28/06/13

«Lições do Brasil para Portugal»

Excerto do artigo do colectivo do Passa Palavra sobre alguns aspectos das lutas brasileiras recentes e que comportam reflexões importantíssimas para o actual cenário português.




«As reportagens do Passa Palavra sobre a Revolta dos Coxinhas, se puderam deixar surpreendidos ou incrédulos os leitores portugueses, em nada surpreenderam os leitores brasileiros que presenciaram essa fascização da contestação política, quando não a sofreram no corpo. Seria importante que os leitores portugueses prestassem atenção a esses relatos. Não só porque «nenhum homem é uma ilha isolada […] por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti». Mesmo na perspectiva egoísta que é tão comum, é muito possível que uma inversão política do mesmo tipo ocorra em Portugal, na sequência de protestos populares contra as medidas de austeridade.
Desde o ano passado que o Passa Palavra vem a alertar para a possibilidade de se desenvolver um fascismo em Portugal, se o país sair da zona euro e se confinar num nacionalismo económico que implica forçosamente um capitalismo de Estado. Consideramos que esse abandono do euro será a alternativa menos provável; mas, apesar de tudo, ele é possível e neste sentido desenham-se várias manobras políticas que temos procurado analisar, porque não nos interessa discutir conjecturas, mas desenvolvimentos potenciais. Assim, à luz das experiências em múltiplas cidades brasileiras, antevemos o risco de um movimento de rua iniciado como um protesto anticapitalista servir para a confluência de forças socialmente conservadoras ou fascistas, que diluam os objectivos iniciais numa proliferação de reivindicações abstractas — ou concretamente capitalistas — e que no final a esquerda acabe por ser tanto quanto a troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) o alvo dessa hostilidade.
Este risco é maior ainda em Portugal do que no Brasil, porque não existe aqui um movimento social com as características do MPL, com a sua experiência de organização e de luta nas ruas. Movimentos como os Indignados, o Que Se Lixe A Troika e outros do mesmo género começam por ser um quadro já de si difuso e, portanto, propenso a transformar as exigências específicas dos trabalhadores em temas moralistas e nacionalistas. As manifestações passadas mostraram a facilidade com que a necessária crítica ao capitalismo se converte num ataque exclusivo a alguns sectores do capitalismo, nomeadamente o sector financeiro, e até no enaltecimento dos pequenos empresários e dos patrões de oficina, esses peritos da mais-valia absoluta; a facilidade com que a crítica ao capitalismo se converte na crítica ao governo; a facilidade com que o ataque ao governo se converte num ataque a toda a política e aos políticos; finalmente, com que o ataque à política dá lugar ao enaltecimento da unanimidade nacional. Os bizantinos cortadores de cabelos em quatro — para empregar a bela expressão francesa — podem dedicar-se a explicar a diferença entre nacionalismo e patriotismo, que para nós e para o comum das pessoas significam a mesma coisa. E assim manifestações que podiam ser convocadas contra o capitalismo, ou pelo menos contra as consequências do capitalismo, terminam em grande parte como afirmações de nostalgia patriótica, colorida de verde-rubro.
E depois, que mal tem isso?
Até agora o país continuou fiel à «brandura de costumes» e, ao contrário do que sucedeu no Brasil, os patriotas aqui não enxovalharam os esquerdistas, não lhes rasgaram as bandeiras, não lhes cuspiram, não os espancaram, não os deixaram em coma. Mas até quando?».
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Reproduzo também um breve mas muito elucidativo comentário do João Bernardo na caixa de comentários desse mesmo artigo sobre o problema da circulação de elementos confusos entre organizações nacionalistas de esquerda e de direita.
«creio que algumas percentagens ajudarão a perspectivar o problema dos elementos confusos. Hitler chegou ao poder na Alemanha nos últimos dias de Janeiro de 1933. Ora, em 1932 as transferências de filiados entre o Partido Comunista Alemão e as milícias nazis, as SA, chegaram a 80% do conjunto dos membros destas duas organizações. E em Novembro de 1941 Hitler recordou num círculo de comensais que na época da pancadaria nas ruas 90% do partido nazi era composto por elementos de esquerda. Paralelamente, no Partido Comunista Alemão, entre 1930 e 1932, os abandonos e as novas adesões chegaram a uma taxa superior a 50% dos membros».

5 comentários:

Libertário disse...

A análise que alguns fazem sobre as manifestações de rua no Brasil falando sobre o "perigo fascista" só demonstra a meu ver a pobreza da análise desta esquerda esclerosada. Mesmo de alguma esquerda marxista e autonomista ou até de alguns libertários.
Uns quantos carecas, um bando de idiotas, alguns provocadores e umas bandeiras nacionais não fazem um "fascismo" fora de época.
Este desvio de alvo, já falam até em criar frentes-antifascistas..., só desviará ainda mais os anti-capitalistas dos seus objectivos. Nesse sentido o discurso "anti-fascista" será um erro político de consequências desastrosas. Os nossos problemas são outros e os nossos alvos deveriam ser outros. O curioso é ver pessoas como as que escrevem no Passa Palavra e no Vias de Facto embarcar nessa retórica primária.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Libertário,

suponho que, por uma vez, não terás lido com atenção os textos que o Passa Palavra tem publicado sobre a situação no Brasil. Não se trata só de alertar para perigos, que existem, e não vejo que devam ser subestimados, uma vez que as suas expressões não são tão inócuas, nem tão pouco pesadas, como pareces pensar. Os testemunhos militantes que o Passa Palavra publicou são bastante eloquentes.
Mas, sobretudo, ao mesmo tempo que o Passa Palavra alerta para os perigos referidos, faz, tem feito, duas outras coisas não menos importantes: acentua a novidade e as potencialidades que a luta pôs na ordem do dia, e propõe a sua continuação e aprofundamento activos como antídotos tanto contra a ameaça nacionalista como contra o statu quo "lulista".

Assim, podes ler num dos artigos de que me fiz eco há dias:

"o MPL-SP, ao tomar como tática as ações de rua e a luta de enfrentamento (em detrimento da via pacificadora da negociação sem luta), conseguiu realizar um feito histórico: pôs em xeque, à extrema-esquerda do espectro político, a engenharia conciliatória solidamente construída por todos estes anos de hegemonia petista no Brasil. Vale lembrar que, dias antes, mobilizações parecidas já haviam acontecido em algumas capitais brasileiras e obtido com isso significativos triunfos, como o caso dos jovens de Porto Alegre e Goiânia, que conseguiram revogar os aumentos de tarifa. Fora preciso que um jovem movimento social, livre dos vícios e do pragmatismo que congelou as organizações de luta da classe trabalhadora erguidas em outro ciclo histórico, desse um salto para fora do que convencionamos, nos últimos anos, ser uma metodologia consequente de ação política (em nome de supostos resultados), para que a estabilidade petista não se apresentasse tão estável assim. O MPL-SP demonstrou, inclusive para muitos profissionais da militância sindical, social e estudantil, que há alternativas, sim, à ação política hoje travada somente em conselhos, fóruns, audiências públicas, redes sociais e outras instâncias de produção de consenso ou de diluição de propostas.
(…)
"Assim, posições que buscam associar o próprio MPL-SP a posições de direita, por supostamente já ser “semicoxinha” em sua base social, são uma tentativa caluniosa de esconder o fato óbvio de as pautas e demandas do MPL incidirem mais diretamente sobre a população mais precarizada e marginalizada, sem contudo, se restringirem a ela. Se isto não bastasse, tais insinuações não mencionam o fato de o movimento ter antigo e prolongado trabalho de base nas mais variadas escolas e bairros de São Paulo, sendo, portanto, a preocupação com os trabalhadores mais pobres um de seus temas mais relevantes.
Outra crítica digna de nota foram as tentativas de certa esquerda, tanto partidária como independente, que durante o crescimento da luta se esforçou por sequestrar o movimento para suas respectivas bandeiras partidárias, como as PECs, as reformas políticas, a não privatização, etc., bem como as vãs tentativa de minar a credibilidade do MPL-SP com alusões descabidas a um suposto abandono da luta diante de um suposto golpe militar em curso, imaturidade e irresponsabilidade políticas.

As correntes que assumem tais críticas revelam, contudo, um ressentimento guardado por não terem sido elas a conseguir esta vitória, que em seu aspecto mais relevante diz respeito às formas e métodos de organização da luta, pautado em princípios não autoritários, horizontais, apartidários e independentes.

Assim, é importante destacar a legitimidade alcançada pelo MPL-SP como movimento preferencial para estas lutas, que saiu reforçado em sua posição pelo êxito conseguido na sua última campanha de redução da tarifa, algo que não poderá mais ser ignorado por todo campo de esquerda, abrindo novos horizontes à organização da luta anticapitalista" (cf.http://viasfacto.blogspot.pt/2013/06/a-situacao-no-brasil-ousar-saber-o-que.html).

(Continua)

Miguel Serras Pereira disse...

(Continuação do comentário anterior)

E, no mesmo artigo, também esta ideia, que me parece óbvio que não deixarás de subscrever:

"Entre os anticapitalistas convém levar em conta uma dupla movimentação que acontece neste momento. Parte da esquerda acredita estarmos na iminência de um golpe de Estado fascista ou coisa do tipo. Nós não iríamos tão longe. Não porque nossas elites mais retrógadas guardem preceitos democráticos ou humanistas, mas porque isso não seria feito sem muito derramamento de sangue, o que afastaria destas terras a estabilidade necessária para os negócios. Além do mais, o fascismo não necessariamente precisa consolidar-se como regime político quando ele está suficientemente distribuído na sociedade e nas ruas.
Por sua vez, a esquerda institucional que orbita em torno do PT, apesar de estar um tanto acuada neste exato momento, constitui um campo que deve sair desgastado eleitoralmente mas, por este mesmo motivo, prolonga a ilusão em torno de seu papel no seio da esquerda em geral. É que a histeria “estamos na iminência de um golpe” deverá produzir um discurso do tipo: “não ataquemos esse governo democrático-popular, é hora de TODA esquerda — sem distinções — se unir, não devemos fazer agitações políticas que aticem a sanha da direita raivosa”, como se pode ver aqui. Devemos sair às ruas com unidade para se defender do avanço direitista, o que é muito diferente de defender o governo de Dilma. Caso contrário, voltaremos à estaca zero, ao congelamento das nossas ações".

Não te parece que estamos, tu próprio e eu, bem como o colectivo do Passa Palavra e o JVA, do mesmo lado da barricada?

Abraço

msp

Libertário disse...

Não se trata do lado da barricada não duvido do lado em que estamos...

O problema, que já várias vezes referi, é que a obsessão com o "nacionalismo" e o "fascismo" distorce a realidade e desvia-nos do alvo principal: as classes dominantes actuais (capitalistas, gestores e políticos) que são quem continua a ter condições de manter este sistema.
O estalinismo e o fascismo são fenómenos ultrapassados pela história. O nosso horizonte autoritário é outro: grandes estados omnipresentes, articulados entre si, onde o controle totalitário é reforçado pelas tecnologias e pela ciência e legitimados pela manipulação política e informativa.
Os combates do futuro por uma outra sociedade passam necessariamente pela luta contra esta nova realidade do Estado e nesse sentido as propostas anarquistas da autogestão, descentralização e federalismo tem de voltar a ser colocadas nas lutas sociais. A esquerda que quer "conquistar" o Estado e que não abdica desde já de ser parte deste Sistema, nos parlamentos e nos governos, seja o PC, o BE ou o PT já são parte do problema da mudança social e não duvido em que lado da barricada estão...

Miguel Serras Pereira disse...

Libertário,
suponho que há aqui um problema de formulação que talvez possamos resolver, e que é importante resolvermos.
No que se refere ao bloco que nos governa, estamos de acordo. Quanto ao estalinismo e ao fascismo, creio que não devemos, contudo, ter uma leitura tão restritiva ou literal como a tua. Formas que reproduzem de perto algumas características essenciais desse fenómeno surgem um pouco por todo o lado, por vezes proliferantes, no mundo que nos rodeia: da Rússia ao Irão, da China às Américas, e na própria Europa (não pensas de certo que o FN francês seja uma efervescência superficial e casual…). A este propósito, convém não esquecer (é uma ideia que, em termos diferentes, sublinham vários pensadores críticos, como o João Bernardo ou o Anselm Jappe) que o facto de uma reacção traduzir uma revolta ou descontentamento contra a ordem existente não a torna ipso facto libertadora ou alternativa à dominação classista e hieráquica: o "anti-imperialismo islâmico" ou o de certos caudilhismos latino-americanos é instrutivo.
Há ainda outro aspecto: o perigo de concentrar todos os protestos e reivindicações ao mter na ordem o capital financeiro, deixando na sombra o "capitalismo produtivo" e a organização capitalista geral, a sua natureza intrinsecamente antidemocrática e classista - pondo entre parênteses ou recalcando a exigência de radical democratização das relações de poder que definem a economia capitalista, tanto a nível macro como micro. É um caminho perigoso, como podemos ver no modo como a "esquerda" hoje faz seus os temas do "direito ao trabalho" e da "criação de emprego", reabilita as competências e "universalidade" do Estado, etc., etc. E, do mesmo modo, à "globalização capitalista", ou à internacionalização dos mercados, tudo o que tem a opor é a restauração das soberanias nacionais.
Enfim, temos aqui pano para mangas, e acho que só temos a ganhar tentando esclarecer e formular com clareza todas estas questões. Não te parece, também?

Abraço

msp