Descobri por acaso que faz hoje dezassete anos que desapareceu António José Saraiva, um dos intelectuais mais fecundos e sinuosos que o país conheceu. Estas características talvez ajudem a explicar o relativo esquecimento que paira sobre a sua obra, com excepção porventura da História da Literatura Portuguesa, que redigiu a meias com o seu amigo Óscar Lopes. Militante do PCP, depois radical de cores libertárias, depois nacionalista romântico, António José Saraiva navegou por todos estes portos sem que eles representassem etapas estanques na sua evolução intelectual. Assim de repente, lembro-me de dois momentos onde isso é notório: na entrada sobre «juventude» do Dicionário Crítico (1960), muito fora dos cânones do marxismo clássico e já a deixar ressoar aquelas que serão as teses proto-marcusianas de Maio e a Crise da Civilização Burguesa (1969); no modo como valorizou nesses anos a experiência chinesa e vietnamita, não tanto pelo seu carácter revolucionário e anti-imperialista, mas pela importância concedida à ruralidade e a um certo modo frugal e autêntico de se relacionar com a natureza, elementos que aparecem em distintos momentos da sua obra.
Já que tenho a palavra e o tema é este, gostaria de partilhar com o mundo uma interessante crónica que desenterrei num Comércio do Funchal do longínquo ano de 1970. Nela Saraiva faz a radiografia do uso da palavra «pá», zurzindo nos linguistas que, por acreditarem «que a língua se deixa agarrar por uma lógica», acabam por não reconhecer expressões às quais não se encontra associado qualquer conceito. Enquanto elemento «puramente afectivo», o «pá», segundo Saraiva, «abre clareiras de sonoridade num idioma que tende a escurecer». Vale a pena ler o texto todo, e por isso o disponibilizo abaixo (clicar sobre as imagens para abrir). Devo dizer, no entanto, que o que mais me impressiona neste belo naco de prosa é o facto de apontar o carácter informal da expressão como indício de uma sociedade que se desbloqueava, fenómeno que o 25 de Abril e o seu uso generalizado veio comprovar. Bem, fiquem lá então com o texto do Saraiva, pá, antes que eu comece a falar do Sócrates e do Durão:
17/03/10
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5 comentários:
Ainda bem, caro Miguel, que há quem decida não postar sempre sobre os Sócrates, Durões e etcs.
Belo post o seu e ainda melhor (sem ofensa ) texto de António José Saraiva.
Cumprimentos
Miguel Cardina: Texto interessante e com swing. Mas, se me permite, penso que concilia e "lima" muito o marxismo autoritário de António José Saraiva nos anos 60.Do meu singelo ponto de vista, AJ Saraiva - como Mário Sacramento,Jofre do Amaral Nogueira, Ilidio Sardoeira, breve, os amigos do círculo de Óscar Lopes e Armando de Castro no Porto-era um puro e duro jdanovista que " policiava " o Neo-Realismo e combatia por todos os meios os Surrealistas e os Presencistas da Segunda Geração, e experiências tão radicais e de teor dissidente como as de Vergílio Ferreira e Eduardo Lourenço, por exemplo.Depois de Maio 68, António José Saraiva deixou, liminarmente, de perceber o que é que alterou na
fenomenologia da teoria e da acção revolucionária. O livro-" Maio 68, a Crise..." é um fiasco imenso, à cotê de la plaque !. Niet
Obrigado, António. Qual ofensa qual quê, o meu texto era só um pretexto para meter aqui a crónica do A.J.Saraiva. Um abraço,
Há coisas com que às vezes vale a pena perder o nosso tempo. Dá um imenso prazer ler este texto do Saraiva. Recordo a minha mãe que me corrigia sempre que eu dizia "pá".
gracias pelo swing, niet! :-)
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