Já aqui referi as diferentes dimensões do debate suscitado pelas revelações. Le Corbusier tinha uma visão sobre a sociedade e sobre a necessidade de a transformar. Isso parece indiscutível. A importância que atribuía ao urbanismo como disciplina que possibilitava essa transformação é, talvez, a mensagem mais forte de todo o seu trabalho e, curiosamente, a mais ignorada. Na Academia o Le Corbusier-arquitecto anula completamente o Le Corbusier-urbanista. Essa opção política permite perpetuar o mito do "arquitecto enquanto artista" a menos de qualquer reflexão sobre as reais consequências sociais da sua obra. Perpetua-se, assim, a ideia profundamente política do pretenso carácter apolítico do urbanismo e da arquitectura.
A discussão sobre a dimensão urbanística do seu trabalho limita-se à difusão da ideia errada de que teve um carácter pioneiro ou mesmo percusor do urbanismo e do planeamento urbanístico. Trata-se de um disparate já que pretende ignorar séculos de história e em particular a importância que o urbanismo desempenhou ao longo da evolução e transformação da sociedade. O nosso jornalismo de "referência", depois do Público ter vedado as suas páginas ao debate público sobre o urbanismo, "aborda" estas questões numa sofisticada lógica "Life&Style".
O crescimento das cidades fez-se, como está historicamente comprovado, por processos "orgânicos" - que não podem ser associados a processos caóticos, já que lhes presidia uma ideia de cidade - e por processos "racionais", segundo um Plano e uma ideia previamente definida. Um dos melhores exemplos que nos permite comparar, no mesmo território, a cidade orgânica com a cidade racional é a Baixa Pombalina de antes e depois do terramoto de 1755. Para isso podemos comparar a planta de 1650 com o Plano de Eugénio dos Santos e Carlos Mardel.
Conhecemos Planos Urbanísticos desde a Grécia e a Mesopotâmia até aos nossos tempos. O Plano de Mileto com a aplicação intensiva da quadrícula, atribuído ao arquitecto Hippodamus de Mileto, ou as inovações ao esquema-base das cidades gregas introduzidas em Pérgamo, dão-nos testemunho dessa cultura secular e da sua evolução. Podemos falar do período Barroco e dos príncipios que caracterizam o seu urbanismo: a linha recta, a perspectiva monumental e a uniformidade, tornados possíveis pela descoberta da perspectiva no Renacimento. Recorde-se que data dessa altura histórica a emergência do conceito de cidade capital e o fim da itinerância do poder político, com a criação da estrutura dos modernos Estados centralistas e hierarquizados, e a menorização da importância dos poderes regionais e locais. A lei, a ordem e a uniformidade são para Mumford os produtos essenciais da cidade barroca. A cidade concebida como vista com o palácio no ponto focal, que coincide com a organização monárquica do Estado, cuja inspiração se encontra na concepção do Jardim de Vaux Le Vicomte, projectado por André Le Nôtre para Nicolas Fouquet.
Podemos falar da expansão de Barcelona nos meados do século XIX com o Plano de Cerdá, imposto em 1859 pelo Rei, com a extensão da quadrícula e a investigação sobre a recriação do quarteirão. Plano que foi acompanhado pela publicação da "Teoria General de la Urbanización" em que, pela primeira vez, se introduz uma dimensão sociológica na abordagem ao desenho da cidade. Podemos referir a Paris de Haussmann, ou as Avenidas Novas de Ressano Garcia ou o Urbanismo formal de Faria da Costa aplicado com sucesso nos Bairros de Alvalade e do Areeiro.
Ao longo de quase um século, como salientou José Lamas, foram banidas da Universidade as obras fundamentais dos tratadistas do século XX, como Joseph Stubben, Camillo Sitte ou Raymond Unwin. Como terá sido possível que obras como ""Town Planning in Practice" (Unwin) e "L´Art de Bâtir les Villes. L´urbanisme selon ses fondements artistiques"(Sitte) tenham ficado quase um século sem serem reeditados e sem que sucessivas gerações de estudantes tivessem sequer sabido da sua existência?
O urbanismo do movimento moderno pretendeu fazer tábua rasa de todos esse conhecimento anterior. Essa, que parecia ser a sua força maior, revelou-se a sua principal fraqueza. No final da Segunda-Guerra Mundial, quando a derrota nazi se concretizou, Le Corbusier terá tido a certeza que o seu Plano Voisin - cujo nome nada tem a ver com o conceito de unidade de vizinhança mas que se deve ao facto de ter sido financiado pelo industrial construtor de automóveis VOISIN, que aspirava a tornar-se um importante construtor civil - para uma cidade de 3 milhões de habitantes, que ele ambicionava construir sobre os escombros de Paris a norte do Sena, nunca iria ser construído. Rapidamente mudou de lado como refere Antonhy Flint: "(...) Le Corbusier had grander ambitions than simply designing for wealthy clients. During World WarII, he nimbly allied himself with the Vichy government, hoping to redesign Paris after the war´s destruction; in 1945, he easily - and with no reprercussions - switched sides.(...)". Le Corbusier acreditou que a guerra e a vitória dos nazis lhe forneceria a oportunidade de concretizar o seu Plano, já terminado desde 1925. Mas, sabe-se hoje, sonhava que a vitória de Hitler lhe permitiria ter uma palavra a dizer na reconstrução da Europa. Isso mesmo escreveu numa carta à mãe em que assumia as suas simpatias por Hitler, carta essa cuja descoberta esteve na base da contestação a uma campanha publicitária do banco suiço UBS, em 2010. Escreveu ele à mãe: “Se for sério em suas declarações, Hitler pode coroar sua vida com uma obra magnífica: a reconstrução da Europa”.
A importância da guerra na ascensão do fascismo foi abordada por Benjamin a propósito de Marinetti e do Manifesto Futurista. Marinetti defendia que "a guerra é bela porque fundamenta o domínio do homem sobre a maquinaria subjugada, graças às máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-chamas e pequenos tanques.(...) A guerra é bela porque cria novas arquitecturas como a dos grandes tanques, a da geometria dos aviões em formação, a das espirais de fumo das aldeias a arder(...)" Neil Leach, mais recentemente, denuncia este mesmo espírito na obra do arquitecto americano Lebbeus Woods, que, a propósito da destruição de Sarajevo, escreveu no seu livro War and Architecture : " A guerra é arquitectura e a arquitectura é guerra. Estou em guerra contra o meu tempo, contra a História, contra toda a autoridade das formas imutáveis e receosas.(...) As fendas nas paredes e nos telhados, os pisos criados pelas explosões e pelo fogo são formas e figuras complexas, únicas na sua história e significado. Não há duas iguais e, contudo, todas partilham de um aspecto comum: são o resultado dos efeitos imprevisíveis das forças libertadas nos riscos calculados da guerra. São o começo de novas formas de pensar, viver e desenhar o espaço que nascem da individualidade e da invenção.(...)"
Como refere Leach, Woods não "é obviamente o único a considerar que as formas arquitectónicas podem, em certo sentido, determinar o comportamento humano, e que os bons projectos contribuem para um mundo melhor. Esta é uma suposição - um mito - que percorre toda a história do discurso da arquitectura." . O autor refere a análise de Foucault em torno do panóptico de Bentham para sustentar que não é a forma que condiciona os comportamentos, mas o diferencial de poder entre guardas e prisioneiros. A organização eficaz do espaço, a que a arquitectura pode aspirar, sustenta apenas o exercício desse poder já existente.
A obra urbanistica de Le Corbusier pode e deve ser lida à luz dessas relações. O maior conhecimento sobre o seu posicionamento ideológico abre o caminho para essa importante reflexão.
Há quem associe os CIAM - Congressos Internacionais da Arquitectura Moderna - a Le Corbusier. Na realidade, como refere Lamas, apenas durante a segunda fase dos congressos - a que vai de 1933 a 1947 - essa sua influência é indiscutível. No quarto congresso em 1933, realizado a bordo do navio Patris, numa viagem entre Atenas e Marselha, ele escreve a Carta de Atenas que vai exercer uma influência enorme sobre a cultura urbanística do período seguinte. A recusa da rua corredor, a defesa do zonamento com a separação espacial entre as funções urbanas, vão ter efeitos enormes na vida de milhões de cidadãos. Antes, nos três primeiros congressos, o tema de debate tinha sido o problema habitacional, com base nas experiências de Ernest May em Frankfurt, antes da ascensão do nazismo, e de Karl Elm em Viena, com o famoso Karl Marx Hoff para 5 mil habitantes, construído em 1927. A terceira fase inicia-se em 1947 e fica marcada pela recusa das ideias fortes da carta de Atenas, com a critica à abstracta cidade funcional a que se segue uma critica às formas urbanas modernas e a defesa da recuperação dos espaços da cidade tradicional. Mas foram as ideias funcionalistas que prevaleceram nas décadas seguintes transformadas naquilo que Lamas chamou o Urbanismo operacional.
Na Carta de Atenas a propósito do zonamento defendia Le Corbusier o seguinte: "Le zonage est l´opération faite sur un plan de ville dans le but d´attribuer à chaque fonction et à chaque individu sa juste place. Il a pour base la discrimination nécessaire entre les diverses activités humaines réclamant chacune leur espace particulier: locaux d´habitation, centres industriels ou comerciaux, salles ou terrains destinés aux loisirs ... Les fonctions clefs auront chacune leur autonomie, appuyées sur les données fournies par le climat, la topografhie, les costumes; elles seront considérées comme des entités auxquelles seront attribués des territoires et des locaux pour l´équipement et l´installation desquels toutes les prodigieuses ressources des techniques modernes seront mises en oeuvre."
Há muita gente que defende a ideia de que radica aqui o urbanismo de separação e de segregação que culminou na cidade neoliberal das últimas décadas. Mesmo os que entendem, e são muitos, que a proposta de Le Corbusier era bem intencionada, não podem ignorar que experiências como "les grands ensambles" geraram uma segregação espacial associada à habitação. Foi para os "grands ensambles" periféricos e destituídos de urbanidade - "máquinas de habitar" isoladas, segregadas - que foram conduzidas as populações mais desfavorecidas. Tratou-se, paradoxalmente de, através do acesso à habitação, negar aos proletários o direito à cidade.
PS- Ver "Morfologia Urbana e Desenho da Cidade" de José Lamas - FCG de 1992 e
"Les mécanismes fonciers de la ségregation". Vários. ADEF.