20/06/13

O Estado em decomposição


"Turks are teaching the world that liberty and democracy is not something the state can give – it is something the state takes away – but the only way to gain those rights, liberties, and achieve democracy is to use those very rights you are denied, and thereby, expropriate your freedom from the state. Turks are denied rights to freedom of expression, speech, and assembly, and they express their dissatisfaction with those policies by assembling and speaking, and even though they are met with massive state repression… they continue."

Os recentes acontecimentos na Turquia e no Brasil, quando considerados em conjunto com os eventos constituintes da denominada Primavera Árabe, os movimentos Indignados na Espanha e Occupy nos EUA, bem como as grandes manifestações ocorridas em Portugal (12 de Março de 2010, 15 de Setembro de 2012), e muitas outras um pouco por todo o planeta, possuem como único denominador comum o desprezo para com o Estado. Apesar deste desprezo ter como principais destinatários aqueles que controlam o Estado, espalha-se cada vez mais a descrença relativamente à própria capacidade dos actuais Estados se re-inventarem como estruturas capazes de responderem às aspirações daqueles que estão sob o seu jugo. Esta crise do Estado não é recente, tendo vindo a desenrolar-se, a ritmos diferentes em pontos distintos do globo, desde há cerca de meio século.

O Estado existe para assegurar a ordem necessária à maximização da produção. A qual é depois distribuída de acordo com uma hierarquia social, e em troca do seu reconhecimento. Não será assim de espantar que sejam as camadas, ou classes, que habitam, ou pretendem habitar, o topo dessa hierarquia as maiores defensoras do Estado. A extensão das funções sociais do Estado, apesar das boas intenções de alguns e do impacto positivo que claramente possuem na vivência da multidão que habita o fundo da hierarquia social, no essencial separa aqueles que acham que a ordem, a paz social, necessária à produção requer mecanismos (quase-)universais de satisfação básica das necessidades humanas dos que, perante o que julgam ser a incapacidade insurreccional da multidão apostam no pau enquanto retiram a cenoura, para dela tomarem posse. Claramente, são estes últimos que têm conseguido impor a sua agenda, desde a altura (meados dos anos 70 do século passado) em que se convenceram da impossibilidade da insurreição, contra o Estado, em virtude de terem falhado (na deslegitimização social do Estado) as experiências insurreccionais que então ocorreram. Dito isto, convém salientar que apesar da existência dum esforço considerável de coordenação, controlo, previsão e planeamento por parte daqueles que habitam o topo da hierarquia social, a evolução social e cultural continua em grande medida fora do seu controlo. Aliás, em alguns aspectos, tal evolução foi inclusivé activamente promovida por parte da oligarquia global (vide a promoção de instrumentos de socialização online), que cega perante o possível lucro, ignorou o potencial desestabilizador das suas acções. Apesar da unidade do seu propósito, tal oligarquia ainda está longe de apresentar coerência na acção.

Um risco assumido, mas que talvez esteja a fugir ao controlo dos seus executores, o aprofundamento da agenda de açambarcamento dos resultados da produção tem feito mais pelo enfraquecimento da legitimidade social do Estado, em particular nestes últimos anos, do que toda as tentativas anteriores por parte daqueles que sempre viram na existência do Estado o maior obstáculo a uma reconfiguração radical das relações sócio-económicas. Esta (aparente) perda de controlo não resulta apenas da falta de instrumentos suficientemente desenvolvidos para lidar com as actuais mutações sociais e culturais, ou da simples soberba de quem se acha invulnerável tendo em conta os resultados obtidos nas últimas décadas. Parece-me que advém também de mutações no seio do topo da hierarquia social, em resultado do surgimento duma super-classe global. O interesse desta reside, antes de mais, em assegurar que existem feudos seguros para onde se possa mover em caso de necessidade, projectando a partir daí a sua capacidade para comandar a exploração da mão-de-obra e a extracção de recursos naturais onde menor for o custo. Ou seja, esta oligarquia global não vê interesse em gastar recursos em apoio de Estados que não lhes permitam obter um retorno significativo do investimento. É assim expectável que no futuro próximo cada vez mais Estados demonstrem dificuldade em extinguir experiências insurreccionais, não porque estas sejam mais capazes de colocar em causa a legitimidade social dum dado Estado, mas principalmente porque aqueles que efectivamente controlam as alavancas do Poder não irão considerar como essencial à sua sobrevivência a manutenção desse Estado face à insurreição que contra ele se levanta. A redundância das cadeias produtivas globalizadas também permite o desaparecimento de Estados periféricos, sem que isso afecte grandemente a capacidade de gerar rendimento e projectar Poder por parte do topo da hierarquia planetária.

Este mesmo processo de abandono territorial já há várias décadas, com uma evidente aceleração a partir de meados dos anos 70 do século passado, que decorre no seio dos próprios Estados. Sendo por demais evidente quando se constata a retracção por parte do Estado dos territórios, rurais e citadinos, de onde não é possível extrair um rendimento suficientemente interessante. Um exemplo emblemático são os guetos urbanos criados com o intuito de concentrar, para mais facilmente controlar (através da utilização dum mínimo de recursos), a mão-de-obra excedentária decorrente quer da automatização crescente dos processos produtivos quer da entrada em funcionamento de cadeias produtivas globais.

Um dos elementos novos na actual situação é a extensão do conceito de periferia a territórios antes considerados como essenciais à manutenção da hegemonia da oligarquia global, nomeadamente no seio do continente europeu. Ou seja, parece hoje claro que a oligarquia global não está disposta a pagar o preço que for necessário para assegurar a viabilidade dum cada vez maior número dos Estados actualmente existentes no continente europeu, perante sucessivas insurreições contra estes. Tal como já é corrente noutros continentes, ao colapso dum Estado periférico bastará responder com acções punitivas quando a insurreição ameaçar propagar-se a Estados com um papel mais central na teia de domínio global. Estamos assim a entrar numa época neo-colonial, que se diferencia de outras no passado pela (crescente) ausência de pólos antagónicos de Poder (colonial).

Como é possivel constatar através de exemplos em diferentes épocas, e em locais espalhados pelo globo, a implosão dum Estado, ou a sua retracção no interior do território que pretensamente controla, não resulta necessariamente em relações sociais equalitárias. Infelizmente, pelo contrário, o que é mais frequente é o aparecimento de estruturas hierárquicas territorialmente mais localizadas, fruto da rapidez com que conseguem (re-)establecer estruturas funcionais de gestão e planeamento do quotidiano duma comunidade. Nem sempre tem sido assim, como foi recentemente demonstrado pelo que teve lugar no Parque Gezi, em Istambul, ou nos locais de onde o Estado foi momentaneamente afastado durante as ocupações decorrentes dos movimentos Indignados e Occupy. Mas estas Zonas Autónomas Temporárias possuíam a especificidade própria da excepção. Portanto, face ao previsível recuo do Estado em diferentes pontos do globo, onde tal não for percepcionado como uma ameaça pela oligarquia global, mais importante do que planear a insurreição é (re)construir comunidades equalitárias, suficientemente autónomas para que sejam capazes de subsistir enquanto o Estado se decompõe, impedindo o surgimento de respostas hierárquicas a essa decomposição. A insurreição contra o Estado acontecerá. Repetidas vezes, sob inúmeros pretextos, enfraquecendo o Estado, mais propriamente a sua legitimidade social, que é de onde vem a sua força, até ao ponto em que colapsará, ou se tornará irrelevante. A inevitabilidade da insurreição contra o Estado resulta da crescente re-conexão social possibilitada pelas novas tecnologias de partilha de informação. Para quem as utiliza, a sensação de participação egualitária torna as imposições do Estado, seja sobre que assunto for, insuportáveis. O hábito da decisão comum, da partilha horizontal, torna inaceitável todo o processo que não seja percepcionado como participado, conjuntamente decidido, pelas partes afectadas. São as comunidades (re-)criadas e fortalecidas por essas tecnologias, frequentemente transversais em termos das categorias tradicionais, como classe, território, etnia, que alimentam as insurreições de hoje e darão início às de amanhã. Porque sim. Sem um objectivo comum definido, que não o pretexto inicial. Necessariamente limitadas no tempo, terão de qualquer modo um efeito profundamente erosivo na autoridade e legitimidade social do Estado, levando à sua decomposição, e por vezes mesmo ao desmoronamento abrupto. Mas essas comunidades, por si só, não serão capazes de impedir a reconstrução de estruturas hierárquicas. Só o desenvolvimento de comunidades equalitárias com autonomia suficiente para assegurar as necessidades humanas (mais básicas), portanto necessariamente territorialmente localizadas, poderá obstar a tal desfecho. Tais comunidades sempre existiram, havendo uma vasta experiência na sua construção e re-criação, mas apenas a um nível demasiado pequeno, quer em termos territoriais quer populacionais, para que o seu modelo possa ser utilizado universalmente. Em particular no contexto urbano, tendo em conta a típica elevada densidade populacional, a elevada interligação das relações sócio-económicas, e a dependência que a urbe tem em relação ao território rural envolvente para a satisfação da necessidade mais básica: alimentação. A expectável maior complexidade das estruturas de gestão e planeamento colectivo num contexto urbano colocará enorme pressão sobre o princípio equalitário que se pretende estar no cerne dessas comunidades. E, claro, outro grande desafio será como desenvolvê-las sob a sombra do Estado. Depois será demasiado tarde.

0 comentários: