Invertendo dialecticamente o ponto de partida do que escrevi aqui - e tomando como pedra de toque alguns dos problemas levantados pelo Ricardo Noronha aqui -, saliente-se o seguinte: é preciso, sem dúvida, prevenir que a susceptibilidade (legítima, mas não normativa) à violência de certas imagens e as eventuais restrições à sua mostração (que decorressem, hipoteticamente, daquela susceptibilidade), impeçam a denúncia das violências reais mais atrozes e branqueie a acção dos seus perpetradores.
Entretanto, pergunta-se: pode a imagem que mostra a crueldade não ser violenta? Não. Mas não haveria uma diferença entre a violência da imagem e a violência de um seu determinado uso – nomeadamente quando ela parece servir o incitamento de mais violência. É esta a distinção que faz sentido estabelecer.
Ao reler os “Apontamentos acerca de Kafka” de Adorno, topei com o que seria, por hipótese, o princípio da legitimidade e da pertinência da mostração de imagens violentas: «O mito deve sucumbir ao seu próprio reflexo.»
Num mundo em que a guerra se prolonga – inevitavelmente – pela imagem, o princípio da legitimidade e da pertinência da sua mostração residiria na possibilidade de, através da mostração de imagens (nomeadamente das mais cruamente violentas), o mito – a ideologia, o escândalo maquilhado, a barbárie mascarada de razão – sucumbir perante o seu próprio reflexo.
Exibir a violência para a combater, sem ceder ao sortilégio do círculo vicioso da vingança que gera mais violência e prolonga o mito.
3 comentários:
Caro João Pedro,
levantas uma questão de fundo e creio que lhe respondes bem, de tal maneira que nada tenho a objectar-te e só pretendo aqui continuar a pensar a partir do que dizes.
Começaria, então. por dizer "exibir a violência para a combater" quebrando o "círculo vicioso da vingança que gera mais violência e prolonga o mito", sendo uma bússola, não é uma receita, antes exigindo um juízo e uma decisão responsáveis caso a caso.
Assim, quanto à imagem da criança morta e mutilada que nos ocupou nos últimos dias, reconheço que se surgisse articulada como uma denúncia do horror da guerra - sem excluir aquelas que quem a mostrasse estivesse disposto a travar -, o meu juízo e, decerto o do João Vilaça e o do Ricardo, tal como o teu, teria sido outro.
Mas, ainda que assim fosse, não estaria tudo resolvido e não deveríamos aprovar sem mais, incondiconalmente e de qualquer modo, o uso da imagem. Esta só seria justa inscrita e articulada num discurso da palavra e da acção que desse que pensar e propusesse um fazer orientados, precisamente, para o desencantamento do mito - para a destruição do seu imperativo e interdito: o mito obriga a pensar um sentido único e intocável e proíbe de pensar para além dele.
Não é só a arte que pressupõe uma certa distância temporal. Digamos - e talvez o João Vilaça tenha tentado dizer uma coisa não muito diferente - que a política democrática não a exige menos, embora se trate aqui de uma distância temporal sui generis: não a distância que vai do antes ou depois, mas uma distância temporal inerna ao próprio momento da acção dotada de sentido, ou como proposta de sentido e interpelação da capacidade de proposta dos outros interpelados como "iguais".
Ora, acontece que a exibição mediática do horror pode servir, ainda que "horrorizando", para confortar e conformar o estado político das coisas e o estado político de cada um. Isto para dizer que dificilmente se conseguiria, ainda que para denunciar a guerra e não este ou aquele campo, um uso justo da imagem em causa, embora tal não seja impossível nem inconcebível.
Sei que me interrompo onde seria preciso ir mais longe. E espero que possamos continuar.
Caro Miguel,
sem dúvida, a questão da imagem é inseparável da da palavra. E a decisão acerca da legitimidade/pertinência da exibição de imagens joga-se na sua articulação.
Estou a limar as pontas de um segundo post onde me refiro à dialéctica entre imagem e palavra para que chamaste ontem a atenção num comentário ao post do Ricardo: mais do que de uma distância temporal, justamente, eu falaria de uma mediação, pela palavra, da imagem e da acção que, no fundo, vai ao encontro da “distância temporal interna ao próprio momento da acção dotada de sentido” a que acabas de te referir.
Abraço
Nem mais, João Pedro. Fico à espera do post.
Mas, já depois de ter ecrito o comentário, ocorreu-me que o Escudo de Perseu é justamente uma boa imagem ou metáfora da "distância temporal" a que me referi. É a reflexão no coração da acção e como seu elemento: a libertação, que mata o monstro mítico, e opera o desencantamento, só é possível pelo escudo, que desdobrando o inimigo e pondo-o de certo modo à distância, antecede o corpo a corpo guerreiro. A distância ou desdobramento temporal não se refere aqui à anterioridade da reflexão que antecipa (embora não a exclua) nem à reflexão a posteriori (que também não veda) sobre os efeitos criados pelo combate.
À espera de te ler - com um abrç
miguel sp
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