28/07/19

As deportações de cidadãos norte-americanos pelos próprios EUA

Os EUA têm uma longa tradição de, quando decidem expulsar em massa imigrantes, acabarem por expulsar também (por engano?) muitos cidadãos norte-americanos (normalmente por terem azar com o apelido, cor e/ou sotaque).

Durante a Grande Depressão cerca de um milhão de descendentes de mexicanos foram deportados para reservar para os brancos os poucos empregos disponíveis na altura; entre 2003 e 2010, cerca de 20.000 cidadãos dos EUA foram detidos ou deportados como sendo "imigrantes ilegais". Com o atual reforço de poderes do ICE (o SEF norte-americano), que lhes dá poder para, em qualquer região dos EUA, deter e expulsarem do país, sem julgamento, qualquer imigrante ilegal que esteja no país há menos de 2 anos (o ponto chave aqui é o "sem julgamento", o que significa que um cidadão dos EUA ou um imigrante legal - ou, já agora, um imigrante ilegal que esteja lá há mais de dois anos - podem ser deportados sumariamente se não conseguirem provar o seu estatuto perante os agentes do ICE), é provável que isso continue a acontecer e ainda com mais frequência.

A esse respeito, ver o caso de Francisco Galicia, de 18 anos, nascido no Texas mas de origem mexicana, e que foi preso pelo ICE durante 23 dias (durante os quais perdeu 12 quilos) - não foi deportado mas o própria diz que as condição na prisão (provavelmente o termo não é "prisão", mas pronto) eram tão más que esteve para pedir para ser mandado para o México só para sair de lá.

Acercas d'"As Gêmeas Marotas"

Dick Bruna (1927-2017), um post de Uma Bedeteca Anónima que, a propósito do falecimento do autor de livros infantis Dick Bruna (criador da coelhinha Miffy), fala exatamente desse livro, escrito por “Brick Duna”, a parodiar os livros de Bruno (e que nos últimos dias gerou grande agitação entre os Social Injustice Soldiers).

Já agora, a página do Tv Tropes What Do You Mean, It's Not for Kids?.

Finalmente, a título de bónus, para quem esteja mais familiarizados com os livros Disney, temos Disney-Themed Tijuana Bibles, no Duck Comics Revue (não é preciso avisar que esse post não é para crianças, pois não? E mesmo para alguns adultos pode arruinar recordações).

26/07/19

A via original para a maioria absoluta veste vermelho.

O PS está disposto a fazer tudo aquilo que seja necessário para conseguir a maioria absoluta nas próximas legislativas. Para não hipotecar esse objectivo os socialistas resolveram submeter-se a uma pública manifestação de subserviência relativamente a um dos mais poderosos clubes desportivos do País: o Benfica.
Pela pena do seu Presidente, Carlos César, o PS veio demarcar-se das intervenções públicas da sua ex-deputada europeia, Ana Gomes, que questionara os "contornos" de uma muito referenciada transferência de um jogador do clube da Luz para uma equipa espanhola. A sua militante respondeu  a esta posição oficial de demarcação de forma dura e frontal, como é seu timbre.

Recorde-se que a eurodeputada Ana Gomes comentou em devido tempo os contornos dessa afamada transferência.  Respondendo a um tweet  de Bruno Faria Lopes, jornalista da Sábado,  questionara se não se estaria perante um negócio de lavagem de dinheiro Mais exactamente um negócio de lavandaria, na expressão por ela utilizada.

Parecem óbvias duas coisas: em primeiro lugar ninguém com pelo menos dois neurónios no cérebro atribuíu ao PS as declarações de Ana Gomes relativamente a este caso. Como ninguém consegue atribuir ao PS as posições e as intervenções públicas da ex-eurodeputada do PS em tudo o que se relaciona com o combate à corrupção, a evasão fiscal em larga escala, a opacidade, a falta de transparência e democraticidade no exercício de funções públicas. No segundo caso o PS nunca sentiu necessidade de se demarcar das posições da sua eurodeputada; O PS,  fez o que fez, ao mais alto nível, com manifestos objectivos eleitoralistas. Trata-se de conquistar a simpatia dos apoiantes do clube -supostamente mais de 6 milhões -, traçando uma clara linha divisória entre a actuação da sua europedutada e a da ... instituição. O PS espera que os benfiquistas tenham isso presente no dia das eleições.

A política está cada vez mais neste nível de promiscuidade entre interesses supostamente inconciliáveis. Quando se junta futebol com poder económico ligado ao imobiliário pesado e ao sector emergente das grandes organizações transnacionais de transferência de jogadores -que movimentam biliões a partir de offshores não escrutináveis - os partidos são capazes de descer ao mais baixo nível, a partir dos níveis mais elevados da sua hierarquia. Na verdade há vias originais para o socialismo que ninguém conseguiu descobrir porque pura e simplesmente não existiam. Os dirigentes do PS esperam agora que, pelo menos, haja uma via original, benfiquista,  para chegar à maioria absoluta.

Shame on you, mr César.

23/07/19

Mulheres na política diminuem corrupção?

Há quem diga que haver muitas mulheres na política tende a diminuir a corrupção, e até há estudos nesse sentido[pdf].

Mas a respeito dessa relação entre mais mulheres na política e menos corrupção, já me ocorreu se, em vez de ser uma relação causal em que mais mulheres causa menos corrupção, não poderá ser um terceiro factor a causar simultaneamente maior presença de mulheres na política e menos corrupção.

Mais exatamente, suspeito que sociedades em que se valoriza muito a família alargada, o bairrismo e uma cultura de acordos de bastidores e troca de favores em vez de conflito aberto tendem a ser simultaneamente a) sociedades em que as mulheres tendem a estar afastadas dos centros de decisão (e, de uma maneira geral, sociedades onde é difícil outsiders entrarem, porque funciona tudo à base da favores e apadrinhamentos); e b) sociedades mais propensas pelo menos ao tráfico de influências (em que há muito uma cultura de "falar com alguém que conhece alguém que resolve o problema"), que facilmente degenera em corrupção.

Isto não deixa de ter alguma semelhança com o ponto 6 referido pela Maria João Marques no artigo acima, ("Ao criarem disrupções nos círculos de poder dos homens, muitas vezes com esquemas de corrupção ou favorecimento já instalados, as mulheres quebram assim os círculos da corrupção") mas aqui não será necessariamente uma questão de a maior participação das mulheres desestabilizar os círculos de poder instalados, mas sim da desestabilização dos círculos de poder diminuir a corrupção e simultaneamente favorecer a maior participação de mulheres.

17/07/19

Johnny Clegg (1953-2019)

Asimbonanga, 1987, Johnny Clegg and Savuka



Ler os Outros: Sobre a eleição de Von der Leyen

Acabou como é habitual o "processo" de eleição do Presidente da Comissão Europeia. Com o voto de António Costa e dos socialistas europeus a senhora Von der Leyen, alemã, do partido da senhora Merkel, irá liderar a Comissão nos próximos anos.

Analisar porque razão os socialistas optaram por esta solução quando podiam, com os votos da esquerda, eleger um dos seus deputados, é uma inutilidade. A história desgraçada de UE, a sua deriva anti-democrática, no sentido de se constituir como um poder à margem dos cidadãos, alimenta-se desde há muito deste tipo de opções políticas.

Talvez por isso se deva salientar que, apesar dos votos dos socialistas, a senhora Von der Leyen apenas foi eleita porque os 12 deputados dirigidos pelo senhor Orban nela votaram. Como refere Rui Tavares a eleição foi confirmada no Parlamento Europeu por apenas 9 votos. Nunca um Presidente foi eleito com tão pouca margem.
Haverá razões para justificar as opções políticas dos socialistas - fiéis às suas responsabilidades históricas na destruição do projecto europeu que tinham ajudado  a construir - mas não serão tão simplistas como afirmar-se que Von der Leyen mereceu cada voto que recebeu. Porque não podemos ignorar o significado político de certos votos, nomeadamente o dos neofascistas húngaros.

12/07/19

Sugestão: quotas para escolas em vez de para etnias

Tem se começado a discutir a possibilidade de quotas para negros e ciganos para a entrada na universidade (mas, de qualquer maneira, não será para já). Eu acho (como já escrevi há uns tempos) que seria melhor ideia um sistema como o da Universidade do Texas (o Texas, esse bastião do politicamente correto), em que os alunos nos 10% de topo de cada escola têm assegurada a entrada na universidade (isto é, um aluno de 12 numa escola em que todos os outros tenham 10 fica à frente de um aluno de 15 numa escola em que quase todos tenham 18). Eu digo 10% como poderia dizer 7% ou 18,23% (o que interessa os x% de melhores alunos de cada escola), mas ao longo do post vou falar em "10%".

É verdade que transpor esse sistema para uma situação como em Portugal, em que há um concurso nacional em que os alunos concorrem a várias universidades, precisaria de adaptações - dificilmente poderia ser algo como "os 10% de melhores alunos de cada escola têm entrada garantida na universidade e curso que coloquem em primeiro lugar" (arriscava-se a que alguns cursos ficassem com 10 vezes mais alunos do que vagas), mas talvez algo do tipo "os 10% de melhores alunos de cada escola têm prioridade, e só depois destes estarem colocados é que se vai buscar os outros" (provavelmente os cursos mais procurados ficariam cheios com alunos dos tais 10%, e só nos menos procurados é que os outros provavelmente conseguiriam entrar). Também teria que se ver como isto se aplicaria por disciplinas e cursos (os melhores 10% de cada escola teriam prioridade para qualquer curso, ou ficaria melhor algo como "os 10% com melhor média conjugada de economia, contabilidade e matemática de cada escola têm prioridade para o curso de economia"?), e se o que interessaria seria os melhores 10% na nota da escola, os melhores 10% em exames ou uma combinação qualquer.

Esta sistema provavelmente combateria as desigualdades no acesso ao ensino superior derivadas da pertença a meios sociais e/ou culturais desfavorecidos, já que frequentemente o meio social vem associado à escola (as escolas dos subúrbios e das zonas rurais tendem a ter estudantes desfavorecidos em comparação com os das escolas do centro das grandes cidades); suponho que a situação mais injusta aqui seria a da classe média das pequenas cidades, cujos filhos ficariam efetivamente beneficiados - como nas pequenas cidades não há grande segregação social entre escolas secundárias, esses alunos teriam dois privilégios: o privilégio que já têm agora, de pertencerem à classe média urbana, e mais o privilégio de frequentarem escolas em que a maior parte dos alunos pertencem a classes desfavorecidas (tornando mais fácil aos da classe média ficarem no top dos 10%); e ainda por cima eu pertenço a essa classe social, pelo que poderão sempre questionar se eu não estou é a querer defender os interesses da minha classe com esta conversa...

[Sim, sim, vão me dizer que não há uma relação necessária entre classe social e resultados escolares. Já agora, digo que um dos meus melhores amigos do tempo de adolescente deveria ser a pessoa mais pobre da nossa turma e era um dos 3 ou 4 melhores alunos, e atualmente parece-me uma pessoa muito mais bem sucedida na vida do que eu - mas uma correlação não ser igual a 1 não significa que não seja maior que zero]

 Porque acho esse sistema preferível a quotas étnicas:

- Como já disse, beneficia todos os grupos desfavorecidos, em vez de potencialmente os pôr uns contra os outros

- Consegue ser formalmente igualitário (o que, até em termos de opinião pública - ou até de alegações de inconstitucionalidade -, tem muitas vantagens). As quotas por género também são igualitárias (já que embora sejam frequentemente chamadas de "quotas para mulheres", o que normalmente dizem é "o género menos representado não pode ter menos que x%", podendo o género menos representado serem homens ou mulheres conforme as ocasiões), mas é muito mais difícil fazer isso para as minorias étnicas; como as diferentes etnias representam proporções diferentes da população (ao contrário das mulheres e homens, que representam ambos perto de 50%) não é possível aplicar uma forma genérica e simples, com uma regra do tipo "cada etnia tem que ter pelo menos z% do total dos escolhidos" (claro que se poderia ter uma regra do tipo "cada etnia tem que ter no mínimo uma representação equivalente a 70% da sua representação na população total" mas isso começa a ser de aplicação bastante complexa).

- Não tem o problema de ter que definir a que etnias as pessoas pertencem, o que não é tão simples como tudo isso.

Possíveis desvantagens:

- Este raciocínio tem implícito que há uma ligação significativa entre pertencer a um grupo desfavorecido e frequentar uma escola em que os alunos venham esmagadoramente de grupos desfavorecidos, o que não é necessariamente verdade (ver o que escrevo atrás sobre a classe média das pequenas cidades).

- Ligado ao ponto anterior, haveria o risco de algumas escolas simplesmente adotarem (como muitas vezes já fazem) um regime de apartheid interno - criarem uma turma de elite, e porem os alunos com piores resultados nas outras turmas (e pronto, grande parte dos alunos da tal turma de elite ficavam nos 10% de melhores alunos dessa escola); diga-se, aliás, que uma das recomendações do tal relatório sobre o racismo foi de acabar com a prática de criar turmas quase só para alunos de minorias étnicas (já agora, nunca vi as pessoas que estão sempre a reclamar do "multiculturalismo" porque "as minorias têm que se integrar", a dizerem que são contra quotas porque o Estado deve tratar todos por igual, etc. etc. a reclamarem da segregação racial e social de facto na elaboração das turmas escolares)

- Poderia criar má relação entre os alunos em cada escola; hoje em dia, mesmo havendo competição para entrar na universidade, os colegas da mesma turma/escola ajudam-se uns aos outros, estudam em conjunto, se calhar até deixam copiar, etc. Parte da razão é que a probabilidade de eu deixar de entrar no curso que quero porque foram os meus colegas de turma que entrou é quase nula. Já num sistema de prioridade para os 10% de melhores alunos daquela escola, a competição e a rivalidade seriam mais acesas, já que há mesmo uma hipótese significativa de eu não ficar nos 10% porque os meus colega ficaram.

De qualquer maneira, muita gente irá objetar a esta proposta com a conversa do "mérito", mas basta ver a atenção com que se olha para os rankings escolares divulgados anualmente ou as guerras para conseguir ter os filhos colocados em certas escolas para se concluir o desempenho escolar não depende apenas do mérito individual (aliás, as pessoas que estão sempre a falar do "mérito" parecem-me ser também as que mais importância dão aos rankings escolares, numa contradição aparente), e de qualquer maneira os resultados individuais continuariam a contar (quer para ficar nos 10% de melhores alunos de cada escola, quer para a atribuição das vagas restantes).

Ainda a respeito do "mérito", algo que implicaria uma reflexão é qual o porquê de atribuir as vagas na universidade aos alunos com melhores notas; parece óbvio e intuitivo, mas exatamente por isso se calhar ninguém pensa seriamente qual é o motivo para tal. Eu consigo imaginar pelo menos 3 motivos, que têm implicações diferentes:

a) Escolher os melhores alunos porque estes têm mais bases e portanto vão ter melhor desempenho no curso e na vida profissional posterior. Se o motivo for esse, aí faz efetivamente sentido escolher os alunos com melhores notas.

b) Escolher os melhores alunos porque estes provavelmente são mais inteligentes e/ou mais esforçados e/ou mais interesados e portanto vão ter melhor desempenho no curso e na vida profissional posterior. Esta explicação difere da anterior porque não requer que o que os alunos aprenderam no secundário tenha alguma utilidade real na licenciatura/mestrado/profissão, é apenas uma maneira de selecionar os mais inteligentes/esforçados/interessados (para medir inteligência ou esforço nem será necessário que a matéria do secundário tenha alguma coisa a ver com a matéria da licenciatura, mas acho que para medir interesse já o será). Se o motivo for esse (avaliar mais a personalidade do candidato do que os seus conhecimentos) aí faz todo o sentido um sistema de dê prioridade aos alunos de meios em que é mais difícil ter bons resultados escolares: quase por definição, para um aluno de uma "má" escola conseguir um 18 num exame, precisa de mais esforço/inteligência/motivação do que um de uma "boa" escola (e se não for assim, quer dizer que os pais que andam a pagar fortunas para os filhos ficarem numa "boa escola" privada ou a meter cunhas para eles ficarem numa "boa escola" pública estão a ser vítimas de uma burla em larga escala).

c) Escolher os melhores alunos é uma forma de levar os alunos no secundário a se esforçarem (e os país a obrigá-los a esforçarem-se) e a aprenderem o que lhes é ensinado - mesmo que grande parte não vá para a universidade, o que aprenderam vai ser útil tanto a eles como à sociedade em geral (e atenção que com "útil" não me estou a referir apenas ao aspeto económico). Mas aí também não vem mal ao mundo se se introduzir um sistema qualquer de compensação a quem venha de meios desfavorecidos, já que o entrar ou não na universidade continua, naquilo que o individuo pode controlar, a depender do seu esforço (como escrevi acima, quer para ficar nos 10% de melhores alunos de cada escola, quer para a atribuição das vagas restantes).

05/07/19

Declaração de interesses

Eu em princípio vou ser candidato (como penúltimo da lista dos suplentes do círculo de Faro) pelo Bloco de Esquerda às próximas eleições. Portanto, se já antes tudo o que eu escrevia tinha um claro enviesamento, agora ainda mais.

01/07/19

Leituras: Revista de Geografia e Ordenamento do Território, nº 17(2019)

A revista do Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território publicou hoje, 30 de Junho, o seu 17º número  Nesta edição foi publicado um artigo da minha autoria cujo título é o seguinte: "A afectação social das mais-valias no planeamento urbano - a nova lei de solos em Portugal". Neste artigo apresenta-se uma proposta de afectação social das mais-valias geradas no processo de desenvolvimento urbano. Trata-se de um contributo para suprir uma das mais graves lacunas da nova lei de solos, aprovada em 2014. Discute-se a relação que o Estado estabelece com o Mercado em torno do desenvolvimento urbano e em particular a relação entre o Estado regulador e o Estado produtor. Por fim apresenta-se, com um exemplo concreto, uma proposta de financiamento da Política de Habitação.

Numa altura em que a política de habitação está de novo a emergir no debate político e académico não faz sentido continuar a ignorar a magna questão dos recursos.  Não se pode continuar a fingir que o processo de desenvolvimento urbano é deficitário ao mesmo tempo que por omissão continuamos a permitir que as mais-valias sejam capturadas pelo Mercado e pelos seus agentes.