30/06/13

João Valente Aguiar no Passa Palavra: "O 'nacionalismo de base proletária' e o papel do PCP (1ª parte)"

O João Valente Aguiar publica hoje no Passa Palavra a primeira parte de um brilhate ansaio sobre O "nacionalismo de base proletária" e o papel do PCP, que declara como ponto de partida algumas questões levantadas pelo José Nuno Matos em resposta a um outro texto seu (texto originalmente publicado, tal como a resposta do JNM, também no Passa Palavra).


Creio que a melhor maneira de prestar homenagem à inteligência e à inspiração profunda da primeira parte do novo ensaio do JVA consiste em formular algumas ideias ou questões que me ocorreram ao lê-lo. Por isso retomo aqui quase literalmente o comentário que acabo de publicar no Passa Palavra.

1. Não será possível que o “patriotismo de esquerda” pareça hoje, apesar de tudo, mais insistente e monocórdico dado o enfraquecimento relativo da vertente “internacionalista”, consistente na proclamação da fidelidade à União Soviética e aos seus interesses de potência, após o desaparecimento daquela – e dado, por outro lado, o fim, no que a Portugal diz respeito, da questão colonial? Parece-me inegável que o "nacionalismo" do PCP fica mais exposto sem o tempero e os efeitos de contraste que lhe conferiam, por um lado, a "construção do socialismo"na URSS, e, por outro, a "questão colonial" do regime deposto em 1974. Daí que, apesar da continuidade, alguma evolução terá havido nesta matéria, tendo sido um dos seus resultados tornar mais agressiva a expressão do "patriotismo de esquerda" (antes, além do papel "afirmativo" e "constituinte" que o JVA demonstra à saciedade, o nacionalismo do PCP tinha também uma dimensão "defensiva", respondendo aos que o acusavam de ser um "partido estrangeiro", etc., etc.).

2. Seria, pois, interessante vincar como — ao mesmo tempo que o “nacionalismo” que o JVA sobejamente atesta e que o Zé Neves já destacara em termos memoráveis há alguns anos (cf. José Neves,  Comunismo e nacionalismo em Portugal. Lisboa, Tinta da China, 2008)  — o pólo “internacionalista”, embora menos altissonante, uma vez que o sol do “socialismo real” se extinguiu entretanto, persiste nas concepções geoestratégicas do PCP, que, embora menos imeditamente manifestas, alimentam, afinal, a sua táctica “nacionalista”. Por exemplo, a insistência cada vez mais exasperada na saída da zona-euro e na desagregação da UE parecem-me sinais claros da actualidade que as considerações geoestratégicas conservam. O PCP sabe que nem a “restauração da soberania” nem a “independência nacional” bastam para tornar verosímil em Portugal – ou a partir de situações comparáveis noutros países – o triunfo do seu modelo de sociedade e de Estado, pelo que não pode deixar de ter como objectivo fundamental a criação de condições que permitam a reemergência de um “campo socialista”. O tema da solidariedade com as nações que lutam contra o “imperialismo” dos EUA e da UE é revelador a este respeito. O que é anti-americano ou anti-europeu é bom. E por isso é preciso difundir a ideia de que é impossível democratizar a UE ou a sociedade norte.americana, transformar no seu terreno as relações de forças, uma vez que se decretou que só do exterior poderão ser mudadas.

3. A questão do “fascismo sem nome” é complexa. Sem dúvida, Bardèche tem razão a seu modo quando diz que boa parte das concepções do fascismo são adoptadas por gente que ignora a origem das que proclama e correspondem àquelas. Continua, no entanto, a ser difícil, senão impossível, conceber um movimento de tipo fascista que não reclame um nome e algumas fórmulas ideológicas tornando-os objectos sagrados, consagrando-os por meio de um culto ritualizado e explícito distintivo, apresentado como alternativa e superação perante todas as outras posições políticas. É claro que o nome sagrado pode não ser “fascismo”, e o credo proposto como verdade salvífica e única pode não se confessar “fascista” (ou até dizer-se “antifascista”). Mas um e outro terão de estar presentes quando emerge um movimento de tipo fascista, uma vez que são um dos seus elementos constituintes necessários. Seria necessário analisar tudo isto com mais tempo. Mas creio que, se a gestação do fascismo pode ser silenciosa e dissimulada, o seu desenvolvimento posterior não pode avançar sem declaração e exasperação identitárias radicalizadas.

O pseudo-acontecimento

Percebo, e subscrevo, todas as críticas à hierarquização das notícias a favor do sequestro de 226 pessoas por parte da PSP e, correspondentemente, a desfavor das centenas de milhares de trabalhadores em greve. Percebo, e aceito, todas as dúvidas e críticas suscitadas pela dita manifestação. O que não percebo, e dificilmente aceito, é que a mesma seja encarada como um «não episódio» ou um «não acontecimento». O próprio presidente do conselho distrital da ordem dos advogados parece discordar de Daniel Oliveira quando afirma que “Não é normal que sejam detidas mais de 200 pessoas numa noite”. Ainda para mais quando o suposto não acontecimento resulta da aplicação de táticas policiais cuja compatibilidade com direitos e liberdades é, no mínimo, discutível. 

PS. Não será a saída de Daniel Oliveira do Bloco de Esquerda um «não acontecimento» produzido pelos meios de comunicação social?

28/06/13

«Lições do Brasil para Portugal»

Excerto do artigo do colectivo do Passa Palavra sobre alguns aspectos das lutas brasileiras recentes e que comportam reflexões importantíssimas para o actual cenário português.




«As reportagens do Passa Palavra sobre a Revolta dos Coxinhas, se puderam deixar surpreendidos ou incrédulos os leitores portugueses, em nada surpreenderam os leitores brasileiros que presenciaram essa fascização da contestação política, quando não a sofreram no corpo. Seria importante que os leitores portugueses prestassem atenção a esses relatos. Não só porque «nenhum homem é uma ilha isolada […] por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti». Mesmo na perspectiva egoísta que é tão comum, é muito possível que uma inversão política do mesmo tipo ocorra em Portugal, na sequência de protestos populares contra as medidas de austeridade.
Desde o ano passado que o Passa Palavra vem a alertar para a possibilidade de se desenvolver um fascismo em Portugal, se o país sair da zona euro e se confinar num nacionalismo económico que implica forçosamente um capitalismo de Estado. Consideramos que esse abandono do euro será a alternativa menos provável; mas, apesar de tudo, ele é possível e neste sentido desenham-se várias manobras políticas que temos procurado analisar, porque não nos interessa discutir conjecturas, mas desenvolvimentos potenciais. Assim, à luz das experiências em múltiplas cidades brasileiras, antevemos o risco de um movimento de rua iniciado como um protesto anticapitalista servir para a confluência de forças socialmente conservadoras ou fascistas, que diluam os objectivos iniciais numa proliferação de reivindicações abstractas — ou concretamente capitalistas — e que no final a esquerda acabe por ser tanto quanto a troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) o alvo dessa hostilidade.
Este risco é maior ainda em Portugal do que no Brasil, porque não existe aqui um movimento social com as características do MPL, com a sua experiência de organização e de luta nas ruas. Movimentos como os Indignados, o Que Se Lixe A Troika e outros do mesmo género começam por ser um quadro já de si difuso e, portanto, propenso a transformar as exigências específicas dos trabalhadores em temas moralistas e nacionalistas. As manifestações passadas mostraram a facilidade com que a necessária crítica ao capitalismo se converte num ataque exclusivo a alguns sectores do capitalismo, nomeadamente o sector financeiro, e até no enaltecimento dos pequenos empresários e dos patrões de oficina, esses peritos da mais-valia absoluta; a facilidade com que a crítica ao capitalismo se converte na crítica ao governo; a facilidade com que o ataque ao governo se converte num ataque a toda a política e aos políticos; finalmente, com que o ataque à política dá lugar ao enaltecimento da unanimidade nacional. Os bizantinos cortadores de cabelos em quatro — para empregar a bela expressão francesa — podem dedicar-se a explicar a diferença entre nacionalismo e patriotismo, que para nós e para o comum das pessoas significam a mesma coisa. E assim manifestações que podiam ser convocadas contra o capitalismo, ou pelo menos contra as consequências do capitalismo, terminam em grande parte como afirmações de nostalgia patriótica, colorida de verde-rubro.
E depois, que mal tem isso?
Até agora o país continuou fiel à «brandura de costumes» e, ao contrário do que sucedeu no Brasil, os patriotas aqui não enxovalharam os esquerdistas, não lhes rasgaram as bandeiras, não lhes cuspiram, não os espancaram, não os deixaram em coma. Mas até quando?».
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Reproduzo também um breve mas muito elucidativo comentário do João Bernardo na caixa de comentários desse mesmo artigo sobre o problema da circulação de elementos confusos entre organizações nacionalistas de esquerda e de direita.
«creio que algumas percentagens ajudarão a perspectivar o problema dos elementos confusos. Hitler chegou ao poder na Alemanha nos últimos dias de Janeiro de 1933. Ora, em 1932 as transferências de filiados entre o Partido Comunista Alemão e as milícias nazis, as SA, chegaram a 80% do conjunto dos membros destas duas organizações. E em Novembro de 1941 Hitler recordou num círculo de comensais que na época da pancadaria nas ruas 90% do partido nazi era composto por elementos de esquerda. Paralelamente, no Partido Comunista Alemão, entre 1930 e 1932, os abandonos e as novas adesões chegaram a uma taxa superior a 50% dos membros».

A solidariedade dos "revolucionários" burocratas é um primor

«O líder da Intersindical demarcou-se também dos incidentes nos acessos à ponte 25 de Abril, onde um grupo de aproximadamente 200 manifestantes tentou cortar a estrada.“A CGTP é estranha a esse tipo de incidentes”, afirmou».
Retirado daqui.

Seria interessante que Arménio Carlos e a CGTP comparecessem hoje às 10h no Campus da Justiça, no Parque das Nações, em solidariedade com os mais de 200 manifestantes que foram ontem cercados e identificados pela polícia por cometerem esse terrível crime de se manifestarem na rua. Quase tão grave como a actuação da polícia é a complacência de certa "esquerda" que gosta de cultivar solidariedade com as cúpulas de regimes ditatoriais e ainda mais opressores que qualquer opressora polícia ocidental (Cuba, ex-URSS, Síria, etc.) mas que se está completamente a marimbar para os trabalhadores reais que, no dia-a-dia, sofrem os efeitos da exploração e da opressão.

Quem é que ainda acha que é possível realizar alianças e acordos com esta gente? Que aliança de esquerda é possível com gente que se diz de esquerda e defensora dos trabalhadores mas que, na realidade, compactua com a criminalização dos protestos?

Solidariedade para com os 226 manifestantes que hoje irão comparecer em tribunal!

25/06/13

O Zé faz merda

A Horta do Monte foi destruída com máquinas e bastonadas. Às 9 horas a horta já estava completamente destruída. Houve gente agredida, outra detida. Ficou a tristeza e desolação de quem passou anos a intervir no espaço, a recuperar algo que estava abandonado e degradado e o transformou num espaço de construção, de aprendizagem, de partilha, de comunidade.

A prepotência da Câmara de Lisboa é notória e prova que o slogan da participação é um marketing com muito pouca substância. Participe! … mas quando nós queremos, da forma como nós queremos, dizendo o que nós queremos… De outra forma, é desprezado, é cilindrado, é bastonado.

A participação é também o uso e apropriação do espaço público, é a capacidade de construir projectos e de contribuir para a melhoria da cidade. O projecto da Horta do Monte era um exemplo destes. Ficam registadas a falta de respeito e de diálogo, a prepotência e violência. Estas não podem, nem ficarão, impunes.

As ideias não se despejam, cultivam-se!
Habita: Coletivo pelo Direito à Habitação e à Cidade

Mais relatos aqui

24/06/13

O pior cego é o que não quer ver nem deixar que os outros vejam

Num breve post que vale a pena meditar um instante, Luís Menezes Leitão escreve: "Efectivamente uma das propostas eleitorais de Marine Le Pen é a saída da França do euro. Como o euro não subsistirá sem a França, se a Frente Nacional alguma vez ganhar as eleições, é certo e seguro que o euro acaba e com ele a União Europeia". Não me vou alargar aqui, repetindo que semelhante desfecho seria, por um período de duração indeterminável, uma regressão política e civilzacional global, que levaria ao extremo, em todas as regiões do mundo, a subordinação da grande maioria dos homens e mulheres comuns às oligarquias dirigentes, mais ou menos recicladas no decorrer do processo. Mas não posso deixar de perguntar até quando, na região portuguesa, aquelas fracções, que, à esquerda, se reclamam de princípios democráticos e participativos inegociáveis, mas, na esteira do PCP, fazem seus objectivos a saída do euro e/ou a desagregação da UE, ou, pelo menos, o combate à perspectiva democrática de uma integração europeia orçamental, fiscal e constitucional, continuarão a não querer ver, e a querer que os outros não vejam, o abismo em direcção ao qual nos animam a prosseguir ou cujas proporções e riscos moratis porfiam em minimizar.

O vale-tudo da unidade contra a troika esconde um nacionalismo larvar

Excerto de um artigo publicado no Passa Palavra sobre as considerações acríticas que presidem aos discursos a clamar por um governo de esquerda.

«Enganam-se os que em várias circunscrições políticas à esquerda pensam que basta a unidade de todos os opositores à austeridade para se desenvolver um novo caminho político seja no plano parlamentar e governativo, seja no plano que nos interessa discutir: o do avanço das lutas sociais e da internacionalização das reivindicações e das lutas dos trabalhadores.
Aliás, enganam-se duplamente.
Por um lado, porque não há maior debilidade política do que o recurso a critérios vazios de substância como o da unidade frentista a todo o custo. Uma vasta coligação não implica um acréscimo de intervenção e de poder para todos os intervenientes. Os que pensam na participação a todo o custo num actual governo de esquerda, e pensam que isso será apenas mais um normal exercício de poder, esquecem não só que não basta ser governo para resolver o que quer que seja. Como esquecem que só os que têm consciência de que essa coligação frentista é um meio para reorganizar os pólos de poder no Estado e que só os que actuam numa tal coligação frentista com os seus reais motivos ocultos e bem definidos, só esses podem aspirar a vencer. E a vitória dos nacionalistas nunca será apenas uma vitória parlamentar. Será sempre uma vitória alicerçada na tentativa de instauração de um capitalismo assente nos mecanismos da mais-valia absoluta e num regime político estatista de contornos autoritários que, num caso extremo, podem abrir caminho a uma nova forma de fascismo.
Por outro lado, o abandono de uma linha reivindicativa própria da classe trabalhadora em torno do emprego, dos salários e da solidariedade internacional entre os trabalhadores, em prol da definição de linhas políticas assentes na “salvação da economia nacional”, do “bem do país” ou contra a troika que está a “destruir Portugal e os portugueses”, contribui apenas para povoar as estradas do nacionalismo.
A pretexto do enfoque unilateral da crítica política ao governo e à troika, os silêncios e as conivências de europeístas, internacionalistas e mesmo de anticapitalistas com os sectores nacionalistas do PCP e da CGTP são por si só demonstrativos de uma perigosa evolução. Se são poucos os anticapitalistas que realmente criticam os inimigos externos e internos no seio da classe trabalhadora, pode concluir-se que o campo nacionalista à esquerda já conseguiu neutralizar e amarrar grande parte dos que se designam como anticapitalistas.
A tragédia que ameaça os trabalhadores portugueses e os imigrantes residentes em Portugal não se resume à perda do emprego, de rendimentos e de condições de vida. À tragédia concreta da austeridade que assola a classe trabalhadora soma-se a tragédia política de uma esquerda que em Portugal é a ponta-de-lança da difusão de uma ideologia nacionalista e de soluções ainda mais nefastas para a vida concreta dos trabalhadores. A ausência de uma dupla crítica à austeridade desenvolvida pelos capitalistas, e aos elementos que se propõem combatê-la com o nacionalismo económico e político, só redundará num prolongamento da austeridade.»

A situação no Brasil: ousar saber o que de melhor foi feito, para que a lucidez não venha a ser só póstuma

Tal pode ser uma maneira de entender a proposta do novo "retrato em movimento" que o Passa Palavra dedica à situação no Brasil, Uma nação em cólera: a revolta dos coxinhas. Leitura eminentemente recomendável, como espero que os seguintes excertos ajudem a mostrar:

No primeiro momento, o MPL-SP, ao tomar como tática as ações de rua e a luta de enfrentamento (em detrimento da via pacificadora da negociação sem luta), conseguiu realizar um feito histórico: pôs em xeque, à extrema-esquerda do espectro político, a engenharia conciliatória solidamente construída por todos estes anos de hegemonia petista no Brasil. Vale lembrar que, dias antes, mobilizações parecidas já haviam acontecido em algumas capitais brasileiras e obtido com isso significativos triunfos, como o caso dos jovens de Porto Alegre e Goiânia, que conseguiram revogar os aumentos de tarifa. Fora preciso que um jovem movimento social, livre dos vícios e do pragmatismo que congelou as organizações de luta da classe trabalhadora erguidas em outro ciclo histórico, desse um salto para fora do que convencionamos, nos últimos anos, ser uma metodologia consequente de ação política (em nome de supostos resultados), para que a estabilidade petista não se apresentasse tão estável assim. O MPL-SP demonstrou, inclusive para muitos profissionais da militância sindical, social e estudantil, que há alternativas, sim, à ação política hoje travada somente em conselhos, fóruns, audiências públicas, redes sociais e outras instâncias de produção de consenso ou de diluição de propostas.

(…)


Hoje, como já está devidamente divulgado pela imprensa de esquerda e as mídias sociais, está em curso um conjunto de protestos pelo Brasil afora, cada qual assumindo facetas e características bastante diferentes, mas que tendem para um processo de conservadorização bastante perigoso se não forem disputados. E agora, como reagir? Entre os meios da esquerda, um pouco tardiamente, mas enfim, instalou-se o dilema: saímos das ruas ou tomamos as ruas?

Entre os anticapitalistas convém levar em conta uma dupla movimentação que acontece neste momento. Parte da esquerda acredita estarmos na iminência de um golpe de Estado fascista ou coisa do tipo. Nós não iríamos tão longe. Não porque nossas elites mais retrógadas guardem preceitos democráticos ou humanistas, mas porque isso não seria feito sem muito derramamento de sangue, o que afastaria destas terras a estabilidade necessária para os negócios. Além do mais, o fascismo não necessariamente precisa consolidar-se como regime político quando ele está suficientemente distribuído na sociedade e nas ruas.
Por sua vez, a esquerda institucional que orbita em torno do PT, apesar de estar um tanto acuada neste exato momento, constitui um campo que deve sair desgastado eleitoralmente mas, por este mesmo motivo, prolonga a ilusão em torno de seu papel no seio da esquerda em geral. É que a histeria “estamos na iminência de um golpe” deverá produzir um discurso do tipo: “não ataquemos esse governo democrático-popular, é hora de TODA esquerda — sem distinções — se unir, não devemos fazer agitações políticas que aticem a sanha da direita raivosa”, como se pode ver aqui. Devemos sair às ruas com unidade para se defender do avanço direitista, o que é muito diferente de defender o governo de Dilma. Caso contrário, voltaremos à estaca zero, ao congelamento das nossas ações.

A rua, pois, é o lugar onde devemos estar, mas é o lugar de onde nunca deveríamos ter saído. Há anos que nossas siglas às vezes contêm mais letras do que militantes ou base social. Assim, a pura e simples manutenção das manifestações, se feita de forma irrefletida, pode representar inclusive um risco para a integridade física da parca militância de esquerda. Não temos condições de fazer frente, no corpo a corpo, às marchas ufanistas que deverão seguir pelas regiões centrais e mais higienizadas das cidades. Também seria um erro convocarmos atos em que defendêssemos o abstrato direito de estarmos nas ruas por sermos de partidos e organizações de esquerda. Procederíamos ao mesmo equívoco que criticamos nas manifestações teleguiadas pela mídia.

(…)


O relato da manifestação de São Paulo ocorrida na Av. Paulista nesta quinta-feira, 20 de junho, não pode ser outro senão a operação de empresários e a extrema-direita para desestabilizar o país inspirando-se nos lockout que ocorrem na Venezuela. Não se trata de luta, mas apenas da renovação das elites do poder e demonstração do poder das elites. Aqueles que acompanharam e participaram dos grandes atos contra o aumento da tarifa organizados pelo MPL sabem bem que essas ruas já não nos pertencem mais, como antes dos protestos não nos pertenciam. Há agora um duplo desafio e um novo campo de batalha a ser travado: localmente, regressar ao trabalho de base e intensificá-lo; e, nacionalmente, construir uma plataforma de luta prática, não ideológica.

Porém, neste momento já está sendo levada a cabo uma operação de deslegitimação do MPL. “Não foi só por 0,20 que saimos às ruas!”, exclama alguém no facebook na página do Movimento. Em outro lugar o chamavam de “vendido”. Ora, o objetivo dos atos era, sim, barrar o aumento e essa era a pauta única de reivindicação. O MPL não é nem se coloca como vanguarda das mudanças sociais. Uma campanha maior pela tarifa zero começa agora. E atos com uma massa amorfa em cólera não serão um bom espaço para reivindicar que o transporte seja de fato público.

A maioria dos críticos mais à esquerda também ignora as potencialidades das pautas do MPL. Se, por um lado, a luta para barrar o aumento da tarifa de transporte é parte de um momento mais amplo de acúmulo de força e discussão, por outro, a questão do transporte se relaciona ao acesso à cidade em sua integralidade, à ruptura das barreiras sociais impostas pela segregação geográfica que o sistema de transporte excludente ajuda a fortalecer. Cabe lembrar o papel central da mobilidade urbana assumido nas lutas sobre o transporte, cujo protagonismo cabe a um trabalho de quase 10 anos de organização, estudo e militância. Desta maneira, a bandeira levantada pelo MPL incide sobre o como se pensar a estruturação da cidade em moldes mais democráticos, questionando a própria estrutura de classe subjacente a este aspecto. Mas as coisas não param por aí: ao propor a tarifa zero como horizonte de luta, o MPL ao mesmo tempo também questiona implicitamente a própria existência de espaços e acessos privatizados, incidindo na discussão sobre os modelos de estruturação da sociedade como um todo.

Assim, posições que buscam associar o próprio MPL-SP a posições de direita, por supostamente já ser “semicoxinha” em sua base social, são uma tentativa caluniosa de esconder o fato óbvio de as pautas e demandas do MPL incidirem mais diretamente sobre a população mais precarizada e marginalizada, sem contudo, se restringirem a ela. Se isto não bastasse, tais insinuações não mencionam o fato de o movimento ter antigo e prolongado trabalho de base nas mais variadas escolas e bairros de São Paulo, sendo, portanto, a preocupação com os trabalhadores mais pobres um de seus temas mais relevantes.
Outra crítica digna de nota foram as tentativas de certa esquerda, tanto partidária como independente, que durante o crescimento da luta se esforçou por sequestrar o movimento para suas respectivas bandeiras partidárias, como as PECs, as reformas políticas, a não privatização, etc., bem como as vãs tentativa de minar a credibilidade do MPL-SP com alusões descabidas a um suposto abandono da luta diante de um suposto golpe militar em curso, imaturidade e irresponsabilidade políticas.

As correntes que assumem tais críticas revelam, contudo, um ressentimento guardado por não terem sido elas a conseguir esta vitória, que em seu aspecto mais relevante diz respeito às formas e métodos de organização da luta, pautado em princípios não autoritários, horizontais, apartidários e independentes.

Assim, é importante destacar a legitimidade alcançada pelo MPL-SP como movimento preferencial para estas lutas, que saiu reforçado em sua posição pelo êxito conseguido na sua última campanha de redução da tarifa, algo que não poderá mais ser ignorado por todo campo de esquerda, abrindo novos horizontes à organização da luta anticapitalista.

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21/06/13

"O fascismo é uma minhoca que se infiltra na maçã" — bem dizia há uns anos a cantiga da situação na região portuguesa , e bem podemos agora dizer nós da "revolução branca" que ameaça o Brasil

Utilizando uma linguagem "revolucionária" e tão "ecumenista"  como despolitizada e despolitizadora (que um texto que a Joana Lopes oportunamente publicou no seu Brumas ilustra bem), o fascismo e a extrema-direita tentam organizar-se no Brasil e, a coberto de uma "revolução branca", cavalgar e inflectir as movimentações populares.  Eis alguns excertos — que descrevem a atmosfera de ameaça fascista em São Paulo — do artigo abundante e sugestivamente documentado sobre o que se passa na dita cidade e em vários outros teatros, que, sob o título 20 de junho: a Revolta dos Coxinhas o Passa Palavra publica como alerta. Porque a situação "necessita urgentemente de uma resposta de toda a esquerda anticapitalista. Hoje. Porque devia ter sido ontem, e amanhã será tarde".

(…) nos últimos dias, mas sobretudo desde quinta-feira, dia 20 de junho, assistimos a um movimento inédito, pelo menos inédito com esta amplitude. As manifestações que a esquerda organizou num grande número de cidades pela redução da tarifa dos transportes públicos começaram a ser sequestradas por forças sociais conservadoras e nacionalistas, e dentro deste movimento começou a desenvolver-se uma contra-revolução. Chamamos-lhe a Revolta dos Coxinhas (veja aqui). Pertencendo àquela gente a quem os jornalistas gostam de chamar classe média, os coxinhas passaram agora para primeiro plano político, como agentes de um fascismo potencial.

(…)


O que deveria ser um ato de comemoração da revogação do aumento do ônibus, dos trens e do metrô tornou-se um massacre da esquerda e dos “vermelhos”. Uma massa amorfa pairava pela Av. Paulista vestindo bandeiras do Brasil, com as caras pintadas, não sabiam para aonde ir, o que fazer e nem o que se indignar. As palavras de ordem puxadas como “o povo acordou” e “o gigante acordou” eram cantadas juntamente com o hino nacional. Como disse um companheiro, a caixa de comentários da Folha de S. Paulo saiu para a rua.

Já na concentração na Praça do Ciclista alguns militantes petistas tentavam levantar suas bandeiras, mas foram achincalhados por gritos de “sem partido!, sem partido!”. Alguns blocos de esquerda se organizavam para fazer uma manifestação pelo lado da avenida (sentido praça Osvaldo Cruz) com bateria, maracatu e músicas. Ao longo do trajeto houve muito tensionamento. Havia skinheads e agentes provocadores da direita querendo se infiltrar. Não aceitavam que “comunistas” caminhassem. Éramos “assassinos”, “petistas corruptos”.

O prédio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) passou a exibir num jogo de luzes a bandeira nacional. De “ei, FIESP, vai tomar no cu”, os gritos passaram a ser transformados no hino nacional.

Na esquina seguinte da av. Paulista, entre a alameda Campinas e em frente do prédio da Gazeta, um ataque aos “vermelhos”. Um grupo de agentes provocadores insuflaram os coxinhas a atacar o bloco. Conseguiram pegar uma bandeira e queimar. Aos gritos de “oportunistas” para os partidos, os agentes provocadores continuaram a atacar e foram bem vistos pela massa amorfa. A polícia havia se retirado completamente do local.

No meio dos blocos lançaram dois fogos de artifício contra os “vermelhos”. Pânico, uma parte dos militantes correm e se isolam embaixo de uma marquise do prédio, acuados. Uma comissão de segurança dos partidos entra então em ação e revida o ataque. Um skinhead ficou ferido e foi levado de viatura policial para o hospital. No carro disse que havia sido agredido “por um petista”. Os ataques cessaram quando os militantes recolheram as bandeiras.

Para se ter uma melhor dimensão do que aconteceu. Os blocos de hoje caminhavam dentro da massa amorfa em cólera. Os blocos percorriam organizadamente pelas ruas (ou tentavam), mas passavam ao lado de pessoas da classe média que portavam cartazes, bandeira do Brasil e entoavam palavras de ordem contra o governo (Dilma e o PT) e o hino nacional. Pessoas que não sabiam o que fazer, pois provavelmente nunca foram numa manifestação.

Na frente do ato havia um bloco autônomo aonde se carregava uma faixa contra as catracas e pela tarifa zero. Foi necessário uma linha de segurança lateral e frontal para conseguir proteger o bloco e impedir uma invasão. Em vários momentos a massa amorfa tentou fagocitar este bloco e também houve tentativa de puxar palavras de ordem nacionalistas.

O bloco terminou com um jogral na frente da praça Osvaldo Cruz. Enquanto isso a massa amorfa conclamava para ir para a Av. 23 de maio. Fazer o que exatamente ninguém sabia. Aos poucos, a massa foi se dissipando e as pessoas abaixavam os cartazes e voltavam pelo metrô para sua casa.
As nossas palavras de ordem foram absorvidas e ressignificadas pela direita em fúria. “Vem pra luta” significa agora ir enfrentar o PT, “quem não pula quer tarifa” transformou-se em “quem não pula é petista” e “vem pra rua, vem (contra a tarifa)” transformou-se em “vem pra rua, vem (contra o governo)”. O ódio contra a Globo e as emissoras de televisão é que elas são “esquerdistas”, pois “fazem o jogo do governo”.

A maioria ali não sabia o que havia presenciado ou o que se constituía ali, mas já não se tratava de uma comemoração, mas sim de uma classe média em cólera: os coxinhas contra o governo petista e a esquerda. Era uma manifestação dos patrões e da diretoria, mas não dos trabalhadores. Se foi esse o gigante que acordou, é então necessário colocá-lo para dormir. Dessas bases sociais e dos “indignados” sabemos que ergue-se um movimento fascista. Não podemos esperar que surja um Duce ou um novo Führer.

Por trás dessa massa amorfa há “movimentos” articulando um ataque sistemático contra o governo de olho nas eleições de 2014. A “insurreição” e “revolução” que esses movimentos conclamam não é por mudanças radicais contra o capitalismo, mas apenas para mudar a forma que deve gerir o capitalismo.

(…)

Em São Paulo, na quinta-feira, dia 20 de junho, foi o horror. Mesmo toda a esquerda tendo se reunido, planejado antecipadamente e tentado se organizar, o que se viu foi o achincalhamento público: bandeiras rasgadas, agressões, saudações fascistas e, claro, agressão física. Tomamos pedradas, cusparadas e por aí vai. O cenário que hoje se viu aqui foi o de uma nação em cólera, precisamente a situação que o fascista francês Maurice Bardèche considerava ideal para o desenvolvimento do fascismo. Os motivos de preocupação são muitos.

(…)

O “gigante” que acordou é o movimento fascista. Só falta um líder, alguém orgânico que saia dali. Há um evento no Facebook clamando uma “greve geral” que é convocado pelos empresários anti-Dilma.

(…)

(Ler na íntegra)

20/06/13

O Estado em decomposição


"Turks are teaching the world that liberty and democracy is not something the state can give – it is something the state takes away – but the only way to gain those rights, liberties, and achieve democracy is to use those very rights you are denied, and thereby, expropriate your freedom from the state. Turks are denied rights to freedom of expression, speech, and assembly, and they express their dissatisfaction with those policies by assembling and speaking, and even though they are met with massive state repression… they continue."

Os recentes acontecimentos na Turquia e no Brasil, quando considerados em conjunto com os eventos constituintes da denominada Primavera Árabe, os movimentos Indignados na Espanha e Occupy nos EUA, bem como as grandes manifestações ocorridas em Portugal (12 de Março de 2010, 15 de Setembro de 2012), e muitas outras um pouco por todo o planeta, possuem como único denominador comum o desprezo para com o Estado. Apesar deste desprezo ter como principais destinatários aqueles que controlam o Estado, espalha-se cada vez mais a descrença relativamente à própria capacidade dos actuais Estados se re-inventarem como estruturas capazes de responderem às aspirações daqueles que estão sob o seu jugo. Esta crise do Estado não é recente, tendo vindo a desenrolar-se, a ritmos diferentes em pontos distintos do globo, desde há cerca de meio século.

19/06/13

Do porquê da austeridade e da rentabilidade da crise

Do Público.es (19.06.2013):

En España hay 144.600 personas con un patrimonio superior al millón de dólares (740.000 euros) y 12 millones en todo el mundo. La riqueza de los grandes patrimonios crecerá un 6,5% anual en los próximos tres años.


En España hay 144.600 millonarios. Son ciudadanos a los que la crisis no afecta; forman parte de un selecto club que lejos de menguar sigue creciendo: en 2012 el número de personas con unos activos financieros de al menos un millón de dólares (740.000 euros), excluyendo la primera vivienda y los consumibles, creció un 5,4%, según el informe anual de la Riqueza en el Mundo de 2013 elaborado por RBC Wealth Management y Capgemini.

Según ese cálculo, en 2012, uno de los años más duros de la crisis, en España aparecieron 7.408 millonarios más. Un dato que confirma que la desigualdad en España no hace más que aumentar con la crisis.

A nivel global, la riqueza de los personas con grandes patrimonios aumentó un 10% en 2012, hasta alcanzar la cifra récord de 46,2 billones de dólares (34,5 billones de euros), después de la caída del 1,7% del año anterior.

De acuerdo con la decimoséptima edición del informe, un millón de personas se unieron en 2012 a la población mundial de individuos con grandes patrimonios, hasta alcanzar los 12 millones de ricos en todo el planeta, lo que supone un aumento del 9,2% respecto al año anterior.

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17/06/13

Supremo Tribunal grego manda reabrir ERT

Court rules: ERT must open again!!! – Live Blogging from Athens, Jun 17/2013, no Keep Talking Greece.

Imagino que o tribunal em questão seja uma coisa parecida com o nosso Supremo Tribunal Administrativo.

[E com isto talvez o PASOK e a Esquerda Democrática tenham arranjado uma desculpa para não abandonarem o governo...]

As manifestações anti-propinas



Quando tinha 18 anos ia a muitas manifestações. Pessoas próximas de mim chegaram mesmo a rotular-me de «profissional das manifestações». De facto, não tenho especial orgulho em ter participado nalgumas delas. As manifestações contra as touradas, independentemente de continuar a ser contra elas, eram uma patetice pegada: a justa preocupação com a saúde e bem-estar do touro fazia-se acompanhar por um sentimento elitista e nacionalista especialmente cretino. As manifestações contra as propinas, contudo, não foram nada patetas. Durante os largos anos em que frequentei a universidade foram muitas as vezes em que discuti a questão com familiares e colegas. Eles defendiam que o valor de 70 contos (o equivalente a 350 euros) não era nada. Eu respondia que o problema não era tanto a quantia mas mais o princípio. Noutras palavras, os 70 contos de hoje poderiam ser os 1000 euros de amanhã, transformando assim a universidade numa espécie de enclave de classe. Eles retribuíam com o argumento da universidade ser frequentada por uma classe média que gastava o seu dinheiro em festas e bebedeiras. E eu retribuía com o argumento da reprodução social, sendo conveniente não incentivar o processo ainda mais . Hoje, o Público noticia que “mais de 40% dos estudantes que vão fazer as provas nacionais do secundário a partir da próxima semana não vão prosseguir os estudos para o ensino superior, ou seja, uma quebra de mais de 9000 estudantes com intenção de fazer uma licenciatura na altura da inscrição nos exames. É uma situação sem precedentes, que os especialistas relacionam com a crise e as dificuldades das famílias em manter os filhos nas universidades e institutos politécnicos”. A todas as pessoas com quem discuti esta questão: eu estava certo, estúpidos!  

Derrota histórica

O (des)governo sofreu hoje uma derrota histórica às mãos dos professores da Escola Pública. Depois de ter convocado todos os professores, quando bastavam apenas alguns por cento destes para vigiar os exames, o facto de quase um terço dos alunos não ter conseguido realizar os exames representa uma enorme derrota para o objectivo de "quebrar a espinha aos sindicatos". Efectivamente, muito mais de 90% dos professores da Escola Pública terão de ter feito greve para que um tão elevado número de alunos não tenha conseguido fazer exame. Tal representa uma unidade na acção que é inultrapassável. Os professores demonstraram a todos os trabalhadores que o sucesso da greve é fazê-la "quando mais dói ao patrão", de modo a maximizar a perda de autoridade de quem acha que tudo pode. Contra um (des)governo apostado em emular os governos de Thatcher, ignorando que os tempos são radicalmente diferentes, a frente faz-se de unidade e confronto sem recuo. As várias manifestações de alunos irados com a situação demonstraram que estes culpam antes de mais o (des)governo pela situação criada, e a violência que irrompeu em diferentes momentos mostra que o (des)governo está em risco de atiçar um fogo que o poderá engolir.

Noticias da ERT grega

http://www.ertopen.com (versões em inglês, francês, alemão e castelhano).

Nalguns browsers há-de aparecer o aviso "site não seguro" - terá sido o governo grego que mandou alguma informação para a Microsoft dizendo que era algum site de pishing?

O dia será longo

Os últimos dias no parque Gezi, no centro de Istambul, foram cheios de alegria. O parque que se tornou a sede pública de contestação ao governo conservador de Tayyip era um ser vivo e em movimento.
Não havia um momento em que algo não acontecesse. Ou eram os Ritmos da Resistência (grupo internacional que também existe em Lisboa e no Porto) que tocavam durante horas, ou recitais nocturnos de piano, ou a primeira manifestação de surdos-mudos que apoiam este movimento, ou, simplesmente, sempre alguém a tocar, a cantar, a dançar em algum canto do Gezi.
Era um espaço cultural impregnado de política. Há dois dias o governo disse que o protesto tinha os dias contados e recomendou às famílias que levassem os seus filhos para casa. Em resposta, diariamente mais de uma centena de mulheres passou a dar as mãos, a criar uma corrente humana, passeando pelo parque a gritar "Nós, mães, estamos convosco, e orgulhosas de vocês".

16/06/13

O apelo de um concidadão português dos "terroristas" turcos

"(…) sei que se a mensagem não passar aí para fora estamos perdidos", escreve Pedro Feijó, da Turquia, apresentando o seu testemunho de concidadão dos turcos "de a pé"e que a pé firme se batem contra o regime obscurantista e neoclerical-liberal de Erdogan. O apelo internacionalista à "intervenção estrangeira" da cidadania democrática europeia é suficientemente claro — e suficientemente contrário às mistificações dos que confundem, e/ou querem fazer-nos confundir, a "independência nacional" e a "soberania" com a liberdade e a igualdade de direitos dos cidadãos, a sua participação governante. Para que a mensagem passe, rompendo as fronteiras dos Estados — e para que os cidadãos comuns que são a imensa maioria dos turcos, dos portugueses, dos alemães e outros europeus — quebrem as divisões nacionais e não se resignem a estar perdidos, aqui fica o apelo que Pedro Feijó publicou no Facebook.

São seis da manhã cá e acabo de chegar a casa. Foi uma das noites mais inacreditáveis da minha vida e tenho um favor a pedir-vos: por favor divulguem tudo o que puderem sobre a resistência na Turquia. Hoje fui expulso de um parque com uma carga policial. Hoje fui empurrado para um hotel com dezenas de feridos. Hoje fui fechado em salas com gás lacrimogéneo por todo o lado, sem conseguir abrir os olhos de tanto arder, sem conseguir respirar. Hoje levei com um canhão de água com químicos só por estar em frente a um hotel sem estar a ameaçar o quer que seja. Hoje estive nas ruas com o povo de Istambul. Hoje construí barricadas com eles, hoje atirei de volta as cápsulas de gás para cima da polícia, hoje fugi lado a lado pelas ruelas com medo da Polis. Hoje passei por Gezi durante a noite e já bulldozers a destruir tudo: o nosso parque, as nossas tendas, as nossas coisas. Hoje vi pessoas quase a asfixiarem, vi feridas abertas nos corpos. Hoje senti um tiro raspar-me as calças. Hoje fui tirado à bruta de dentro de um táxi pela polícia e revistado de cima a baixo, tudo o que estava dentro da mochila, e ofendido por ter um panfleto de Gezi como separador de um dos livros. Hoje volto a casa com uma raiva deste grupo de pessoas, deste grupo de caras, deste grupo de gravatas, destes Tayyips, e desta gente que veste o uniforme enquanto despe a consciência. Hoje chego a casa estoirado, a sentir que não durmo há dias, mas com a energia para correr todas as ruas desta cidade. Hoje chego a casa com mais força para lutar. Principalmente porque sei que não estou sozinho. Mas também sei que se a mensagem não passar aí para fora estamos perdidos. Estou num país onde um homem tem o direito de mandar espancar brutalmente milhares de cidadãs só porque ocuparam um parque. Sei que não podem vir para cá, mas por favor levem-nos para aí.

Pedro Feijó

14/06/13

O caso Inês Gonçalves

No Blasfémias, Vitor Cunha levanta algumas suspeitas sobre o perfil do Facebook de uma Inês Gonçalves, autora de este texto.

Eu não faço ideia se a Inês Gonçalves existe ou não (bem, à falta de uma, eu conheço duas Inês Gonçalves, mas nenhuma é esta).

No entanto, algumas das coisas que Vitor Cunha escreve não me parecem correctas (levando-me a pensar que ele deveria dar uma olhada nos ficheiros de "ajuda" do Facebook para perceber melhor as especificações técnicas).
Inês Gonçalves, estudante do secundário, 18 anos, lançou-se no Facebook em Janeiro de 2013 (como qualquer adolescente do 12º ano, descobriu o Facebook em Janeiro de 2013).
É ir ao perfil dela, clicar em "Mostrar 2009", que aparece lá "Aderiu ao Facebook  August 29, 2009 at 11:27pm".
 Não tem fotos dela própria,
E esta, ou esta? Creio que é efectivamente possivel adicionar posts com datas antigas no Facebook, mas atendendo a que estes posts têm comentários (e com data do comentário), acho pouco provável que tenham sido metidos agora à pressa.
 Inês Gonçalves não gosta de música, TV, bikinis, motas ou verniz garrido para as unhas. Não gosta de rapazes, malta da televisão, actores de cinema ou praias. Gosta sim dos grupos “Arrenda Lisboa Low Cost“, “Jovens do Secundário do BE de Lisboa“, “Indignados do Secundário – Movimento Estudantil“, “Democracia Local“, “José Mário Branco“, “Contra a privatização das Águas de Portugal“, “Não entro na PT Bluestation“, “Plataforma cidadã de resistência à destruição do SNS” e “Grupo de cidadãos contra a privatização da água – Leiria“.
Pronto, é possivel que a rapariga seja uma obcecada por política; mas há outras possíveis explicações - não há grande razão para alguém ir de propósito ao site do seu grupo musical, programa de TV, verniz ou filme favorito fazer um "like" (muitas vezes, até nem há nenhuma razão para ir a um site dessas coisas; vejo motivos para ir ao site do grupo musical - caso disponibilizem músicas ou telediscos ou datas de digressões - ou do programa de TV - para ver resumos de episódios perdidos, ou ler especulação dos fãs sobres os episódios seguintes - mas de outras coisas não); já das causas há razão - divulgá-las.

Nos comentários ao post de Vitor Cunha, foi levantada a questão das opções de privacidade, mas suspeito que se trata de outra coisa - na página do perfil do Facebook as coisas mais antigas aparecem sob a forma de botões dizendo "Mostrar [ano yyyy]", o que realmente pode criar a ilusão que o perfil só começou a funcionar em janeiro de 2013 (atenção que eu uso a extensão Social Reviver, que altera a forma como se visualiza o Facebbok; é possivel que algumas de coisas que escrevo não se apliquem a quem não use essa extensão).
Se eu fosse um cínico diria que a Inês Gonçalves parece corresponder à descrição de um tipo de meia-idade com bigode.
E agora, claro, temos o argumento mais fraco de tudo o que Vitor Cunha escreve - alguém de meia-idade usa bigode, nos dias de hoje??? Se ele tivesse escrito "um jovem adulto com um mestrado em Antropologia Cultural armado em hipster" ou "um sexagenário de bigode que trata toda a gente por «pá»" ainda vá lá. Mas, "meia-idade"???? A geração que em 1985/86 inundou os liceus de autocolantes a dizer "Prá frente, Portugal" e que muitos se estrearam no voto em 87 ou em 91, dando maiorias absolutas a Cavaco Silva??? E que a nível internacional criou a palavra "yuppie" e serviu de inspiração a personagens como este?? Na verdade, eu tenho uma teoria - não faço ideia de qual a idade de Vitor Cunha, mas quase que apostava que deve, ou ser mais ou menos da minha, ou então um pouco mais novo (com um "pouco mais novo" quero dizer algo entre os 25 e os 38 anos); como toda a gente a partir de certa idade, recusa-se a admitir que está a ficar velho, e por isso continua a chamar "meia-idade" às pessoas que eram de meia-idade nos seus tempos de jovem, ou seja, a "geração do 25 de Abril", com os seus bigodes, os seus "pá, isto; pá, aquilo" e as suas simpatias esquerdistas.

Adenda: noto agora que as fotografias da rapariga estão marcadas como "Conteúdo partilhado com: Amigos de Amigos"; como temos 6 amigos comuns, deve ser por isso que eu consigo ver as fotografias e aparentemente o Vitor Cunha não

13/06/13

Blogue dos trabalhadores da ERT

http://ertmme.blogspot.com, com posts em grego, francês e inglês.

Sobre a greve dos professores


Pacheco Pereira escreve (Abrupto, 13.06.2013): "O que está em causa para o governo na greve dos professores   é mostrar ao conjunto dos funcionários públicos, e por extensão a todos os portugueses que ainda têm trabalho, que não vale a pena resistir às medidas de corte de salários, aumentos de horários e despedimentos colectivos sem direitos nem justificações, a aplicar ao sector. É um conflito de poder, que nada tem a ver com a preocupação pelos alunos ou as suas família".

Mas se é assim, então, a questão da definição do estatuto do trabalho, do seu papel na determinação da repartição dos rendimentos, da sua regulação e governo, passa a relevar da decisão política, que, para ser democrática, exige a participação em pé de igualdade do conjunto dos interessados. Ou seja, exige a democratização de todos os níveis daquilo a que chamamos "economia", ao mesmo tempo que revela a natureza política da organização de todo o conjunto de actividades que a constituem. E são estas democratização e (re)politização explícitas da economia — afinal desde sempre política — que teremos de assumir se quisermos regular ou governar o trabalho, e o conjunto da esfera económica que o organiza, através da sua inclusão no âmbito do exercício dos direitos e responsabilidades da cidadania comum.

Duas cartas de Istambul



            Jacob, um amigo norte-americano, que esteve ligado a Occupy Wall Street, envia-me duas cartas de Istambul. Na impossibilidade de as traduzir para Português aqui ficam tal e qual foram escritas.
O testemunho, que data dos primeiros dias de Junho, poderá hoje parecer ultrapassado pelo desenrolar da situação.
O que decerto não estará ultrapassado é o comentário com que encerra a primeira carta :
« [Os manifestantes] sentados, cantando, falando, discutindo, dançando, não pela liberdade ou pela democracia, mas por algo mais, algo que será como uma apropriação do presente». Algo que contém,  justamente, a interrogação destes novos movimentos, transitórios, efémeros, dificeis de apreender, que vêm aparecendo em  todas as sociedades onde as pessoas, espontaneamente, se pôem em movimento para se oporem radicalmente ao processo de destruição das suas condições de vida. E onde as antigas formas de pensamento e acção política demonstram, dia após dia, serem totalmente inaptas e ineficazes.

First Day, June 8
The first barricade seems impenetrable. Hundreds of bricks piled high, torn fences, and flipped over cars mix into a single wide shield of corrugated steel with long metal spikes sticking out front, as if ready to defend against any horse charge. But then you walk another 10 meters and see the next one, twice as big, more bricks, more fences, graffiti all over it. And then walk a bit more and see another, and another, and another, and not only the main street but all the side streets and every surrounding street is blocked.  All the sidewalks are sand, having their bricks taken out and put to new uses. Constant streams of people are hanging around each barricade, posing for  photos; there's vendors selling spray paint, gas masks and goggles in between each barricade. Iphones, ipads, and all i-devices are capturing the moments of joy and pride for all people. All ages join in jumping on the destroyed cars, playing inside the smashed out tractors, buses, media vans. Anonymous style guy fawkes masks are ubiquitous, as are vendors selling kofte, corn, tea, and of course, flags, thousands of red flags with the face of the  founder of the republic, mustafa kemal ataturk, but also trotskyist, anarchist, feminist,  and other flags. Anarchists mix with nationalists, while football hooligans and environmentalists, anti-capitalist muslims and LGBT Kurds all share every meter of soil within Gezi Park, making it shoulder-to-shoulder tight as you try to squeeze through from one side to the next. Tents on top of tents, a whole village lives within the park now.  Construction materials  from the stalled development litter the surrounding streets. Every piece of constant capital looks like rubble after a battle.  The Ataturk cultural center, a five-story building on one side of Taksim square, is draped with massive banners saying "Don't Obey", "Tayyip Resign",  and huge flags of Ataturk, mixed with anarchist graffiti and football signs.

The whole thing seems medieval, with helmets, javelin poles, and a view of the Bosphprus, Hagia Sophia, and Blue Mosque in the horizon; the square itself is more of a carnival than anything else. Hundreds of thousands of people packed together, dancing, singing, chanting, hawking, just celebrating each other's presence in a cop-free central zone for the first time in memory. Everyone is arguing, debating, laughing, telling stories of tear gas and trees. The police haven't attacked for a few days, there's just too many people, too many barricades. Every 20 minutes another march comes through with another chant, sometimes kemalist, sometimes communist, sometimes a song, sometimes a prayer. A mix of youth, students, activists, families, and travelers set up picnics, tables, and booths selling whatever ideology or product they have. If it wasn't for the mounds of brick and car barricades surrounding the place, one could easily forget the force and violence that started it all.

Most people we talk to say they didn't like the park so much beforehand, but the police response to the original environmental demo was so harsh, that they had to come out. Some are angry against the neoliberal development, some against the new islamist laws banning alcohol, some against the police, some are just anti-government. Almost everyone is surprised that it grew so large, so fast. They're worried how it will end, but for now, the feeling is joy, almost euphoric as the whirling dervishes and horns and drums bang nonstop. The side streets  outside the park and blocks away are full of people too, drinking in public late at night and sitting on the street, where it was banned beforehand to do either. Cops have abandoned the entire region around Taksim, massing instead in Besiktas, by the presidential palace and football stadium. For now, every day is a rally and every night is a party.

The majority of violence, it seems, has moved to the other 60+ cities in Turkey where demonstrations arose, especially in Ankara. The local demands of the Gezi Park demonstration no longer have any relevance for the majority of people taking part in this mass uprising, but everyone is still somehow unified by their opposition to the police and enraged at the overreaction of the government. What binds the hundreds of thousands of people in Taksim square together can't be explained by any political ideology or secular vs. religious divide or green movement. Rather, it seems that the sheer joy of taking over the center of the city has kept the movement alive, liberating it from both police control and the market-imperative of growth, determining what to do with every inch, ignoring all the construction machines, police trucks and media vans, sitting together indefinitely singing, talking, debating, dancing not for freedom or democracy, but for something else, something like, ownership of the present.  

Next day, June 9
"Everyday I'm Çapuling!"  reads the banners all over Gezi Parkl, having become the unofficial slogan of the uprising. Çapulcu  is what Prime Minister Erdogan called the demonstrators, meaning 'looters', hooligans, slackers. Accepting the challenge, the people have embraced the word, adding it to signs, shirts, graffiti, barricades, masks, buses. Everyone tells us how funny the slogans are; one barricade is spray painted with "Look how beautiful this barricade is." Erdogan recently suggested that all women should have at least three children to support the great Turkish nation. So one of the chants blasted during the rally responded with: Do you want three children like us? The humor catches everyone off guard, especially the government, who have amped up the repression in Ankara, Izmir and other poor parts of Istanbul. But the mocking, jokes, and satire doesn't stop, creating a complex language of resistance mixed with self-reflection that elevates the critiques to a whole new level of vitriol.  

Saturday was the day of the football hooligans, where one hundred thousand of Istanbul's ultras united to take part in the mega-rally at Taksim, screaming anti-government chants at the top of their lungs mixed with each team's call-and-response. "Drop your sticks, throw away the gas, come and get us!" everyone shouted at one point. "Blue" "Yellow" Blue" "Yellow"  could be heard for miles as crowds bounced up and down waving team flags and pointing firecrackers in the sky. Every inch was packed and noone could move anywhere but together. The bitter enemies of Fenerbahce and Beşiktaş did the impossible and joined together to shoot off fireworks and drape banners over the towering AKM building surrounding the square, as another hundred thousand people looked on and celebrated their previously unthinkable peaceful co-existence. Not only the uniting of the football fans but the sheer heterogeneity of political groups sitting together has been the most shocking of all. Weeks ago it was unthinkable for nationalists and kurdish groups to share space in a rally, let alone the scores of leftist sects that hate each other, but now its already normal. Not everyone gets along, but everyone has a corner, and everyone has the freedom to give and take as they please. 

What's stunning about the sprawling occupation of Gezi park and the mass demonstrations in Taskim square is the utter absence of large assemblies, consensus trainings, and open meetings, all forms of collective decision making which dominated other popular movements in the last years. Here, the spontaneous organization is complete, without anyone really having a clue of what's going on overall, making it impossible to control, diffuse, or democratize with formal procedures and skilled experts. Hundreds of micro-groups and thousands of individuals volunteer to bring food, do medical work, sweep the grounds, patrol the barricades, distribute water, but it is in no way centralized or coordinated. Supposedly there are negotiations going on with some groups and the government, but to call those groups "representative" of the movement is laughable, and they know it, claiming not to speak for anyone at all. The government want the barricades gone, the square cleared, and the park tamed; the original organizers of the park occupation want no park destruction, no new mega-development, and a retreat of the government's . But what do the tens of thousands across the country want? What do the hundreds of thousands, maybe millions in Istanbul who stream in and out everyday want? More than a reform, less than a revolution, something in between we don't know how to name yet.

Sunday all the parties came out with their flags and speeches, but it was mostly a day for families, music, kids, and celebration. Down the main shopping streets rode bike gangs who rode in from all over Turkey to take part. Everywhere the same melodies could be heard: Tayyip Istifa! Tayyip Resign! Schoolchildren sit in smashed out buses posing for photos with their moms as trade-unionists form circles with environmentalists to dance to traditional music. The barricades are silent now, safety is assured, and all is well in this city on the hill. The calm has descended like a fog, everything seems like it will last forever, and that's why everyone knows it won't.

This is not an analysis on the uprising, just an impression of my experience there so far.
For an further analysis, see the text in Counter punch. http://www.counterpunch.org/2013/06/05/istanbul-uprising/)






11/06/13

Emissão on-line da televisão grega

Creio que a emissão "hertiziana" já foi fechada, mas os trabalhadores que controlam a televisão estatal grega continuam a transmitir via internet, em http://www.zougla.gr/Controls/livecamera2/article/flash-camera-4.

Nota - parece que nalgumas localidades continua a haver acesso às emissões da TV.

Adenda 1:32 - a polícia ameaça invadir a estação

Olhos postos na luta


10/06/13

Das trevas características da "servidão voluntária"

É um sinal dos tempos sombrios em que vivemos, e também do adensar das trevas características da "servidão voluntária" enquanto condição mental solidária da absolutização da economia política dominante, que alguém possa escrever, num blogue que se reclama da "esquerda da esquerda"e ao mesmo tempo que se pretende anti-autoritário e hostil ao fanatismo dos fundamentalistas islâmicos, que uma das consequências negativas maiores de uma eventual derrota de El Assad, na Síria — além da fragilização do Irão e do seu islamismo, pelos vistos nem fascista nem liberticida — daria lugar a um quadro em que "[o] papel da Rússia ou da China na região seria marginal, a possibilidade dessas potências poderem contrabalançar a hegemonia dos EUA no plano global seria minimizado", sem se interrogar por um momento sobre que progresso civilizaciona ou democrático será "contrabalançar a hegemonia dos EUA" e da UE, ao preço de, reforçando o regime para-fascista de Putin e a influência internacional da "sociedade harmoniosa", reforçar a precarização generalizada das condições de vida e das liberdades fundamentais dentro e fora das regiões de origem da hegemonia do Primeiro Mundo, como dentro e fora da sua esfera de influência mais imediata.

A justiça para lá da lei: ameaça de despejos em Azeitão

Imaginem que um dia acordam e descobrem que a casa onde vocês moram há já umas décadas não é vossa. Imaginem que a pagaram durante todos estes anos e mesmo assim ela não é vossa. E, por fim, imaginem que vos dizem que a vão ter que pagar de novo - espante-se, à banca. A verdade é que não é preciso imaginar muito. Está a acontecer em Azeitão.  

07/06/13

"Ai que medo tenho da próxima greve geral!"

Passos apela aos professores para que canalizem protesto para a greve geral.

E acho que fica tudo dito quanto à suposta eficácia da clássica greve geral dum dia na confrontação com o Poder instituído. Experimente-se uma semana e veremos se a atitude não será outra. Ou então greves sectoriais, sequenciais e coordenadas, durante várias semanas. Este (des)governo desintegrar-se-ia em pouco tempo.

Ocupantes e invasores

Leio no 5 dias que existe quem veja sinais emancipatórios no regime de Bashar Al-Assad. Traduzindo a propaganda contida no texto «A Batalha de Al Qusayr, quando a Resistência derrotou as trevas (II)», a defesa do actual regime ditatorial sírio justificar-se-ia na medida em que a «sobrevivência do regime significaria uma importante derrota para os EUA, França e Reino Unido». Do alto de uma perspectiva sobre o «plano geopolítico global», o texto em causa dedica-se unicamente a considerações geopolíticas e geoestratégicas, como se o facto de um regime ser autoritário e sanguinário poder ser defendido politicamente só porque se opõe ao imperialismo dos EUA...

Neste aspecto, a defesa que certa esquerda faz de Bashar Al-Assad é a típica resposta pavloviana no que diz respeito a qualquer regime que se declare inimigo dos EUA. Assim sendo, a esquerda que se auto-intitula revolucionária, em vez de estender a crítica das práticas imperialistas e militares dos EUA ao regime ditatorial sírio, acaba por tomar partido por um dos lados do conflito em nome da geoestratégia e em resposta à ameaça do integralismo islâmico que estaria aí à porta. O espantoso nisto tudo é que a mesma esquerda que atribui o epíteto do extremismo islâmico ao conjunto da oposição síria, é também a mesma esquerda que no caso do Mali se insurge contra a intervenção militar francesa tomando partido pelos radicais islâmicos que chegaram a instalar a lei da sharia em Timbuktu... Em que ficamos?

Naturalmente, quando a geoestratégia é elevada a principal orientação política e quando a rejeição dos EUA é o único critério definidor, a partir daqui todas as incongruências e todos os apoios a ditadores e a sanguinários se tornam possíveis.

Nesse sentido, gostaria de fazer notar que os argumentos que a esquerda nacionalista utiliza para defender o regime sírio são exactamente os mesmos que a extrema-direita utiliza para apoiar o mesmo regime... Em Fevereiro de 2012 Jean-Marie Le Pen mandou «calar os críticos britânicos de Al-Assad». O patriarca Le Pen chegou ainda a comparar os ataques militares da oposição síria aos raides aéreos da Força Aérea Real britânica a Dresden. Portanto, na cabeça destas almas nacionalistas, o recurso constante ao inimigo americano e britânico justificaria a defesa política de um regime ditatorial... No mesmo registo, Marine Le Pen dizia esperar que «Bashar Al-Assad não fosse substituído por fundamentalistas islâmicos».

Em suma, quando parte significativa da esquerda dita anticapitalista portuguesa partilha vários dos argumentos políticos da extrema-direita cabe perguntar se não haverá algo de errado. Claro que as boas almas revolucionárias vão responder sempre com a mesma ladainha do anti-imperialismo e não sei que mais. Entretanto, se na Síria a população continuará a ser massacrada pelos dois lados e continuará a ser mera carne para canhão, no Sul da Europa a esquerda nacionalista partilha, com a extrema-direita, do mesmo apoio irracional ao regime ditatorial de Bashar Al-Assad.


Cartaz da organização fascista italiana Casa Pound sobre uma iniciativa
em defesa do regime de Bashar Al-Assad
Da defesa da saída do euro à defesa de regimes torcionários, das teses do parasitismo da economia pela finança (judaica para uns, alemã e europeia para outros) até à centralidade das ponderações geopolíticas, não serão estes sinais suficientemente inquietantes?

Não se trata de identificar a esquerda nacionalista com a extrema-direita. Trata-se isso sim de interrogar o porquê da partilha de determinados posicionamentos entre correntes políticas distintas. Se é inquestionável a existência de divergências políticas e de clivagens ideológicas, também é inquestionável que a partilha de princípios políticos relevantes é sempre um passo rumo ao abismo. Curiosamente as divergências ideológicas e políticas entre esta esquerda e a extrema-direita repercute-se cada vez mais e quase exclusivamente no plano ideológico propriamente dito: concepções sobre a vida dos fetos e sobre o destino das células estaminais; concepções sobre a homossexualidade, sobre o papel da mulher, sobre o lugar dos imigrantes nas sociedades ocidentais, etc. Todavia, no plano da compreensão das dinâmicas estruturantes do capitalismo europeu (União Europeia, União Económica e Monetária, papel do sector financeiro, desenvolvimentismo, produtivismo industrial nacional, transnacionalização económica, visão do capitalismo como uma mera decorrência geoterritorial de «ocupantes» e «abutres que se alimentam das carcaças da economia e do desenvolvimento nacionais», etc.), o que se assiste é cada vez uma maior (e perigosa) partilha de princípios políticos.

Só quem concebe a política como o somatório de compartimentos ideológicos estanques pode continuar a achar ingenuamente que tudo isto não tem relevância. De facto, estas são questões políticas demasiadamente sérias para que se continue a ver tudo isto como se de algo inócuo se tratasse. Como escreveu alguém há precisamente dez anos atrás: «Nenhum fascismo se limitou a ser uma resposta da ordem à revolução. Todos os fascismos foram, antes de mais, uma revolta dentro da ordem, e por isso começaram por procurar na esquerda inspiração que permitisse renovar a direita, ao mesmo tempo que transportaram para a esquerda alguns dos temas característicos da direita» (João Bernardo, Labirintos do fascismo, p.204 - negritos meus).

Se na sua génese o fascismo se apropriou de temas da esquerda de modo a dar um respaldo popular e proletário ao seu nacionalismo, nos dias de hoje não há dúvidas de quem ocupou o território político e ideológico de quem. Enquanto a esquerda achar que pode continuar com o joguinho absurdo de privilegiar determinados invasores em detrimento de outros ocupantes, será ela quem estará efectivamente ocupada por algumas das armas ideológicas e políticas mais reaccionárias dos nossos dias.