29/07/20

O abate de animais em canis

Agora é moda atacar a lei de 2016 que proíbe o abate de animais saudáveis em canis - mas uma coisa que noto é que as pessoas que criticam essa lei (normalmente dizendo "é preciso primeiro criar condições") só começaram a reclamar em 2018, quando ela entrou em vigor - como exemplo temos o João Miguel Tavares, que pelos vistos se orgulha de em 2018 ter falado do assunto (se estava tão preocupado, porque é que não falou logo em 2016?); este post da Helena Matos também parece confirmar isso (dizendo que "quando da aprovação da legislação urbano-fofinha sobre a proibição do abate de animais nos canis  foram vários os veterinários e associações do sector que explicaram a inviabilidade da aplicação desta lei", mas depois linkando para artigos de... 2018).

Ora, se numa lei aprovada em 2016 mas com um prazo de 2 anos de preparação para entrar em vigor, só quando acabou o prazo é que toda a gente se lembrou que afinal não podia ser, isso quer dizer que na altura ninguém se preocupou realmente em adaptar os canis para deixarem de funcionar numa lógica de abate, porque se o tivessem das duas uma:

a) Iam pensar que adaptações teriam que fazer nos canis, concluído que não as conseguiam fazer em 2 anos e reclamado logo na altura

b) Ou então teriam concluído que se conseguiria mesmo por os canis a funcionar em 2 anos e não haveria problema nenhum

Claro que há  a hipótese de ter havido um erro generalizado de perceção, em 2016 os responsáveis locais terem todos ficado convencidos que 2 anos seria suficiente para reestruturar os canis e afinal não terem sido; é possível - mas quase que aposto que o que aconteceu foi nessa altura toda a gente ter pensado "ah, isso é daquelas coisas que fazem lá em cima em Lisboa mas depois não é para se aplicar" e só quando chegou o ano de 2018 é que perceberam realmente que a lei era suposto ser aplicada - ou seja, se a lei tivesse dado um prazo de 50 anos para entrar em vigor, em 2066 teríamos à mesma toda a gente a dizer "ainda não há condições!" .

O problema da conversa de que só se pode acabar com os abates de animais em canis quando "houver condições" é que o "houver condições" é em parte endógeno, não exógeno - isto é, se os canis poderem abater animais para não ficarem sobrelotados, claro que o incentivo para ampliar canis ou arranjar donos para os animais que lá estão é menor do que se não os poderem abater.

Um exemplo simples - há tempos, no Algarve, alguns imbecis tiveram a ideia de acabar com os canis municipais e fazer um mega-canil regional em Alcoutim; creio que esse projeto foi abandonado, mas no novo quadro legal não faria sentido nenhum (por isso é que digo que os seus autores são imbecis): se o destino dos animais em canis já não é o abate mas sim a adoção, os canis têm que estar relativamente ao pé das localidades; ora, alguém está a ver este diálogo numa família de Faro ou Portimão?

Filho - "Quero um cão pelos anos";

Pai - "Está bem; no fim de semana, vamos fazer uma viagem de duzentos ou mais quilómetros, ida e volta, por uma estradas sinuosas na serra algarvia, para irmos ao canil de Alcoutim buscar um cão."

Claro que não - se já hoje em dia são raras as pessoas que vão buscar cães e gatos a canis, ainda menos as seriam assim (declaração de interesses - nem o Pantufa nem a Íris vieram de algum gatil; foram-me dados por pessoas que os acharam na rua); isso é indicativo que os decisores até há muito pouco tempo não pensavam nos canis como locais de adoção mas de abate, o que significa que sem uma lei ou algo parecido proibindo os abates, os canis continuariam a ser construídos a pensar no abate, e ficaríamos num ciclo vicioso sem solução (em que nunca se poderia acabar com os abates porque ainda não havia condições).

[Eu digo "uma lei ou algo parecido" porque poderá haver aqui efetivamente uma questão sobre se isto deverá ser decidido por uma lei da Assembleia da República para o país todo ou por regulamentos aprovados pelas Assembleias Municipais; o meu ponto é que, sem alguma decisão política de acabar com os abates - independentemente do nivel a que seja tomada - dificilmente haverá condições técnicas para isso]

Quanto há conversa do "é por causa desta lei que aqueles cães em Santo Tirso morreram", é um bocado aquela conversa do "tivemos que a destruir para a salvar" (a respeito da destruição de aldeias na Guerra do Vietname); basicamente o que essas pessoas estão a dizer é que, se aqueles cães (ou outros no lugar deles) tivessem antes sido abatidos, não teriam morrido agora no incêndio - é discutível que essa seja uma grande vantagem; eu imagino que o raciocínio implícito é que é melhor morrer eutanasiado do que queimado, e até é verdade, mas a alternativa não é entre 73 animais serem eutanasiados ou queimados vivos; é entre 73 animais queimados vivos e uns 10.000 eutanasiados por ano.

Um aparte - espero que os canis não andem a recolher gatos vadios; se estão assim tão cheios, não faz sentido recolherem um animal que (ao contrário dos cães) praticamente não representa perigo para os humanos e cuja população pode ser controlado pela método de captura-esterilização-libertação.

Finalmente, algumas pessoas dirão que é uma incoerência ser contra a eutanásia de animais saudáveis mas a favor da legalização da eutanásia em humanos; a respeito disso, eu pessoalmente nem me incomodaria se voltasse a haver abates em canis se feitos de acordo com os trâmites dos projetos de eutanásia que foram apresentados no parlamento (como este-pdf): p.ex., se o cão fizesse um pedido por escrito (revogável a qualquer momento), fosse avaliado por um médico que confirmasse que ele estava consciente no momento do pedido (e eventualmente também por um psiquiatra animal), depois fosse a uma comissão que confirmasse que se verificavam todas as condições previstas na lei, e só depois disso o cão fosse eutanasiado (podendo o cão, como já disse, desistir do processo a qualquer momento). Ok, isto que eu estou a dizer neste parágrafo não faz grande sentido, mas é só para mostrar que a analogia que alguns tentam fazer entre a eutanásia em humanos e a eutanásia em animais também não faz sentido (são duas coisas bastante diferente com o mesmo nome, um pouco como "com o empréstimo que pedi ao Novo Banco, comprei um novo banco para a cozinha").

25/07/20

A crise política na Guiana

Um país que pouco se fala mas parece estar à beira do abismo (culpa de se ter descoberto petróleo?):
David Granger lost his bid to be reelected as president of Guyana. The ruling party appeared to manipulate the initial vote counting process. The recount monitored by observers showed an opposition victory. The president lost the appeal to the Caribbean Court of Justice. All of this comes after Granger manipulated the system to delay the election for over a year following a no-confidence vote that should have forced swift new elections.

The OAS, which had an observer mission in the country for the election, declared that the incumbent party lost and a power transition to President-elect Irfan Ali of the PPP/C should begin. Caricom has called for Granger to step down. The US has imposed sanctions on the Granger administration to pressure the president to accept his loss.

The international community’s willingness to turn against Granger is a sign of how unquestionable the loss is. Granger was clearly the preferred candidate for foreign businesses that want to invest in the country. Prior to this year, Granger had been an ally of the Lima Group and the US on Venezuela - the region’s biggest democracy challenge. If there was any question over the validity of the election, Granger would have allies supporting his effort to remain in power. He does not. [Latin America Risk Report, por James Bosworth]
Financial Times - Guyana’s long election deadlock stirs fears of civil war:
Four months after the most important election in Guyana’s history, there is still no officially recognised winner. The paralysis is hitting the country’s fledgling oil industry and there are worries the tiny South American country might slide into a racially charged civil war.
Para terem uma ideia da política da Guiana, podem ter uma olhada nos artigos da Wikipedia sobre o atual partido do governo e sobre o partido da oposição (que tudo indica ganhou as eleições, mas o presidente aparentemente derrotado recusa-se a deixar o cargo) - não me parece haver grandes diferenças ideológicas entre os dois (embora durante a Guerra Fria o primeiro tivesse uma reputação de mais pró-ocidental e o segundo de mais pró-soviético), mas sobretudo uma divisão étnica (um mais assente na comunidade negra, outra na de origem indiana).

18/07/20

Trump começa a preparar a lei marcial?

Pelo menos em Portland (Oregon), onde agentes não-identificados em carrinhas descaracterizadas andam a prender manifestantes nas ruas:
Aparentemente, a combinação entre as leis aprovadas contra o terrorismo após o 11 de setembro e as leis recentemente aprovadas para combater a pandemia Covid-19 tornam isso possível.

A respeito disso, Noah Smith (um economista de centro-esquerda) escreve "Ironically, all the 1990s right-wing libertarians who were paranoid about the power of federal agents turned out to be right. They were just 25 years too early, and wrong about who would be targeted!".

15/07/20

As criticas às criticas a Riccardo Marchi

Eu não gostei de parte do tom daquele misto de artigo e abaixo-assinado a criticar uma entrevista televisiva de Riccardo Marchi (e implicitamente o seu livro sobre o CHEGA) - um tom demasiado normativo (e no último parágrafo muito para o pós-modernista); mas de qualquer maneira fazem criticas fundamentadas, ponto por ponto, ao que Marchi disse (e não disse).

Já a maré de artigos que têm sido escritos nestes últimos dias a criticar esse artigo são ainda piores: do que tenho lido, aí é que são críticas mesmo 100% normativas, ignorando completamente os pontos que são levantados (sem sequer os tentar refutar), e limitando-se a dizer algo como "os subscritores do artigo são maus!".

02/07/20

Monitorizar o "discurso de ódio"

Vigiar o "discurso de ódio" na internet implica puder-se vigiar TUDO o que é dito na internet, já que só se sabe se o que alguém publicou é "discurso de ódio" depois de se ler o que foi publicado.

O fim do CHOP/CHAZ

Algo que mereceria uma reflexão: porque será que enquanto Christiania (Copenhaga), as squatts de Amsterdão ou Berlim, ou até mesmo de certa maneira Exárquia (Atenas) duram ou duraram décadas, o CHOP/CHAZ de Seattle acabou em poucas semanas (e mesmo antes de ter sido desmantelado pela polícia, parece que já era uma grande confusão, pelas notícias que surgiam)?

Será que os Boomers eram mesmo melhores do que os Zoomers a criar e manter "zonas autónomas"?

[Diga-se que em muitos aspetos, o CHOP/CHAZ era mais uma manifestação glorificada, à maneira da "acampada do Rossio", do que uma verdadeira zona autónoma, estilo Christiania - mas, se alguma coisa, acho que isso até a tornaria mais fácil de funcionar]

01/07/20

Re: Verdade inconveniente sobre o racismo e sexismo dos Democratas nos EUA (II)

No post anterior, em resposta a Cristina Miranda, argumentei que durante grande parte do século passado havia grandes diferenças ideológicas entre o Partido Democrático do Sul dos EUA e o Partido Democrático do "resto", e que o moderno Partido Democrático deriva largamente do "resto" (enquanto muitos Democratas sulistas tradicionais se passaram para os Republicanos).

Mas nos EUA é díficil (e no século passado ainda mais dificil era) associar partidos a ideologias; como um Republicano disse em 1923, "Any man who can carry a Republican primary is a Republican. He might believe in free trade, in unconditional membership in the League of Nations, in states' rights, and in every policy that the Democratic Party ever advocated; yet, if he carried his Republican primary, he would be a Republican." Talvez mais relevante do que ver as posições dos partidos (que nos EUA pouco mais são que linhas num boletim de voto, sem grande estrutura real por detrás), é ver a de movimentos ideológicos mais homogéneos; nomeadamente do chamado "conservadorismo", que quase que se pode dizer que foi inventado nos anos 50 para nas décadas seguintes ter tomado o controlo do Partido Republicano (de tal forma que hoje em dia os dois conceitos às vezes são usados quase como sinónimos). E qual era a posição do movimento conservador que se desenvolveu a partir dos anos 50 sobre a questão sulista?

Re: Verdade inconveniente sobre o racismo e sexismo dos Democratas nos EUA (I)

No Blasfémias, a Cristina Miranda descobriu a pólvora e refere que nos EUA o Partido Democrático foi quem mais defendeu a escravatura, e, depois da Guerra da Secessão, a segregação racial nos estados do Sul.

Em primeiro lugar, esclareço desde já que se fosse norte-americano (com as mesmas ideias que tenho, o que provavelmente não seria o caso) seria provavelmente apoiante dos Verdes, ou talvez do Libertarian Socialist Caucus dos Democratic Socialists of America.

Regressando ao post da Cristina Miranda, o que ela diz é verdade (como imagino que toda a gente saiba, mas talvez esteja enganado; por outro lado, se tradicionalmente o racismo vinha mais dos Democratas, a xenofobia vinha mais dos Republicanos e dos seus antecessores), mas esqueceu-se de falar de muitas coisas - a principal que muitos Democratas sulistas, a partir dos anos 60, passaram para o Partido Republicano.


A "prova A" é o senador Strom Thurmond, um segregacionista do Sul, governador Democrata da Carolina do Sul de 1947 a 1951, candidato presidencial em 1948 (pela ala sulista do Partido Democrata, que nesse ano apresentou uma candidatura autónoma em vez de apoiar Truman, descontentes com a sua política de acabar com a segregação racial no exército), senador da  Carolina do Sul, pelo Partido Democrata de 1956 até 1964 e pelo Partido Republicano de 1964 até 2003 (até agora, o único senador que exerceu o cargo até aos 100 anos de idade); em 2002, na festa do seu 100º aniversário, o então líder de bancada Republicano, o senador do Mississipi Trent Lott, declarou "I want to say this about my state: when Strom Thurmond ran for president, we voted for him. We're proud of it. And if the rest of the country had followed our lead, we wouldn't have had all these problems over the years, either".

Mas a lista de Democratas conservadores sulistas que passaram para o Partido Republicano é longa: para começar, temos logo o referido Trent Lott, que até 1972 era Democrata. Mais:

[atenção que esta lista não pretende implicar que qualquer das pessoas abaixo tenha sido segregacionista; muitos até são relativamente novos  - nomeadamente os que mudaram de partido já neste século - e nem passaram por essa época; o meu ponto em que grande parte do Partido Republicano do Sul veio do Partido Democrático]