírito cujo vento sopra onde quer? -, seriam os "leigos católicos pela responsabilidade social", e com eles o Papa Bento XVI, que teriam de se resignar à "ditadura da democracia" e por ela dar graças a Deus ainda por cima.

Infelizmente, do exame de todas estas hipótese, há uma conclusão que é sempre a mesma e só uma: seja o que for que Cavaco faça, nunca saberemos se o fez obedecendo à iluminação recebida ou resistindo-lhe, nem se obedeceu ou resistiu realmente à iluminação do vento Paracleto ou às luzes deste ou daquele grupo ou congregação de crentes cujas posições identificou com as suas próprias e/ou com a vontade de Deus.

A iluminação aqui é cega, pá - ou não vês que isto é política?

10 comentários:

aviador disse...

É por isso que lhe chamam o Espírito Santo do Regime.

André Carapinha disse...

Acrescento que a questão nem será a de que o Espírito Santo possa ou não iluminar o Cavaco devido à "força da fé" dos que se lhe dirigem. Por definição, o Espírito Santo, a existir, devia necessariamente iluminar o Cavaco sobre o caminho mais justo a tomar, o que origina algumas conclusões:

a) Quem acredita no Espírito Santo nunca deveria "pedir" algo ao Espírito Santo, uma vez que o Espírito Santo, por definição, escolherá sempre a melhor de todas as opções (Leibniz), o que torna o "pedir" um acto totalmente irrelevante;

b) Acreditando que o Cavaco é de facto iluminado pela luz do Espírito Santo, põe-se o caso de, se decidir em contrário aos pedintes em causa, sermos obrigados a concluir que é do interesse do Espírito Santo o contrário do que os pedintes em causa pedem (isto é, que na verdade o interesse desses pedintes é o contrário do que pedem, já que partilham da premissa de que o Espírito Santo é de facto Santo).

E com certeza outras coisas interessantes, pelo menos admitindo que esses pedintes ao Espírito Santo tenham uma ideia (uma ideia sequer!) do que signifique "o Espírito Santo" (o que não é de todo líquido).

Carlos P. P. disse...

Interessante divagar sr. Miguel. Num plano mais concreto, Cavaco sempre demonstrou ser um tecnocrata acima de tudo. Não sou a favor do seu feitio mas se existe politico com ética oldfashion é Cavaco. Quem melhor para travão?

Manuel Vilarinho Pires disse...

Caro Miguel,

O Doutor Cavaco Silva ter-se-á posto a jeito para ser alvo de comentários humorísticos e satíricos, talvez quando afirmou, esquecendo o que nos sugere a cultura católica dominante de exibir modéstia, ainda que simulada, que nunca tinha dúvidas e raramente se enganava, ou quando disse, também recorrendo ao seu sentido de humor, que gostaria de ajudar o então PR a terminar o seu mandato com dignidade.
Quem com piadinhas fere, com piadinhas sofre, e não há nada a dizer sobre isso.

O que me suscita este comentário é a forma como especula sobre um homem indeciso e aberto a decidir em função de influências de outros, mais ou menos terrenos, mais ou menos divinos.
Ora se há um político em Portugal que me parece razoavelmente transparente, através de um padrão muito marcado no seu comportamento público, goste-se ou não do que essa transparência revela, é o Doutor Cavaco Silva.
E a transparência revela que ele normalmente decide pela sua própria vontade e dentro da legalidade.
Tem sido assim desde que é PR, e não me consigo lembrar de nehuma excepção a este padrão, da mais pequena exorbitância dos seus poderes, mesmo quando decide contra a sua óbvia preferência individual.
Aliás, parece que temos tido a sorte ou o bom-senso de todos os PR eleitos em Portugal terem excercido mandatos razoavelmente decentes, com algumas dúvidas relativamente aos governos de iniciativa presidencial do General Ramalho Eanes, mas em circunstâncias especiais de ingovernabilidade que talvez não permitissem alternativas melhores, e tendo como única excepção a nomeação de um PM de quem não havia o mais ténue indício de ter qualquer legitimidade eleitoral, pelo Dr. Jorge Sampaio.

Também nunca o vi manifestar qualquer indício de hostilidade à "ditadura da democracia", nunca o vi tentar exercer poderes que não lhe tivessem sido conferidos por maiorias em eleições democráticas e, quando pareceu que elas não seriam renovadas em eleições, nem sequer se candidatou.
Não sei se a sua convicção sobre tal hostilidade se baseia em factos que me passaram despercebidos ou numa percepção mais perspicaz do que a minha sobre o que ele pensa (eu apenas consigo aperceber-me do que ele diz e do que ele faz).
Se for este o caso, permita-me que lhe recorde, e não me leve a mal por fazê-lo, que em Democracia não se pode ser condenado pelos pensamentos nem pelas opiniões, mas apenas pelos actos.
E da análise dos seus actos, parece-me inocente.

Saudações democráticas!

CN disse...

O quem deviam era acabar de todo com o casamento civil. Não serve para nada, se é função simbólica, a lei não serve para isso. As pessoas podem estabelecer a convenção civil que quiserem e registá-la num notário e chamar a isso casamento ou outra coisa qualquer.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Manuel,
o alvo do meu post era menos Cavaco Silva do que a iluminação pelo Espírito Santo nos seus usos políticos.
No entanto, do ponto de vista democrático, digamos que a política é uma actividade não-profissional que se exerce através da deliberação e decisão entre cidadãos iguais (enquanto cidadãos e independentemente das suas diferenças pessoais e das suas competências especializadas neste ou naquele domínio) das matérias que a todos afectam e, nessas matérias, das soluções que a todos vinculam. Assim, em democracia ninguém tem mais direito à palavra do que qualquer outro, e a participação igualitária de todos no poder comum exclui o governo dos melhores, dos mais sábios, dos mais informados em economia, entomologia ou física quântica, dos superiormente consagrados por esta ou aquela religião ou associação desportiva.
Enfim, poderia continuar a enumerar os traços distintivos da democracia, mas o que disse até aqui, equivalendo à sua definição como cidadania governante, basta para os efeitos desta discussão. Ou seja, basta para fundamentar o juízo negativo que formulei (acessoriamente) sobre as convicções democráticas de Cavaco. Ou você acha que é preciso reflectir muito para concluirmos que a sua concepção do poder como competência reservada, sobre a sua concepção tecnocrática da política e do governo, são justamente o contrário da autonomia democrática e do exercício regular, quotidiano, da participação nas deliberações e decisões públicas que definem a cidadania governante?
Já agora, deixe-me chamar a sua atenção para que esta minha resposta contém implicitamente uma outra, que é a que eu daria às questões que, noutra caixa de comentários, você me pôs sobre o Estado. Com efeito, não penso que a democracia seja um regime sem leis, sem instituições, sem poder político. Mas o poder político democrático assenta, ao contrário do exercido pelos aparelhos de Estado e pelas burocracias hierárquicas, na participação responsável e igualitária de todos os cidadãos no exercício das capacidades políticas governantes.
Abrç

msp

Manuel Vilarinho Pires disse...

Pois CN, as pessoas não podem é, por contrato privado registado num notário, determinar que no caso de morte de uma delas a outra deve beneficiar de uma pensão de sobrevivência, ou ser isenta do pagamente de imposto de selo relativamente à herança.
O casamento, civil ou religioso, pode ter (e tem quase sempre) uma carga simbólica muito grande, mas não é sobre ela que a lei deve tomar posição, mas sobre as suas implicações na vida civil e económica dos cidadãos envolvidos.

Manuel Vilarinho Pires disse...

Caro Miguel,
Mais uma vez, estamos de acordo em parte, e suponho que já lhe tinha antes dito num comentário que considero, sem a mais pequena ponta de ironia, que o perfil ideal de um Ministro das Finanças é o de uma dona de casa.
Tendo acrescentado "devidamente assessorada por especialistas na matéria", porque há matérias relevantes para as decisões políticas, na economia e nas finanças, como em todos os domínios da governação, que não são facilmente intuídas por leigos.
Isto não torna um tecnocrata particularmente indicado para um ligar no governo mas, para dizer a verdade, também não o exclui.
Ora o Doutor Cavaco Silva é mesmo aquilo que se pode designar por um tecnocrata, um técnico respeitável e respeitado, provavelmente algo intolerante a opiniões menos sustentadas cientificamente que a sua.
Mas a sua prática democrática parece-me adequada. Quando ganha eleições exerce os seus mandatos e os seus poderes de acordo com a lei, quando não ganha não tenta exercê-los contra a vontade dos eleitores. Pode criticar, mas nunca o vi pretender chegar ao poder sem ser através dos mais estritos mecanismos democráticos prescritos pela nossa Constituição.
Quanto ao "Espírito Santo", quer-me parecer que o Miguel é tão religioso como eu.
Se assim for, não penso que valha a pena gastarmos muito tempo a discutir fantasias dos que acreditam nelas...
Cumprimentos,

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Manuel,
mais jovem do que eu, a frase que escreve sobre a dona de casa talvez lhe pareça inocente. A mim, arrepia-me: era o Salazar que se propunha governar o país como uma boa dona de casa.
Independentemente da memória do Salazar, a frase tem o inconveniente de despolitizar as questões ou de privilegiar os aspectos "neutros", "contabilizáveis", sobre todos os outros.
Quanto ao respeito pela legalidade de Cavaco, não o ponho em dúvida. Aqui a diferença é que, ao contrário do que o meu amigo talvez sustente, penso que estamos muito longe de viver num regime democrático. Somos, politicamente, uma sociedade governada por uma oligarquia liberal - como dizia Castoriadis -, marcada por conquistas e direitos de origem democrática, que são preciosos apesar de tudo, mas reduzidos a formas essencialmente passivas e que nas últimas décadas, tanto quanto me é dado ver, tendem a definhar ou a esvaziar-se.
Abrç

msp

Manuel Vilarinho Pires disse...

Caro Miguel,

Creio que não terá sido pela sua semelhança com as donas de casa que o Doutar António Salazar lhe despertou os arrepios que eu partilho, mas sim por ser um ditador, por mandar prender, torturar e matar os seus adversários políticos.
A dona de casa no Ministério das Finanças levaria para lá o bom senso-comum, a noção das dificuldades da vida das pessoas que não são CEO's ou analistas financeiros que normalmente rodeiam (ou mesmo cercam e isolam da realidade) os Ministros das Finanças, e a responsabilidade de quem está habituado a gerir, não recursos colectivos aparentemente ilimitados, mas os seus próprios recursos limitados.

Também estou de acordo que a nossa democracia tem margem para aperfeiçoamento.
Seria incapaz de dizer que não vivemos em democracia, mas reconheço que o nosso sistema democrático foi capturado pelos partidos.
Ao apropriarem-se da capacidade de escolher a maioria dos deputados à AR, deixando aos eleitores a possibilidade de eleger uma pequena minoria, os partidos capturaram ao eleitorado o poder deste órgão nuclear no nosso sistema político.
Uma AR composta por deputados que, em vez de serem individualmente responsabilizáveis pelos seus eleitores, são dependentes do seu partido, sendo o partido da maioria por sua vez dependente do Governo, não tem capacidade para fiscalizar a acção do Governo.
E creio que é daí que resulta a maior parte dos males da nossa democracia, até o da despolitização.
A solução para este problema é ao mesmo tempo, extremamente simples, e impossível: é a eleição dos deputados à AR em círculos uninominais.

Cumprimentos,