16/06/13

O apelo de um concidadão português dos "terroristas" turcos

"(…) sei que se a mensagem não passar aí para fora estamos perdidos", escreve Pedro Feijó, da Turquia, apresentando o seu testemunho de concidadão dos turcos "de a pé"e que a pé firme se batem contra o regime obscurantista e neoclerical-liberal de Erdogan. O apelo internacionalista à "intervenção estrangeira" da cidadania democrática europeia é suficientemente claro — e suficientemente contrário às mistificações dos que confundem, e/ou querem fazer-nos confundir, a "independência nacional" e a "soberania" com a liberdade e a igualdade de direitos dos cidadãos, a sua participação governante. Para que a mensagem passe, rompendo as fronteiras dos Estados — e para que os cidadãos comuns que são a imensa maioria dos turcos, dos portugueses, dos alemães e outros europeus — quebrem as divisões nacionais e não se resignem a estar perdidos, aqui fica o apelo que Pedro Feijó publicou no Facebook.

São seis da manhã cá e acabo de chegar a casa. Foi uma das noites mais inacreditáveis da minha vida e tenho um favor a pedir-vos: por favor divulguem tudo o que puderem sobre a resistência na Turquia. Hoje fui expulso de um parque com uma carga policial. Hoje fui empurrado para um hotel com dezenas de feridos. Hoje fui fechado em salas com gás lacrimogéneo por todo o lado, sem conseguir abrir os olhos de tanto arder, sem conseguir respirar. Hoje levei com um canhão de água com químicos só por estar em frente a um hotel sem estar a ameaçar o quer que seja. Hoje estive nas ruas com o povo de Istambul. Hoje construí barricadas com eles, hoje atirei de volta as cápsulas de gás para cima da polícia, hoje fugi lado a lado pelas ruelas com medo da Polis. Hoje passei por Gezi durante a noite e já bulldozers a destruir tudo: o nosso parque, as nossas tendas, as nossas coisas. Hoje vi pessoas quase a asfixiarem, vi feridas abertas nos corpos. Hoje senti um tiro raspar-me as calças. Hoje fui tirado à bruta de dentro de um táxi pela polícia e revistado de cima a baixo, tudo o que estava dentro da mochila, e ofendido por ter um panfleto de Gezi como separador de um dos livros. Hoje volto a casa com uma raiva deste grupo de pessoas, deste grupo de caras, deste grupo de gravatas, destes Tayyips, e desta gente que veste o uniforme enquanto despe a consciência. Hoje chego a casa estoirado, a sentir que não durmo há dias, mas com a energia para correr todas as ruas desta cidade. Hoje chego a casa com mais força para lutar. Principalmente porque sei que não estou sozinho. Mas também sei que se a mensagem não passar aí para fora estamos perdidos. Estou num país onde um homem tem o direito de mandar espancar brutalmente milhares de cidadãs só porque ocuparam um parque. Sei que não podem vir para cá, mas por favor levem-nos para aí.

Pedro Feijó

3 comentários:

Anónimo disse...

E´ um verdadeiro e multifacetado " Maio-68 " turco, o que esta a surgir nas ruas e praças de Istanbul, em primeiro lugar, e a estender-se pelas cidades de provincia e a capital politica, Ankara... O politologo Pepe Escobar revelou que, para a demolição do Gezi-Park, houve jogadas de alta corrupção e favoritismo favorecendo o " maire " de Istanbul, procere do AKP (partido do PM) e proprietario de uma cadeia retalhista, que desejava potencializar o centro comercial a ser implantado nos terrenos do parque...O cunhado do PM Erdogan parece ter " teleguiado " todo o processo de reestruturação/destruição do parque, sinaliza ainda Escobar. Uma via dupla de corrupção e nepotismo, pois, que inspira o clamor nas ruas de protesto e indignação muito violenta. O silencio comprometido das altas instancias politicas dos USA e
da União Europeia pode, no entanto,favorecer os instintos repressivos do regime assente num ultra-liberalismo economico equivoco e a fraquejar conjugado com uma tonica religiosa muito conservadora de inspiração neo-sunnita. Niet

Anónimo disse...

« Estou num país onde um homem tem o direito de mandar espancar brutalmente milhares de cidadãs só porque ocuparam um parque.»

Existem homens desses em todos os países. Chamam-se chefes de Estado. E, debaixo desses homens existem outros, que espancam pessoas na rua por terem recebido ordens para isso ou, mais prosaicamente, por moto próprio. Chamam-se polícias.

Não venham clamar por «democracia», porque a democracia também é isso e um sistema sem homens que espancam e sem homens que mandam espancar não é a democracia, é outra coisa.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Anónimo das 21 e 53,
há aqui um mal-entendido. Na acepção clássica que dou ao termo, a democracia significa o exercício do governo pelos governados - significa auto-governo, autogestão, participação igualitária dos cidadãos nas deliberações e decisões por que se governam. Claro que, deste ponto de vista, os regimes que se proclamam democráticos, ao mesmo tempo que excluem do exercício do poder político (em sentido estriot, mas também na esfera da economia, etc.) a enorme maioria dos governados, são, quando muito, "oligarquias liberais", cuja dominação classista foi temperada por lutas e conquistas multisseculares de inspiração democrática.
Não sei se isto chega para nos pormos de acordo. Mas espero que chege, pelo menos, para tornar claro que aquilo que entendo por "democracia" é, na realidade, "outra coisa".

msp