27/04/10

Sobre o parlamentarismo branco

Se um tipo como Aguiar Branco cita Lenine, escolhendo um momento institucional e solene, no palco parlamentar e nas barbas de Cavaco Silva, como posso eu passar sem invocar o mestre de todos os mestres revolucionários? Mal parecia, atendendo às trajectórias políticas e partidárias tão diferentes que me distanciam do antigo ministro da justiça e candidato falido à liderança do PSD. Para mais, durante o PREC, ensinar Lenine em horário pós-laboral aos camaradas então mais atrasados em teoria e leituras foi uma das tarefas revolucionárias que me couberam em sorte. E que, como todas e tantas outras, cumpri com disciplina e fé. Pois quanto a Lenine e ao leninismo, tenho pergaminhos velhos e lustrosos que nada têm a ver com o fascínio incipiente que agora por ele nutre este barão provocador das hostes laranjas.

O grande problema de Lenine e do leninismo é que ambos só se adequam, se for esse o caso, a momentos históricos em que a política se centra e se decide pela brutalidade, pela violência, pelo terror, pela revolução ou por golpes. E, nesse sentido, Lenine e o leninismo entendiam-se e serviram (com a eficácia reduzida das particularidades da dimensão lusitana) nos momentos de desmantelamento da ditadura derrubada e na resposta à violência contra-revolucionária liderada por Spínola e outros. Como aprender com Mao, Giap e Che só fazia sentido se a perspectiva fosse a opção pela guerrilha de base camponesa (o que significou que, em Portugal, mesmo no PREC, o maoísmo e o guevarismo nunca tenham passado de excitações juvenis e … urbanas). Numa democracia estabilizada, em que o problema que se coloca é o seu aperfeiçoamento, não se questionando o regime mas sim a governação, citar Lenine, invocar Lenine, ou alimenta um jogo perverso de duplicidade entre democracia e revolução (em que a primeira só serve de “sala de espera” até que a segunda opção, a estimada, adquira condições objectivas e subjectivas), categoria de que dispenso incluir Aguiar Branco, ou então é recurso usado na área da retórica da ironia de alfinete. Ter-se-á, claramente, verificada a segunda hipótese. O que, sem a profundidade da autenticidade ou da oportunidade, teve o efeito do insólito. Sobretudo ao provocar risos nos companheiros parlamentares e leninistas que nunca invocam Lenine ali, na Assembleia da República, templo da democracia burguesa por quem o mestre dos mestres revolucionários nutria um profundo e coerente desprezo.

(também publicado aqui)

2 comentários:

Anónimo disse...

É um prazer lê-lo. Oxalá nos próximos tempos, em que o Capital apertará o cinto a todos nós, se exija democracia fora desse templo de democracia burguesa.

João Tunes disse...

Bom tema para um próximo post.