Cito do Passa Palavra , em Maus Costumes (I): As Noivas Roubadas, esta meia-dúzia de linhas que veiculam uma formulação incisiva do problema do multiculturalismo:
Os fanáticos do multiculturalismo - um dos avatares da ideologia pós-moderna - espalharam a ideia de que tudo o que corresponde a tradições e usos dos povos ou comunidades deve ser guardado e respeitado, e de que nós não temos nada que os julgar em função dos nossos próprios valores. Como se não fosse precisamente em função dos valores dos pontífices do multiculturalismo que essas tradições e usos são consideradas dignas de conservação!
Mas o que há de perverso naquele raciocínio é que, entre estes “nossos valores” a ignorar, são também postas em causa conquistas de âmbito universal alcançadas em épocas históricas mais recentes. Os resultados das lutas conduzidas pelos socialistas e pelos anarquistas na Europa do século XIX são válidos para todo o mundo, assim como são válidos para todo o mundo os resultados das lutas conduzidas hoje pelos camponeses de Chiapas. Ao internacionalismo das lutas, os multiculturalistas querem opor os nacionalismos, os regionalismos e os bairrismos das culturas conservadoras. Assim se chegaria à aberração de respeitar e preservar tudo quanto fossem “culturas e práticas arreigadas de um grupo ou comunidade”, como por exemplo, polícias de choque, torturadores ou extremistas religiosos, como denuncia Terry Eagleton (The Idea of Culture, Oxford e Malden, Massachusetts: Blackwell Publishers, 2000, p. 15).
Na mesma ordem de ideias, deveríamos acrescentar que a renúncia a julgar em função dos nossos próprios valores, aceitando evidentemente discuti-los em pé de igualdade com quem se disponha a fazê-lo coonosco (em vez de nos condenar à prisão ou à morte ou de nos tentar censurar), equivale de facto a renunciarmos a assumir que possa haver para nós seja o que for, concepção ou projecto que valha para nós, ou por que valha a pena lutarmos, se for caso disso, até às últimas consequências. Qualquer valor ou convicção se torna, na melhor das hipóteses, mero elemento decorativo, supranumerário e dispensável, que não identifica nem auto-responsabiliza seja quem for - nem responsabiliza ou identifica seja quem for perante seja quem for.
Dito de outro modo, esta equivalência geral de tdas as ideias e convicções, concepções em acção e projectos, ou, no fundo, formas de vida e convivência, abre caminho à absolutização do valor "neutral" ("axiologicamente neutro") da razão económica e hierárquica da ordem estabelecida.
É o que nos dá a ver este exemplo, que recupero de uma crónica de Miguel Sousa Tavares, no Expresso (10 de Abril de 2010):
Mira Amaral, foi (…) o ministro que propunha eucaliptizar o país inteiro em defesa do nosso "petróleo verde". Mas, há uns tempos, segundo relatou o Público, converteu-se às energias alternativas e, inspirado no exemplo norueguês, apaixonou-se pela ideia das eólicas em offshore: moinhos de vento no mar. E fez o que a nossa "iniciativa privada" costuma fazer nestes casos: foi pedir apoio ao Governo. Mas Manuel Pinho respondeu-lhe que não, que era muito caro. E ei-lo agora transformado em inimigo das eólicas e das energias alternativas e defensor da recorrente ameaça nuclear. Junto com gente como Miguel Cadilhe, João Salgueiro, Patrick Monteiro de Barros (um luxuoso grupo de benfazejos!), quer-nos convencer de que o nuclear é que será a energia do futuro. Contradição? Não: enquanto cidadão, explica ele, pode discordar de uma política; mas, enquanto empresário, pode aproveitar as oportunidades de negócio dessa mesma política.
A conclusão não podia ser mais límpida no que se refere às consequências do multiculturalismo e das concepções do liberalismo deontológico. Se afirmarmos que todos os valores ou concepções se equivalem e merecem o mesmo reconhecimento contanto que os seus agentes - outras "culturas" ou outros "indivíduos" - não interfiram com os valores ou concepções dos outros, estaremos a reconhecer que todos os valores ou concepções se reduzem a "suplementos de alma" ou preferências decorativas inócuas, uns e outros esvazidos de consequências práticas, e a resignar-nos a que o único valor a valer de facto sejam "as oportunidades de negócio" e as estratégias de ascensão na pirâmide oligárquica do poder pelo poder do empresário bem sucedido, seja em que sector for e por quaisquer meios, em fazer dinheiro e poder. Estes dois valores, com efeito, tendem a ser o mesmo, pois o poder de Estado é a moeda do dinheiro como o dinheiro é poder de Estado e moeda desse poder. Ou são, se quisermos, as duas faces do único valor imposto - e posto fora da tolerância multiculturalista e da deontologia liberal - pela política económica e pela economia política globais.
17/04/10
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9 comentários:
Abençoado sejas meu filho!És palavroso mas, tal como o Papa Bento XVI consideras o relativismo cultural o maior mal da modernidade.
Já agora que idade tens?
Eminência,
talvez eu não devesse responder à sua provocação, mas admitamos que, apesar de o fazer da pior maneira, há efectiva vontade de discussão na sua proposta.
Eu não falo de relativismo cultural nos mesmos termos que o Papa, que subordina a autonomia democrática à revelação ou a uma interpretação autorizada e constitucionalizada da "lei natural". Mas também não me parece que tudo valha, ou que as instituições, usos e costumes, formas de vida e modos de regulação destas, sejam indiferentes.
Julgo também que a democracia, ou a presença da ideia democrática, enquanto projecto de autonomia - nós somos e/ou queremos ser aqueles que se dão as suas próprias leis, sabendo que o fazem, etc. -, é, se assim quisermos dizer, traça uma fronteira inegociável, que é a da dessacralização das normas, leis, usos e costumes, formas de vida, acompanhada pelo seu reconhecimento como criações humanas, em cujos termos as questões da justiça, da vida boa, das instituições por que nos governamos, permanecem em aberto, não engendram artigos de fé nem, justamente, "valores sagrados".
Por fim, não podemos, adoptando esta dessacralização e esta reivindicação de liberdade e responsabilidade autónomas "para nós", deixar de denunciar como inaceitável a proclamação seja por quem for da autoridade sagrada, indiscutível, não sujeita a deliberação e validação humanas, de normas ou regimes institucionais, a que só poderíamos obedecer, sacrificando-lhes a nossa liberdade de criação (no sentido mais amplo deste termo) e de juízo.
Não podemos discutir democraticamente ou fazer filosofia com quem nos queira impor que limitemos o que pode ser discutido ou perguntado a questões menores, ao mesmo tempo que criminalize qualquer tentativa que questione os fundamentos de uma dada organização do poder ou instituição da sociedade, os seus fins e justificações (declarados vontade divina ou lei natural, económica, etc., acima da deliberação ou decisão humanas). É, de resto, por isso que a salvaguarda do projecto democrático de autonomia exige dos cidadãos que o protagonizem que sejam capazes de aceitar a "luta de morte", ou de tomar armas, em defesa da praça da palavra.
Uma relação democrática com o outro não exige que ele renuncie, por exemplo, às suas crenças religiosas, contanto que não queira impor-nos os seus mandamentos como regra da relação que mantém connosco, como alternativa à deliberação e à decisão entre iguais da lei que nos deverá ser comum. E é por isso que a afirmação da diversidade cultural só pode escapar à lógica da guerra ou da colonização pela instituição da democracia como língua franca ou regime de regulação das relações entre registos culturais difentes. O que implica a introdução da ideia democrática como traço nuclear instituinte nas "identidades" históricas em presença - e/ou como traço transcultural das instituições globais. Não deveria ser necessário dizer que a democratização institucional interna de cada parte é condição necessária deste horizonte de mundialização da democracia.
Com os meus respeitos laicos e democráticos
msp
Meu filho,
Agradeço a tua resposta. Uma diarreia mental digna dos Grandes Doutores da Igreja. Já encomendei ao colega Saraiva a abertura do teu Processo de Conanização.
Miguel,
Só agora aqui chego, embora pensasse fazê-lo desde que li o teu post.
Bem-vindo ao clube, uma vez mais - neste caso, o dos não-multicuralistas respeitadores e, portanto, ética e politicamente correctos! Que acreditam nele como uma salvação para o mundo, baseada na Aliança das Civilizações e outras coisas parecidas. É mais ou menos isso, não é?
Sim, Joana, é isso mesmo. Obrigado pelas boas vindas.
Mas já que aqui estamos, deixa-me acrescentar que é curioso ver como os defensores de uma forma ou de outra de autorização política da religião invocam também em defesa do intolerável as "identidades culturais" e os seus direitos. Não faltou por ocasião, por exemplo, do caso dos Versículos Satânicos de Rushdie quem justificasse - ou justificasse a não condenação política - da fatwa proferida contra o escritor fazendo notar que as fatwas faziam parte da religião islâmica e que esta era merecedora do nosso respeito e/ou não podia ser julgada senão pelos seus próprios critérios - a menos que quiséssemos atentar contra a sua liberdade. E assim faziam da invocação da liberdade ou especificidade cultural um dispositivo de cobertura e legitimação de instituições que a negam a si próprias e aos que governam por "direito divino" ou "vontade da Divina Providência".
Abrç
miguel
MSP
A autonomia democrática não é um fim em si mesmo.A ciência não é democrática tal como a verdade nunca o poderá ser.
CN
eu não digo que a ciência é democrática. O que digo é que o seu desenvolviento, interrogação e crítica requer o livre-exame, a não proclamação oficial de uma verdade primeira ou última imposta acima dos seus resultados, e que, portanto, as condições de uma sociedade democrática são as melhores garantias humanas que para ela temos.
Do mesmo modo, a liberdade democrática, a destituição de qualquer doutrina superiormente autorizada e imposta, cria as condições mais favoráveis à busca da verdade - impedindo, nomeadamente, que, ao ser imposta pela violência do poder hierárquico, a melhor das verdades se transforme num erro monstruoso (para citar a traço grosso uma tese de Rosa Luxemburgo).
A autonomia democrática é um fim em si própria e a sua busca condição de uma posição justa de outros fins que tenhamos herdado ou criemos. É também condição da liberdade individual - condição tanto da sua experiência como da sua concepção.
msp
Cito Simon Blackburn
«A tolerância é a disposição para combater a opinião apenas com a opinião: por outras palavras, a disposição para proteger a liberdade de expressão e para enfrentar as divergências de opinião apenas com a reflexão crítica e não com a repressão ou a força»
«A tolerância deu entrada na vida política com o Iluminismo. Trata-se de uma virtude caracteristicamente secular (...). De um modo diferente, o relativismo presume que "não existem assimetrias na razão e no conhecimento, na objectividade e na verdade (...)". Tudo o que há são diferentes pontos de vista, cada um dos quais "verdadeiro" para aqueles que o defendem (...). Não só devemos tentar compreendê-los (aos vários proponentes dos vários pontos de vista), mas também reconhecer a existência de uma simetria de estatutos. As suas opiniões "merecem o mesmo respeito que as nossas" (...) podemos ter valores ocidentais, mas eles têm outros; nós temos uma visão ocidental do universo, eles têm a deles; nós temos a ciência ocidental, eles têm a ciência tradicional», etc., etc.
«Segundo o relativista, a crença e a convicção voam pela janela fora porque (...) há por aí demasiadas verdades (...). Para o céptico, a crença e a verdade voam pela janela fora porque a verdade é demasiado rara. Ao contrário da atitude mental relativista, a do céptico é muitas vezes merecedora de admiração».
Caro MS Pereira- Tudo leva a pensar que as teses e interpretações sobre Ética e as Religiões - por inerência e imanência plural - estão na Moda em Portugal. Como materialistas e ateus estamos atentos à política do mercado: há muita distinção a operar para evitar " comprarmos gato por lebre", isto é, onde insidiosamente se insinua a lógica e a dominação ideológica e política do capitalismo, que Husserl sinalizou como historicidade interna do pensar...
O livro do Peter Singer-" Escritos sobre uma vida Ética "- já foi traduzido pela D. Quixote. E o " Enigmas da Existência- Uma viagem guiada pela Metafísica ", de Earl Connee e Theodore Sider, na Bizâncio- parecem-me ser dois grandes textos para orientar o debate. No campo do combate pela repolitização das alternativas Multiculturalistas- que vão de Negri/Hardt a Badiou ou mesmo Zizek...-penso que não se pode esquecer o testemunho de Harriet E. Baber- " The Multicultural Mystique - The Liberal case against diversity ". O " The Guardian" quase que fez dela cronista, e há um extenso dossier acumulado sobre as suas experiências vividas na Califórnia e no México. Sobre a Ética- política e filosofia- temos, a par de Rorty, dois vultos de grande interesse e radicalismo, Bernard Williams- próximo companheiro de Rawls, já falecido - e Thomas Nagel, que têm a grande virtude de não quererem dizer " mal " das posições políticas e teóricas expressas por Foucault, Derrida, Deleuze e Baudrillard, entre outras. Niet
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