Quem lê
Vias de facto acompanha provavelmente a
situação social e política no Brasil – e os debates que ela suscita – através
da leitura de Passa Palavra. O texto «A
revolta e o seu duplo» faz parte de um conjunto que constitui o número de Agosto
de uma revista brasileira, Sinal de menos,
dedicado na sua totalidade ao movimento de Junho de 2013.
Paulo Marques pretende demonstrar que o que o que
ocorre no Brasil não é uma luta, mas várias lutas, algumas com conteúdos de
classe e anticapitalistas, mas outras, feitas pela classe média, expressam
conteúdos conservadores, quando não fascistas. Noutros termos, este movimento é
uma contradição em processo !
De assinalar, também neste mesmo número de « Sinal
de menos », dois artigos. Resistência
e o direito à cidade, de Daniel Cunha que descreve o movimento do Passe livre e do Bloco de luta pelo Transporte Público em Porto Alegre, « uma
das melhores concretizações dos protestos de Junho », « mostrando que
ele se imbrica em um mosaico mais amplo de lutas urbanas pelo direito à cidade
que questiona o modelo urbanístico e o consenso político estabelecidos. »
A mobilidade
do inferno proletário : a vida nos trens da hiperperiferia de São Paulo, de Claudio R. Duarte, « narra a vida do
proletariado urbano usurpada pelo tempo de transporte nos trens suburbanos da
Grande São Paulo. Ele apresenta um pouco do mal-estar social geral que veio a
furo com as Jornadas de Junho. »
A revolta e seu duplo
Entre
a revolta e o espetáculo
Vem,
Te direi em segredo
Aonde leva esta dança.
Vê como as partículas do ar
E os grãos de areia do deserto
Giram desnorteados.
Cada átomo
Feliz ou miserável,
Gira apaixonado
Em torno do sol.
- Rumi (1207-1273).
1) Prognósticos retardados de uma
crise.
Em 2008, durante um processo de formações políticas e
debates efetuado em sindicatos, arriscamos proceder a algumas previsões um
tanto imprevisíveis e vagas sobre a ulterior evolução nacional de um processo
de crise mundial que mal se deflagrava. Ante a análise do arrebentamento da
bolha imensa de capital fictício da economia norte-americana, que desnudaria a
crise estrutural do processo de valorização historicamente estreitado pelo
aumento do trabalho morto em relação ao trabalho vivo, nós prognosticávamos como
possibilidades reais postas aos movimentos sociais o próprio conjunto de
respostas capitalistas à crise: a tentativa de redução do valor da força de
trabalho; a inflação enquanto mecanismo intensificador da exploração e redução
indireta dos salários; a instituição e intensificação de uma acumulação predatória
com padrões de acumulação primitiva através de guerras, incluindo uma molecular
guerra civil urbana generalizada com despejos de comunidades; a intensificação da
especulação imobiliária e de um crescimento econômico guindado a créditos e
construção civil financiada a investimentos de capital fictício; aumentos dos preços de alimentos, energia, transportes e aluguéis;
aumento da repressão e contrôle social com
uma militarização progressiva da sociedade e um fascismo difuso; aumento da violência e formas de barbárie social de desintegração,
incluindo escaladas das violências
de gênero e racistas; a criminalização dos movimentos sociais e do protesto; a precarização maior das relações de trabalho; e a possível
fuga da consciência social de grupos
para discursos moralistas e salvacionistas de seitas religiosas ou a salvadores políticos fascistóides. Abria-se a Caixa de Pandora.1
O que não podíamos prever é que, com a crise, gerou-se um
momento de fuga dos capitais dos centros afetados para as periferias
capitalistas, intensificando o crescimento dos “BRICs” – o mecanismo auxiliar da mais-valia absoluta como válvula de escape sistêmica. No
caso brasileiro, após uma intensa onda de lutas contra as reformas
previdenciárias e de precarização trabalhista impostas pelo governo do Partido
dos Trabalhadores em 2007, ao ano de 2008 sucedeu o refluxo e intensa
desmobilização das lutas sociais, gerada pelo aumento do consumo a crédito e do
emprego precário, do assistencialismo social e certa ascensão de camadas mais
baixas da classe trabalhadora (paralela à precarização da classe média,
constituindo um nivelamento social “por baixo”). Um curto surto de crescimento
econômico no Brasil preencheu os poros de tempo social livre dos indivíduos com
mais trabalho e tempos gastos com estudo e qualificação, gerando uma imensa
fragmentação social dos coletivos e refluxo das lutas sociais. Reuniões,
assembléias e até saraus passaram a se esvaziar, enquanto todos estavam a
correr atrás de novos trabalhos e sobrevivência, ou mais estudo e qualificação.
O crescimento econômico gerado pela gestão de crise da tecnocracia petista
desmobilizou as lutas sociais e retirou o povo das ruas, além de aniquilar as
oposições sindicais e greves. Paralelamente, inchavam os cargos de
sindicalistas no aparelho de estado; as ações e compras de fundos de pensão por
sindicatos; a cooptação de lideranças de movimentos sociais; a formação de
estratos de novos ricos de uma tecnocracia de “esquerda” rival da anterior
tecnocracia tucana pela gestão do mesmo; a cooptação e burocratização de
ativistas sociais e culturais em políticas de integração capitalística da arte
e cultura via financiamento estatal. O “Espetáculo do Crescimento” trouxe o
marasmo social.
[-] www.sinaldemenos.org
2) O Crescimento do Espetáculo.
Porém, este surto de crescimento era efêmero, fenômeno de
crise global e da fuga dos capitais para locais de predomínio da modalidade de
exploração de mais-valia absoluta e trabalho precário, e guindado a crédito.
Não possuía qualquer base estrutural sólida, apesar dos pesados investimentos
do governo federal em obras de infraestrutura do PAC e IIRSA2, e o alarde sobre a descoberta de jazidas de petróleo,
configurando um desenvolvimentismo a crédito e um incipiente projeto de
imperialismo brasileiro sobre a América do Sul e África Ocidental guindado a
capitais de empreiteiras e apoio de figuras como Eike Batista e Edir Macedo. O
crescimento do espetáculo teve vida curta, e gerou considerável intensificação
da exploração do trabalho e da violência contra as periferias e povos
indígenas. Enfim, a crise chegaria ao Brasil.
Com a eclosão e rápida disseminação do atual ciclo mundial
de lutas sociais pela Europa, Mundo Árabe, Estados Unidos, Índia, Indonésia e
muitos outros países, esta onda de lutas e suas formas organizativas peculiares
haveriam de afinal chegar às terras tupiniquins - embora em formas nada
autóctones, mas muito globalizadas e replenas de contradições.
Com o progressivo fim do crescimento, apenas no primeiro
semestre de 2013, a
Bovespa teve perdas variantes de 22
a 25%, e analistas apontavam senão uma estagnação, um
possível risco de crescimento negativo - o "pibinho" de Mantega principiava
a derreter. A inflação, bem mascarada pela imprensa, chega afinal aos dois
dígitos; o preço do pão chega ao absurdo de entre cinco e seis reais o quilo, a
batata de quatro a cinco reais o quilo, além do preço de ovos e outros gêneros
alimentares populares como tomates irem às nuvens. E sobreveio então a onda de
aumento de preços de transportes.
Como prevíamos, o valor da força de trabalho começou a ser
atacado e devorado por uma inflação geral, que está no estopim das revoltas
sociais – fato também quase nunca mencionado pela imprensa. Além disso, as
obras da Copa do Mundo fizeram extrapolar os despejos de comunidades e a
violência policial contra as favelas; as obras desenvolvimentistas do PAC e
IIRSA deflagraram um verdadeiro terrorismo do
desmatamento predatório e tomada de terras indígenas por
barragens – além do ataque dos fazendeiros e do agronegócio, tão fomentado pelo
governo federal, às terras indígenas. A onda de lutas sociais autônomas já
começa subterraneamente em fins de 2010 e em 2011, com as imensas greves selvagens
nas obras do PAC, a começar pela hidroelétrica de Jirau, parando mais de
oitenta mil trabalhadores, forçados a se autoorganizar às margens de um
sindicalismo governista e pelego que corroborava a exploração – iniciava-se uma
série de greves que se extende até o presente momento. Houve relatados e mal
esclarecidos desaparecimentos, prisões e torturas de grevistas em áreas
amazônicas de canteiros de obras. Sindicalistas iam de carro oficial pedir aos trabalhadores
que não parassem as obras do PAC. Tais obras estavam sendo guindadas a trabalho
semi-escravo, com direito a falta de banheiros e surtos de malária, além de verdadeiras
prisões de exploração de mulheres em prostituição ao redor dos canteiros.
Além do mais, uma “primavera indígena” de lutas, também
pouco midiatizada, se sucede, desde as lutas no sul da Bahia e os episódios
quase palmarianos de cacique Babau3 (que foi
preso), além da tragédia dos assassinatos e suicídios de índios guaranikaiowá (curiosamente,
muitas vezes “atropelados” em estradas de terra) em Mato Grosso do Sul.
Além disso, greves também ocorreram nas obras da Copa, em diversos estádios –
por vezes motivada até por comida podre4 servida
aos operários. Uma característica fundamental de todas estas lutas, muito pouco
faladas pela imprensa golpista, e ainda menos pela imprensa governista, é sua
acentuada autonomia de organização em relação aos sindicatos burocráticos e
partidos políticos institucionais. Jornalistas enfocam apenas as
reivindicações, e raras menções são feitas ao fato de os trabalhadores estarem
a se organizar à margem do sindicalismo oficial – como ocorre também com greves
de motoristas e cobradores de ônibus em muitas cidades. Ao ataque ao valor da
força de trabalho, sucedeu a resposta do proletariado.5