31/03/14
Grécia - a polémica do leite fresco
por
Miguel Madeira
Resumo: uma das exigências da troika é que a Grécia mude a definição de "leite fresco", alterando de 3 para 11 dias o prazo durante o qual o leite pode ser considerado "fresco" (já que se considera que o prazo de 3 dias é uma forma indirecta de fechar o mercado ao leite de outros países da UE, porque assim não dá tempo para o leite importado chegar à Grécia).
- After “Expired Food” at Greek Supermarkets, Time for “Expired Milk”!!! (2013/10/16)
- Greek Food Minister Dismisses Claims of “Expired Milk” at Supermarkets (2013/10/16)
- Greece’s coalition government at risk to drown in “fresh milk” (2014/03/21)
- Greek Minister resigns over Milk Reform… and nobody notices (2014/03/30)
Via Keep Talking Greece - é também interessante seguir a evolução do assunto ao longo dos meses, começado como boato desmentido oficialmente e acabando como proposta aprovada
30/03/14
A Receita Bósnia
por
Jorge Valadas
Presentemente, instala-se na Ucrânia o pior dos cenários. Entretanto, as ressonâncias do movimento social que se iniciou na Bósnia-Herzegovinano início de mês de Fevereiro continuam a ter dificuldade em fazer-se ouvir*.
A perspectiva de mais um confronto nacionalista na Europa, desta vez na Ucrânia, não parece desagradar aos senhores do mundo e aos seus escribas. A febre patriótica que se foi instalando pouco a pouco, desde a praça Maidan até à Crimeia, veio assim desviar e abafar as poucas aspirações emancipadoras que se haviam manifestado na revolta popular contra um sistema de salteadores corruptos. O que era previsível e possível tornou-se inevitável, terrível.
As coisas apresentam-se diferentes, pelo menos até agora, na revolta que agita a Bósnia-Herzegovina. Este movimento começou na primeira semana de Fevereiro com manifestações de trabalhadores contra as consequências das privatizações e o aumento do desemprego. Estas ocorreram em Mostar e sobretudo em Tuzla, cidade industrial de espírito contestatário, com uma tradição de luta que vem desde a época «socialista» –Tuzla foi um dos raros locais em que, nos piores momentos da guerra na década de 1990, a loucura nacionalista teve poucos adeptos.
Uma testemunha destas primeiras manifestações fazia notar que «se viam [nessas manifestações],lado a lado, trabalhadores pobres ou com salários em atraso, grevistas ocupantes de empresas cuja direcção tinha desaparecido com o dinheiro, muitos desempregados e alguns estudantes na antecâmara do desemprego, aos quais se juntava notoriamente, e na linha da frente, toda a juventude» (1). A revolta espalhou-se a outras cidades, para finalmente abarcar toda a Bósnia-Herzegovina, tendo-se verificado inclusivamente algumas manifestações de solidariedade na Croácia, na Macedónia e na Sérvia. Uma contaminação preciosa e entusiasmante. Com efeito, embora o cenário ucraniano pareça confirmar esse velho determinismo burguês segundo o qual toda a revolta conduz a novas opressões, o exemplo da Bósnia-Herzegovina mostra, pelo contrário, que é o conteúdo social de uma revolta que limita ou amplia as suas possibilidades.
É assim que, desde há quase dois meses, florescem, nesta região dos Balcãs, mobilizações, greves, ocupações e experiências de auto-organização (2). Este movimento determinado e criativo fez incidir essencialmente a sua crítica prática no nacionalismo e na classe política instalada, bem como na procura de formas de representação de tipo novo, objectivos estes que se encontram intimamente ligados. De facto, a reorganização da vida social é uma necessidade que responde a esse longo processo de destruição da economia local e de empobrecimento da sociedade a que a novilíngua neoliberal chama «política de privatizações».
Na Bósnia-Herzegovina, essa política começou por volta de 1989, sob os auspícios do FMI e do Banco Mundial – lembremos que o economista-chefe deste último era na altura Joseph Stiglizt, hoje reciclado em mentor de uma esquerda à procura de mentores. Nesses anos, as privatizações e as restruturações despediram então centenas de milhares de proletários, transformados a seguir em presas fáceis da carnificina inter-étnica da década de 90. Os acordos de Dayton, em 1995, puseram fim ao massacre e selaram o processo de desmembramento do país em entidades nacionais, tão fáceis de governar como de pilhar pelos diversos clãs nacionalistas que se constituíram como novas classes dirigentes. Tudo sob a protecção de centenas de burocratas e funcionários internacionais, bem como de milhares de representantes de ONG, todos encarregados de assegurar o respeitável «negócio da paz», e generosamente remunerados para isso. O Estado bósnio tornou-se um protectorado do capitalismo ocidental, a tal ponto que um arguto observador da situação local não hesita em escrever que a instauração de uma «economia predadora não foi um efeito colateral da guerra, mas o seu objectivo» (3).
Passadas duas décadas, a situação é catastrófica–economia exangue, destruída e pilhada por um Estado falido e corrupto, sob o olhar protector e cúmplice das democracias ocidentais. Neste cenário de desolação, o clientelismo étnico substitui o estado social e «a submissão às segregações étnicas revela-se a única estratégia de sobrevivência» (4). Resultado: «As pessoas que vivem [actualmente] na Bósnia conhecem bem melhor o significado de mercado livre do que qualquer estudante ocidental de economia» (5). E é precisamente este conhecimento concreto, quotidiano, que activa a revolta actual.
A perspectiva de mais um confronto nacionalista na Europa, desta vez na Ucrânia, não parece desagradar aos senhores do mundo e aos seus escribas. A febre patriótica que se foi instalando pouco a pouco, desde a praça Maidan até à Crimeia, veio assim desviar e abafar as poucas aspirações emancipadoras que se haviam manifestado na revolta popular contra um sistema de salteadores corruptos. O que era previsível e possível tornou-se inevitável, terrível.
As coisas apresentam-se diferentes, pelo menos até agora, na revolta que agita a Bósnia-Herzegovina. Este movimento começou na primeira semana de Fevereiro com manifestações de trabalhadores contra as consequências das privatizações e o aumento do desemprego. Estas ocorreram em Mostar e sobretudo em Tuzla, cidade industrial de espírito contestatário, com uma tradição de luta que vem desde a época «socialista» –Tuzla foi um dos raros locais em que, nos piores momentos da guerra na década de 1990, a loucura nacionalista teve poucos adeptos.
Uma testemunha destas primeiras manifestações fazia notar que «se viam [nessas manifestações],lado a lado, trabalhadores pobres ou com salários em atraso, grevistas ocupantes de empresas cuja direcção tinha desaparecido com o dinheiro, muitos desempregados e alguns estudantes na antecâmara do desemprego, aos quais se juntava notoriamente, e na linha da frente, toda a juventude» (1). A revolta espalhou-se a outras cidades, para finalmente abarcar toda a Bósnia-Herzegovina, tendo-se verificado inclusivamente algumas manifestações de solidariedade na Croácia, na Macedónia e na Sérvia. Uma contaminação preciosa e entusiasmante. Com efeito, embora o cenário ucraniano pareça confirmar esse velho determinismo burguês segundo o qual toda a revolta conduz a novas opressões, o exemplo da Bósnia-Herzegovina mostra, pelo contrário, que é o conteúdo social de uma revolta que limita ou amplia as suas possibilidades.
É assim que, desde há quase dois meses, florescem, nesta região dos Balcãs, mobilizações, greves, ocupações e experiências de auto-organização (2). Este movimento determinado e criativo fez incidir essencialmente a sua crítica prática no nacionalismo e na classe política instalada, bem como na procura de formas de representação de tipo novo, objectivos estes que se encontram intimamente ligados. De facto, a reorganização da vida social é uma necessidade que responde a esse longo processo de destruição da economia local e de empobrecimento da sociedade a que a novilíngua neoliberal chama «política de privatizações».
Na Bósnia-Herzegovina, essa política começou por volta de 1989, sob os auspícios do FMI e do Banco Mundial – lembremos que o economista-chefe deste último era na altura Joseph Stiglizt, hoje reciclado em mentor de uma esquerda à procura de mentores. Nesses anos, as privatizações e as restruturações despediram então centenas de milhares de proletários, transformados a seguir em presas fáceis da carnificina inter-étnica da década de 90. Os acordos de Dayton, em 1995, puseram fim ao massacre e selaram o processo de desmembramento do país em entidades nacionais, tão fáceis de governar como de pilhar pelos diversos clãs nacionalistas que se constituíram como novas classes dirigentes. Tudo sob a protecção de centenas de burocratas e funcionários internacionais, bem como de milhares de representantes de ONG, todos encarregados de assegurar o respeitável «negócio da paz», e generosamente remunerados para isso. O Estado bósnio tornou-se um protectorado do capitalismo ocidental, a tal ponto que um arguto observador da situação local não hesita em escrever que a instauração de uma «economia predadora não foi um efeito colateral da guerra, mas o seu objectivo» (3).
Passadas duas décadas, a situação é catastrófica–economia exangue, destruída e pilhada por um Estado falido e corrupto, sob o olhar protector e cúmplice das democracias ocidentais. Neste cenário de desolação, o clientelismo étnico substitui o estado social e «a submissão às segregações étnicas revela-se a única estratégia de sobrevivência» (4). Resultado: «As pessoas que vivem [actualmente] na Bósnia conhecem bem melhor o significado de mercado livre do que qualquer estudante ocidental de economia» (5). E é precisamente este conhecimento concreto, quotidiano, que activa a revolta actual.
26/03/14
O estado da caridade
por
Luis Rainha
Este país é mesmo um coio de invejosos de vistas curtas. Agora, anda a populaça indignada com os vencimentos da comissão instaladora do novo banco estatal: meros 500 mil euros por ano e lá se ergue a cambada miserabilista em pé de guerra.
Mas esquecem-se do âmbito social e solidário da medida: dois dos agraciados vêm do BCP e do BPI, bancos tremidos que há meses amputaram os seus salários. Outro carrega ainda o estigma de se ter visto embrulhado, por certo sem culpa, nas desgraças da SLN. O futuro chefe da coisa labutava num fundo de investimento ligado ao sector da construção – o que não se afigura como carreira lá muito prometedora.
Assim sendo, quem sabe a que misérias escaparam as pobres almas agora acolhidas pelo bom Estado?
Esta caridade também abarcou um reformado da Opus Dei, que se eximiu ao pagamento de uma verba absurda em multas. O infeliz estava na iminência de ter de desistir dos seus passeios de helicóptero... caramba, queriam que o senhor se arrastasse por aí de Rolls?
Outros fadados à indigência, como o ex-mecenas das Artes do BPP e o ex-mecenas da alcateia laranja do BPN, já tomaram lugar na fila das prescrições.
Se calhar, serão atendidos, tendo em vista que a nossa procuradora-geral manifesta há muito, segundo um juiz do Tribunal de Contas, uma certa queda para a “lentidão inadmissível”. Dir-se-ia escolhida a dedo para espalhar a misericórdia estatal; uma espécie de Madre Teresa de banqueiros e políticos.
Bem haja quem tem esta arte de colocar as pessoas certas nos lugares adequados!
25/03/14
23/03/14
22/03/14
Proteccionismo e liberalismo
por
Miguel Madeira
Ali em baixo, o Zé Neves escreve «haveria que perguntar se entre o proteccionismo de Hamilton e o liberalismo económico de dirigentes e pensadores norte-americanos que se lhe seguiram existem pontos em comum e não apenas diferenças. Na verdade, quando se diz - e bem - que o universalismo do livre-cambismo é em boa medida a "falsa consciência" do nacionalismo dos mais fortes, estamos já a admitir a possibilidade de continuidade entre proteccionismo e liberalismo sob a égide de um nacionalismo económico. Por este podemos compreender não apenas os proteccionismos mais autárcicos mas também o mais expansionista e imperialista defensor do livre-cambismo.»
No caso norte-americano, nem é preciso fazer uma análise muito aprofundada para descobrir isso - porque essa continuidade do proteccionismo para o liberalismo é claramente visível ao nível das políticas do mesmo partido ao longo das décadas: o Partido Republicano (mantendo sempre o carácter de um partido nacionalista e ligado à alta burguesia financeira e industrial - contra a aliança entre latifundiários esclavagistas, classes trabalhadoras e imigrantes representada pelos Democratas) foi durante décadas o partido "hamiltoniano", defensor do proteccionismo e do que chamaríamos "políticas de desenvolvimento industrial" para, a partir da segunda metade do século XX, se tornar o partido do "mercado livre", e isto sem nunca deixar de ser o favorito de Wall Street.
No caso norte-americano, nem é preciso fazer uma análise muito aprofundada para descobrir isso - porque essa continuidade do proteccionismo para o liberalismo é claramente visível ao nível das políticas do mesmo partido ao longo das décadas: o Partido Republicano (mantendo sempre o carácter de um partido nacionalista e ligado à alta burguesia financeira e industrial - contra a aliança entre latifundiários esclavagistas, classes trabalhadoras e imigrantes representada pelos Democratas) foi durante décadas o partido "hamiltoniano", defensor do proteccionismo e do que chamaríamos "políticas de desenvolvimento industrial" para, a partir da segunda metade do século XX, se tornar o partido do "mercado livre", e isto sem nunca deixar de ser o favorito de Wall Street.
Ainda sobre Alexander Hamilton
por
Zé Neves
Ambos particularmente versados na história do pensamento económico, Francisco Louçã e João Rodrigues vieram atempadamente recordar Vítor Gaspar do seguinte: o ex-ministro não deveria apenas levar em linha de conta que Alexander Hamilton era crítico de tendências de endividamento, mas também que Hamilton era um defensor do recurso a políticas proteccionistas. Nada contra os comentários de Louçã e Rodrigues, mas o caso de Hamilton é também uma boa oportunidade para questionar os limites de uma política económica antiliberal que se baseie numa estratégia nacional. É que, apesar de não devermos considerar a política económica norte-americana como uma realidade histórica homogénea, haveria que perguntar se entre o proteccionismo de Hamilton e o liberalismo económico de dirigentes e pensadores norte-americanos que se lhe seguiram existem pontos em comum e não apenas diferenças. Na verdade, quando se diz - e bem - que o universalismo do livre-cambismo é em boa medida a "falsa consciência" do nacionalismo dos mais fortes, estamos já a admitir a possibilidade de continuidade entre proteccionismo e liberalismo sob a égide de um nacionalismo económico. Por este podemos compreender não apenas os proteccionismos mais autárcicos mas também o mais expansionista e imperialista defensor do livre-cambismo. E, enfim, este tipo de problema poderia replicar-se para o debate em torno de List e do pensamento económico alemão.
21/03/14
No Dia Mundial da Poesia
por
Miguel Serras Pereira
Todo o tempo ao passar
Abandono ao teu sono
abandonado ao mar
como se não sei como
todo o tempo ao passar
abrisse como tu
tão sem lugar nem fundo
a própria fonte em tudo
do sem-fundo do mundo
Abandono ao teu sono
abandonado ao mar
como se não sei como
todo o tempo ao passar
abrisse como tu
tão sem lugar nem fundo
a própria fonte em tudo
do sem-fundo do mundo
20/03/14
Tempo de falarmos um pouco de “corte de cabelo”
por
Miguel Madeira
Um aspecto interessante do blog "Blasfémias" é que, no fim de cada post, aparece uma lista (suponho que gerada automaticamente), de outros posts sobre o mesmo tópico.
Assim, os posts relacionados com a reestruturação da dívida tendem a remeter para este post de 2011 do José Manuel Fernandes, «Tempo de falarmos um pouco de “corte de cabelo”. E não de “resgate”»:
Infelizmente, ou talvez não, nunca se conseguirá cortar o suficiente nas despesas, e suficientemente depressa, para conseguir acertar as contas do défice, pagar os juros, começar a amortizar nos nossos gigantescos empréstimos (públicos e privados) e ainda inverter a tendência para continuar a aumentar impostos. Por isso, se queremos ter margem para introduzir reformas pró-crescimento, temos, como defende o Wall Street Journal, de reestruturar a dívida. Para muitos economistas a nossa situação é tal que teremos sempre que fazê-lo, com ou sem reformas – é ler, por exemplo, a entrevista a este jornal, na quarta-feira, de Barry Eichengreen, um ex-consultor do FMI considerado pela The Economistcomo um dos cinco economistas com ideias mais importantes para a pós-crise. Na sua opinião “usar dinheiro do Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira e do FMI para’adocicar’ o acordo com os detentores de obrigações, de modo a fazer esta reestruturação da forma mais ordeira possível, seria melhor do que outro empréstimo de resgate, como os empréstimos iniciais à Grécia e à Irlanda, que negam a necessidade de reestruturação”. Rogoff tem defendido o mesmo.
Mesmo assim falar de reestruturação da dívida continua a ser falar de um tabu. Nenhum político nem nenhum banqueiro quer sequer tocar no assunto. E se se percebe a aversão dos banqueiros – reestruturar a dívida significa deixar de pagar, ou pagar mais tarde, aquilo que devemos –, a aversão dos políticos só se compreende por estes, aqui como em Bruxelas ou em Atenas, se terem especializado em negar a realidade para, julgam eles, não assustarem “os mercados”.
Na gíria dos economistas estas operações de reestruturação têm o curioso nome de “haircut” (corte de cabelo) e significam que os credores assumem como perdida parte dos empréstimos que fizeram. Na prática isso significa, como se escrevia num papper do think tank inglês Open Europe, uma transferência de parte dos custos da austeridade portuguesa dos já muito penalizados cidadãos nacionais para os credores, enviando-lhes também a mensagem de que devem ser mais prudentes quando financiam países estruturalmente deficitários como o nosso. Há muita justiça neste raciocínio, pelo que se pergunta: porque não de discute mais abertamente o cenário de uma reestruturação da dívida, única forma de a nossa economia recuperar algum espaço de respiração?
Julgo que por uma razão psicológica – reestruturar a dívida implica uma bancarrota parcial, e desde 1890 que Portugal não se vê em tal situação – e por o tema desagradar aos nossos credores, com a Espanha e a Alemanha à cabeça. Porém, se este “corte de cabelo” for trabalhado em conjunto com a Irlanda e a Grécia, que já estão a pedir a renegociação das condições dos respectivos resgates, Portugal conseguiria evitar o pior dos problemas, uma reacção muito negativa dos mercados. De resto, depois do que se passou esta semana, é difícil imaginar o que de pior nos poderá acontecer. Mau, mau será ir ao mercado durante o mês de Abril continuando a não olhar ao preço insustentável do dinheiro e fazendo apenas juras de que não necessitamos nem de ajuda, nem sequer de um amparo. Já chega de adiar soluções e tornar cada vez mais difícil uma saída sustentada da crise. Já basta, e cito uma imagem do diário espanhol ABC, de continuar a conduzir pela faixa errada da auto-estrada jurando que todos os outros é que estão enganados.
Mais luz, por favor !
por
Jorge Valadas
Acaba de sair da tipografia o numero 2 da Flauta
de Luz.
A revista pode ser obtida nas boas livrarias mas também
escrevendo para :
Flauta
de Luz ¤ Boletim de Topografia
Painel
da Antiqueira, 39 – Vargem
7300-430
Portalegre
Este numero conta com as seguintes colaborações : Júlio Henriques ► Novos
descobrimentos portugueses - Óscar Faria ► Bolor - Miguel Teotónio Pereira ► Crónica da
crise - Jorge Valadas ► Anti-amnésia (sobre a historia dos Cadernos de Circunstância) - Jorge
Valadas ►
A versão dos vencedores - Jacques Ellul ► Autonomização da Técnica
Christian
Ferrer ►
In memoriam: os ludditas - Os Amigos de Ludd ► George Orwell, crítico da
Máquina - Para uma antologia da poesia ameríndia contemporânea - Quim Sirera ► O Encontro
de Vícam - Georges Lapierre e Quim Sirera ► Indigenismo e comunalidade - Paulo
Barreiros ►
O espírito da terra - Joëlle Ghazarian ► Peter Watkins, nómada do cinema
- Vítor Silva Tavares / Óscar Faria ► Lembrando Manuel João Gomes - Júlio
Henriques ►
Triunfo da neoparolice
18/03/14
Quand viendra-t-elle ?
por
Miguel Serras Pereira
Uma canção para a Comuna. Dedicada por Eugène Pottier, seu autor, ao "cidadadão Mijoul". Na interpretação de Marcel Mouloudji.
As mulheres foram as primeiras
por
Ricardo Noronha
Thiers não se apercebeu de nada, nem da desafeição de todas as classes, nem da irritação dos bairros populares. Estava muito acima da sua política contemporizar, desarmar Paris por meio de concessões e, através da grande cidade, neutralizar os rurais. O seu desprezo pelo povo fez o resto. Pressionado pelo fim do prazo no dia 20, lançou-se à aventura, reuniu o conselho a 17 e, sem consultar os autarcas como fora prometido, sem ouvir os chefes dos batalhões burgueses, que nessa mesma noite afirmavam não poder contar com os seus homens, este governo, incapaz de prender os 25 membros do Comité Central, deu ordem para surripiar 250 canhões guardados por Paris inteira. A execução da ordem foi tão tola como a ideia.As mulheres foram as primeiras, como nos dias da Revolução. As do 18 de Março, castigadas pelo cerco – tinham tido dupla ração de miséria – não esperaram pelos seus homens. Rodeiam as metralhadoras e interpelam os chefes da peça. De repente, toca a reunir. Uns Guardas Nacionais descobriram dois tambores num posto e percorrem o 18º arrondissement. Às oito horas, são já 300 oficiais e guardas que sobem o boulevard.O General Lecomte, rodeado, ordena fogo três vezes mas os seus homens continuam com a arma a tiracolo. A multidão concentra-se, confraterniza e prende Lecomte e os seus oficiais. Três tiros de canhão de pólvora seca anunciam a Paris a reconquista das colinas. Às onze horas, o povo venceu a agressão em toda a linha, conservando quase todos os canhões – as atrelagens só levam dez – e ganhando milhares de espingardas. Os batalhões federados estão de pé; os bairros populares são descalcetados.Só na manhã seguinte Paris soube da vitória. Que mudança de cenário, mesmo depois das inúmeras encenações daqueles sete meses de drama! A bandeira vermelha flutua no Hôtel-de-Ville. Exército, Governo e Administração evaporaram-se com a neblina matinal. Dos confins do Faubourg Sant-Antoine, da obscura Rua Basfroi, o Comité Central é projectado para o comando de Paris à vista de todos. O que fez a honra e a salvação do Comité foi ter apenas uma preocupação: restituir o poder a Paris. Felizmente era composto de recém-chegados sem passado nem pretensões políticas, muito pouco preocupados com sistemas. Os seus nomes, com a excepção de três ou quatro, só eram conhecidos graças aos cartazes afixados nos últimos dias. Desde a manhã de 10 de Agosto de 1792, nunca Paris vira um tal surto de desconhecidos. E contudo, os seus avisos são respeitados e os seus batalhões circulam livremente, ocupam sem resistência todos os postos: à uma hora os ministérios das finanças e do Interior, às duas horas os da Marinha e da Guerra, os Telégrafos, o Diário da República e a prefeitura de polícia. Isto porque a primeira nota é justa. Que dizer contra esse poder que, assim que nasce, fala em extinguir-se?
Prosper-Olivier Lissagaray, História da Comuna de 1871
Está disponível para ser descarregada gratuitamente a brochura que as edições antipáticas fizeram sobre a Comuna de Paris. Vive la commune.
17/03/14
14/03/14
Convite ao pensamento crítico
por
Pedro Viana
Co-adopção chumbada na especialidade
por
Miguel Madeira
A ironia disto é que, se calhar, se tivesse havido o tal referendo, a co-adopção tinha sido aprovada e talvez até mesmo a adopção por casais homossexuais.
13/03/14
Ninguém sabe quem dá as ordens, mas elas cumprem-se
por
Ricardo Noronha
A PSP vai realizar, a partir das 7h de sexta-feira, uma operação nacional de 24 horas, que contará com o envolvimento de todo o efectivo policial dos comandos distritais, indicou hoje aquela força de segurança. Segundo a PSP, vão estar envolvidas na operação “Activa” várias valências da Polícia, nomeadamente as equipas dos departamentos de Armas e Explosivos e de Segurança Privada, que vão realizar acções de prevenção e de fiscalização. Durante a operação de 24 horas, os elementos da PSP vão estar “especialmente empenhados” em zonas de concentração de pessoa, de acumulação de tráfego, de ocorrências criminais e de acidentes rodoviários, adianta uma nota da Polícia de Segurança Pública. A PSP vai reforçar também a visibilidade e fiscalização nos centros históricos e comerciais, escolas e terminais de transportes públicos e nos interfaces de passageiros. Na operação, a PSP vai contar com o apoio de equipas do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Com esta operação, a PSP pretende “demonstrar eficiência e capacidade operacional por forma a poder continuar a transmitir à população um sentimento de segurança”.
PSP realiza na sexta-feira operação nacional de 24 horas
)Publicidade enganosa?
por
Miguel Madeira
Painel de notícias do Sapo:
Clicando na notícia em questão:
Bem, já há qualquer coisa que não bate muito certo entre a foto e o texto. Agora, indo mesmo à notícia:
Bem, já há qualquer coisa que não bate muito certo entre a foto e o texto. Agora, indo mesmo à notícia:
Esta é a terceira semana consecutiva de quedas e um sinal de recuperação do mercado de trabalho na maior economia do mundo.
O número de pedidos iniciais de subsídio de desemprego caiu inesperadamente, na semana passada nos Estados Unidos, para o menor nível desde o final de Novembro. Esta é a terceira semana consecutiva de quedas e um sinal de recuperação do mercado de trabalho na maior economia do mundo.
O número de novos cidadãos norte-americanos a pedirem subsídio de desemprego caiu para 315 mil, na semana encerrada a 8 de março, revelou hoje o Departamento do Trabalho. Os analistas, consultados pela Bloomberg, esperavam um aumento para 330 mil.
"O mercado de trabalho continua a melhorar", afirmou Brian Jones, economista sénior da Société Générale
11/03/14
Debates televisivos nas Europeias em risco?
por
Miguel Madeira
Os meios de comunicação social dizem que, mesmo com a alteração legal, pode não ser possível realizar debates para as eleições europeias:
A constatação é feita pela Confederação Portuguesa de Meios de Comunicação Social (CPMCS), que garante que, se for aprovado nos moldes atuais o projeto-lei "deixará tudo na mesma". Em causa está o facto de a proposta da maioria parlamentar incluir um artigo que obriga a que seja garantido "no tratamento jornalístico ou na realização de debates" no período de pré-campanha uma "igualdade de circunstâncias das forças políticas com representação parlamentar". Para o presidente da CPMCS, Albérico Fernandes, este artigo "deixa tudo na mesma" para os meios de comunicação, na medida em que trava o princípio da liberdade editorial de cada órgão na organização de debates e na cobertura das eleições em pré-campanha (ou seja, antes dos 15 dias de campanha formal).Confesso que não consigo perceber isso - afinal, desde que eu me entendo que houve debates para as legislativas com os cabeças-de-lista (ou os líderes, nas legislativas) dos partidos com representação parlamentar (os 4 ou os 5, conforme o caso), e sempre se conseguiu fazer isso. Onde está a inexquibilidade?
"Por não querer nem governo nem Estado"
por
Diogo Duarte
O Fernando Ramalho escreveu um excelente texto, para o Esquerda.net, a propósito dos 35 anos dos Xutos & Pontapés. O texto não é apenas uma narrativa política dessas mais de três décadas de existência da banda, mas, também, e, talvez, acima de tudo, um olhar sobre o Portugal pós-revolucionário. Merece ser lido.
«"De facto, já não acreditamos em manifestações pacifistas. Para o poder é bem melhor a existência de um Festival da Paz do que uma greve de estivadores. Por outro lado, a questão da Paz não se resume ao nuclear. Quando, por exemplo, em França se despedem 9 mil trabalhadores da Renault isso é uma forma de violência e guerra. Em Almada por certo que vai haver problemas quando começarem a despedir gente na Lisnave. Não será isso tão agitador quanto a passagem de armas nucleares em Portugal? Estamos muito mais preocupados com a violência do dia-a-dia do que com as armas nucleares!"»
«"De facto, já não acreditamos em manifestações pacifistas. Para o poder é bem melhor a existência de um Festival da Paz do que uma greve de estivadores. Por outro lado, a questão da Paz não se resume ao nuclear. Quando, por exemplo, em França se despedem 9 mil trabalhadores da Renault isso é uma forma de violência e guerra. Em Almada por certo que vai haver problemas quando começarem a despedir gente na Lisnave. Não será isso tão agitador quanto a passagem de armas nucleares em Portugal? Estamos muito mais preocupados com a violência do dia-a-dia do que com as armas nucleares!"»
10/03/14
Crimeia
por
Miguel Madeira
Há tempos, o Zé Neves escrevia:
Vejo argumentos para ambas as hipóteses:
a) defender a união à Rússia, porque, sendo o maior (geograficamente) dos Estados envolvidos, será um passo na direcção de uma confederação mundial; ainda por cima, a Rússia é formalmente uma federação multiétnica
b) defender a permanência na Ucrânia, porque esta é que é na prática o Estado multiétnico e multinacional (enquanto a Rússia é dominada esmagadoramente pelo elemento russo); e, regra geral, mudar fronteiras para acertar os grupos culturais com Estados políticos é a posição nacionalista por excelência (as limpezas étnicas do século XX são o resultado não-previsto - ou se calhar mesmo previsto - das ideias do século XIX que defendiam que cada nação deveria ter o seu Estado: a partir do momento em que há povos de várias culturas vivendo no mesmo espaço geográfico, só há uma maneira de assegurar a coincidência entre a "Nação" e o Estado - eliminando a minoria, pela deportação ou pela morte).
"1) havendo quem o reivindique (e há e não são poucos), um comunista não-patriota deve apoiar a realização de um referendo sobre a [independência] do País Basco; 2) nesse referendo um comunista não-patriota deve fazer campanha contra a [independência] do País Basco."Uma questão que me ocorre agora é o que deveria defender um comunista não-patriota sobre a Crimeia - na primeira parte não há grande dúvida: defender a realização de uma referendo sobre a passagem da Crimeia para a Rússia; mas, e na segunda? Aqui a grande diferença face ao hipotético caso basco (e aos efectivos casos catalão e escocês) é que não se trata de um referendo pela independência, mas um referendo para mudar de soberano.
Vejo argumentos para ambas as hipóteses:
a) defender a união à Rússia, porque, sendo o maior (geograficamente) dos Estados envolvidos, será um passo na direcção de uma confederação mundial; ainda por cima, a Rússia é formalmente uma federação multiétnica
b) defender a permanência na Ucrânia, porque esta é que é na prática o Estado multiétnico e multinacional (enquanto a Rússia é dominada esmagadoramente pelo elemento russo); e, regra geral, mudar fronteiras para acertar os grupos culturais com Estados políticos é a posição nacionalista por excelência (as limpezas étnicas do século XX são o resultado não-previsto - ou se calhar mesmo previsto - das ideias do século XIX que defendiam que cada nação deveria ter o seu Estado: a partir do momento em que há povos de várias culturas vivendo no mesmo espaço geográfico, só há uma maneira de assegurar a coincidência entre a "Nação" e o Estado - eliminando a minoria, pela deportação ou pela morte).
09/03/14
Os alemães fazem três vezes mais que os portugueses?
por
Miguel Madeira
Segundo Belmiro de Azevedo, sim.
A expressão coloquial "fazer mais" é ambigua, podendo ter vários significados - ficar mais horas a trabalhar, produzir mais por hora, produzir mais no total...
Indo às estatísticas da OCDE temos:
Se formos pelo sentido "trabalhar mais", é exactamente ao contrário - os portugueses, em média, trabalham mais horas que os alemães; se formos pelo sentido de produzir mais por hora, efectivamente um trabalhador alemão produz mais (quase o dobro) do que um português, mas está muito abaixo de produzir "três ou quatro vezes mais"; se formos pela produção total (é só multiplicar a produtividade por hora pelo número de horas), um alemão produz 40% mais que um português.
E, claro, não nos podemos esquecer que um lenhador com uma motosserra "produz" mais que um com um machado, mas será que podemos dizer que "faz mais"?
A expressão coloquial "fazer mais" é ambigua, podendo ter vários significados - ficar mais horas a trabalhar, produzir mais por hora, produzir mais no total...
Indo às estatísticas da OCDE temos:
Time | 2012 | |
Variable | Average hours worked per person | GDP per hour worked as % of USA (USA=100) |
Country | ||
Germany | 1 393 | 90,9 |
Portugal | 1 691 | 53 |
Se formos pelo sentido "trabalhar mais", é exactamente ao contrário - os portugueses, em média, trabalham mais horas que os alemães; se formos pelo sentido de produzir mais por hora, efectivamente um trabalhador alemão produz mais (quase o dobro) do que um português, mas está muito abaixo de produzir "três ou quatro vezes mais"; se formos pela produção total (é só multiplicar a produtividade por hora pelo número de horas), um alemão produz 40% mais que um português.
E, claro, não nos podemos esquecer que um lenhador com uma motosserra "produz" mais que um com um machado, mas será que podemos dizer que "faz mais"?
02/03/14
Mais Ucrânia (a propósito do texto do Jorge Valadas)
por
Diogo Duarte
Subscrevo (quase) inteiramente o excelente texto do Jorge Valadas. Acima de tudo por dar uma perspectiva do que ali acontece sem obrigar ninguém
a entrar voluntariamente num beco sem saída (seja assumindo uma posição no
plano geopolítico, seja abandonando o lado – muito minoritário, é certo – que mais
nos interessa e que corresponde à facção que tenta intervir para lá do domínio
da política institucional, como é apontado). Uma das coisas mais interessantes
do texto, por corresponder a algo não muito referido, está, creio eu, no
sublinhado que faz quer da incapacidade de outros grupos em criar correntes e
práticas antagónicas às dos extremistas de direita no espaço da própria
ocupação, quer da ausência de estruturas de solidariedade ou greves para lá do
Euromaidan, o que diz muito sobre os limites populares e “revolucionários” do
movimento. Mas, sem ter propriamente grandes discordâncias, quero deixar um
comentário em que tentarei enfatizar outros aspectos (mais ou menos presentes no texto do
Jorge).
Continuo a achar que o que de mais determinante ocorre na Ucrânia é, também, o que tende a ser mais obscuro e o que mais foge ao controlo de quem
esteve na praça, seja de que facção política for. Refiro-me à disputa entre as
grandes potências travada bem para lá do Euromaidan, pois parece-me ser essa a que
mais preocupa e a que mais perigos encerra (tendo sido parcialmente relativizada,
nos média e nas discussões sobre o assunto, pelo peso da extrema-direita no
movimento em causa). É que mesmo essas forças reaccionárias extremistas,
independentemente da expressão popular que já tinham anteriormente, ganharam
espaço naquele cenário condicionando os seus propósitos a lógicas alheias. Por
um lado, em coisas simples, silenciando, por exemplo, a sua oposição à UE (para
se aproximarem do discurso duma parte significativa dos manifestantes); por
outro lado, noutras matérias, enquanto peões e agentes de pressão popular ora das
potências internacionais interessadas no conflito, ora das outras forças
políticas partidárias também ali presentes. Neste último aspecto, há algo fundamental
que ainda não é possível perceber com clareza – e que não é exclusivo do que se
passa na Ucrânia (na Venezuela e na Tailândia verifica-se o mesmo) – que é o
poder das milícias ou grupos paramilitares (ou que lhe quiserem chamar),
nomeadamente o que respeita à sua capacidade bélica e organizativa (sobre o
crescimento destes grupos nos últimos anos, ver este pequeno texto publicado num blog sobre violência política). Se no caso da Venezuela e da Tailândia estas cumprem
a função de auxiliar as polícias na repressão e “reposição da ordem”, no caso da
Ucrânia estas destacaram-se pela capacidade que tiveram de resistir e combater as
forças repressivas governamentais (particularmente violentas, como se viu). Em
parte, o sucesso e a visibilidade da extrema-direita no movimento explica-se
por isto, pois coube-lhes em grande medida esse papel. Resta saber quem está
por trás da logística e da organização desses grupos, financiando-os, pois não
correspondem a algo espontâneo ou claramente organizado anteriormente (pelo
menos na sua totalidade), nem assentam, somente, na sua “natureza militarista e
machista”, como sugere o texto do Jorge Valadas. Há indícios de que pode haver
mão dos EUA, provavelmente até de outras potências (com a colaboração interna
dos grupos/ partidos interessados na queda do governo), mas tudo parece não passar
ainda de especulação.
Parece-me, também, que o texto do Jorge Valadas continua a não
escapar totalmente a duas tendências recorrentes (mas este entendimento pode
derivar de qualquer coisa que me tenha escapado): por um lado, a que atribui um
peso algo desmedido à extrema-direita; e, por outro lado, a que reconhece uma homogeneidade
no seu campo que não estou seguro de que tenha total correspondência com que
acontece.
Antes de mais, se é evidente que o que ali acontece não deve
entusiasmar ninguém que tenha pretensões emancipatórias e igualitárias (e devo
dizer que em Portugal, pelo menos nas últimas semanas, não tenho visto ninguém
mostrar qualquer entusiasmo com o que ali acontece, ao contrário do que o texto
parece sugerir no início), não devemos entregar todos os manifestantes que
ocuparam a praça àqueles que ganharam a sua frente mais visível e que mereceram
mais atenção mediática, ou seja, a extrema-direita. Isto não significa olhar
para esses outros manifestantes como aliados
ou como potenciais revolucionários. Mas entre o seu discurso desinteressante,
frágil e até inofensivo que assenta numa ideia de cidadania gasta, que se opõe
a pouco mais do que a “corrupção dos políticos” e que deseja a integração na UE,
etc. , e a agenda da extrema-direita, ainda vai uma distância grande. Apesar da
fragilidade do referido discurso, e até da sua permeabilidade a esse tipo de políticas
perigosas (nomeadamente aos valores nacionalistas), não é preciso muito para
aceitar que uma parte significativa dessas pessoas não está disposta a abraçar a
agenda das forças da direita radical. Claro que nada disto deixa de ser
preocupante, pois neste hiato de instabilidade que se abriu a posição ganha pelos
fascistas e neonazis pode significar um retrocesso inultrapassável a breve ou
médio prazo (através da consolidação ou mesmo crescimento da sua participação no
governo presente e governos futuros). Mas parece-me um erro atribuir-lhes um
poder desmedido com base na inexistência de um campo revolucionário de esquerda
e pelo papel destacado que tiveram/ têm no Euromaidan.
Há, ainda, outro factor, algo paradoxal, a perturbar quer a
estabilidade quer a força da extrema-direita, pelo menos por enquanto. Digo paradoxal
porque se deve ao próprio campo da extrema direita e não a qualquer perturbação
externa. Acontece que a extrema-direita não se cinge ao Svoboda e está dividida
entre este e o chamado Pravy Sektor (Right Sector). As divergências entre estes
dois grupos são exploradas por Yulia Tymoshenko e têm consequências nos lugares
que lhes são reservados na reorganização política em curso, fragilizando-os e
tornando-os eventualmente mais manipuláveis (este texto, escrito por um dos
grupos referidos pelo Jorge Valadas, dá conta desta divisão).
Para terminar, volto a sublinhar algo que vai de encontro ao
que o Jorge escreve no fim do texto e corresponde, também, ao que procurei
dizer em textos anteriores (aqui e aqui): o reconhecimento da
extrema-direita no Euromaidan e do carácter predominantemente autoritário do
conflito em curso, não deve servir para abandonar o apoio àqueles que procuram explorar
um caminho revolucionário, emancipatório e anti-autoritário, por muito poucos
que estes sejam. Antes pelo contrário. A oposição à extrema-direita não pode
ser um fim em si mesmo, nem pode implicar o abandono absoluto dum horizonte
próprio em função dos interesses políticos e imperialistas disputados. Até
porque estamos perante um cenário em ebulição, com muita coisa em aberto, ainda
sujeito a muitos impasses e mudanças e propício a uma politização rápida da maioria
da população (o que pode assumir muitas direcções). Tal como diz o fim do texto referido no
parágrafo anterior, “it is these people who are indifferent to the ultra-rightand critical of the system opposition, the “disgruntled members of the Maidan,”who can soon fill the ranks of the left and anarchists”. Assumir isto
como hipótese não implica abraçar qualquer optimismo idiota. Implica, sim,
reconhecer que em cada fissura que se abre surge a possibilidade de construir
algo novo. Abandonar essa possibilidade é uma rendição à derrota.
01/03/14
Desmistificar a Euromaidan– Revoltas e herança do socialismo real
por
Jorge Valadas
Os acontecimentos
ucranianos, a ocupação da praça de Kiev e o massacre que levou ao afastamento de
Yanoukovitche do seu bando não foram fáceis de seguir por quem procura
compreender o mundo onde é obrigado a viver! Isto sobretudo se tivermos em
conta as poucas informações directas e fidedignas de que dispomos e o poder da
propaganda pró-UE e pró-democrática produzida pelos media europeus. Fomos também confrontados com o descontrolo habitual
daqueles que se deixam rapidamente seduzir por qualquer confronto de rua com a
polícia. Ora, ver nas barricadas e nos confrontos violentos com os mercenários
do regime um sinal de radicalidade revela uma grande falta de sentido crítico, do
mesmo modo que atribuir um conteúdo democrático à revolta em função da
reivindicaçãode integração na UE padece de uma perspectiva errada.
Qualquer revolta
social que permaneça confinada ao domínio da política terá o seu futuro moldado
pelos interesses das forças capitalistas e das relações intercapitalistas. Sabemos,
e pudemos constatá-lo em concreto, que a relação entre os interesses do
capitalismo europeu – em particular do seu núcleo alemão –e os do capitalismo
russo se encontra no cerne da crise ucraniana. Mas um movimento social capaz de
desequilibrar as relações políticas no interior de um Estado introduz
inevitavelmente factores de imprevisibilidadee pode influenciar a lógica
friadas relações intercapitalistas. É por isso que a compreensão da natureza e
dos projectos das forças políticas que actuam no interior do movimento
ucraniano é indispensável para ver mais claramente o que se passa.
Na revolta da Euromaidan, houve duas forças políticas
organizadas que se destacaram desde início contra o regime de Yanoukovitch e o
seu Partido das Regiões. A par dos
partidos democráticos liberais pró-UE, uma outra força política ganhou
progressivamente influência no decurso dos acontecimentos. Trata-se da corrente
ultranacionalista e nacional-socialista, representada sobretudo pelo partido Svoboda quetem uma real implantação epoder
de mobilização em Kiev e na Ucrânia ocidental. Por razões de oportunismo e de
interesse político, os democratas ocidentais e os seus escribas decidiram
minimizar, e mesmo ignorar, a sua intervenção, a sua ideologia e o seu projecto
político. Ora, este não é o mesmo que o das forças pró-UE, na medida em que
esta corrente fanaticamente nacionalista se opõe, pelo menos em teoria, simultaneamente
ao domínio russo e ao da Europa, vista como uma zona de valores decadentes e sujeita
aos «interesses judaicos internacionais».
A existência em
Kiev de pequenos grupos que têm uma perspectiva crítica do mundo e dos
interesses capitalistas em jogo constitui um trunfo precioso para nos
orientarmos no nevoeiro da Euromaidan.
Neste âmbito, há diversos textos disponíveis na Internet, designadamente uma
entrevista realizada por uma rádio livre da Carolina do Norte (EUA), Ashville Fm Radio, com um camarada
anarco-sindicalista da União Autónoma dos
Operários da Ucrânia (1). No site
deste grupo (2), podemos igualmente ler, em inglês, uma outra entrevista (3) e um
debate (4). Um texto menos interessante e mais ideológico, do Sindicato Autónomo
dos Trabalhadores de Kiev encontra-se disponível em francês (5).
Não se trata de aceitar estes textos como se
traduzissem A verdade sobre a situação na Ucrânia. Tendo em conta a confusão
reinante e os aspectos contraditórios e em constante evolução da situação, é
legítima a ocorrência de diferenças de análise, e estas devem ser expressas. Trata-se
de ler estes textos respeitando a inteligência daqueles que intervêm e daí
retirar elementos que nos permitam prolongar a reflexão e compreender um movimento
que não caminha necessariamente na direcção dos nossos desejos e expectativas.
Com efeito, como tem acontecido com outras evoluções nas sociedades saídas do
desmoronamento do bloco do capitalismo de Estado, estas revoltas são portadoras
de tendências profundamente reaccionárias perante as quais as correntes
emancipadoras se encontram em minoria, e mesmo ameaçadas.
Vejamos agora
sucintamente alguns dos aspectos abordados por estes camaradas ucranianos.
A composição social
dos manifestantes presentes na Euromaidanevoluiu
ao longo dos meses. Inicialmente, a maioria dos manifestantes eram membros das
classes médias pró-ocidentais, apoiantes dos partidos da oposição ao regime de Yanoukovitch.
Depois, com o desencadear da repressão policial e a chegada de elementos das
classes mais populares, a composição da multidão na praça diversificou-se. A
relação de forças entre os partidos presentes também se modificou e o papel dos
partidos extremistas nacionalistas e racistas, sobretudo o partido Svoboda, ganhou peso. Segundo esta
análise, as classes médias da juventude estudantil de Kiev constituem a principal
base de recrutamento de quadros e militantes de partidos extremistas como o Svoboda e o Pravy Sektor, que aliás se encontram também fortemente implantados
entre os trabalhadores da Ucrânia ocidental. Podemos pensar que muitos trabalhadores,
jovens e desempregados, seduzidos pela histeria nacionalista, foram depois
recrutados por grupos paramilitares e enviados para o combate. Mais apática e
menos militante, a grande massa dos trabalhadores vê estes grupos como
uma«vanguarda» que protege o povo contra uma classe dirigente corrompida. De um
modo geral, fazem notar estes camaradas anarco-sindicalistas, a presença
dominante dos partidos neonazis corresponde ao ambiente geral na Euromaidan, onde as ideias nacionalistas
uniam em grande medida os ocupantes.
Um outro aspecto
que ilustra os limites do movimento é o facto de, fora da Euromaidan e das ruas limítrofes, a vida ter seguido o seu curso
«normal» em Kiev. Bem entendido, em todo o lado, nas empresas, na cidade, na
Ucrânia ocidental em geral, os confrontos na Euromaidan estavam no centro de todas as conversas e preocupações. Porém,
não terá havido qualquer movimento de solidariedade colectiva nem greves. O
apelo, lançado por algumas organizações liberais de esquerda, a uma greve
política não teve qualquer eco, e inclusivamente a greve dos trabalhadores dos
transportes da cidade, em Janeiro, desenrolou-se sem ligação com a agitação na
praça. Uma tentativa de greve na Universidade foi abafada pela intervenção de
grupos neonazis.
Segundo
informações fornecidas por estes camaradas,o conjunto da ocupação da praça permaneceu
dominado pelos aparelhos dos partidos, desde os partidos da oposição até aos
partidos nacional-socialistas. Estes últimos asseguraram e dominaram o
essencial das actividades práticas e de organização da ocupação. Pela sua
própria natureza militarista e machista, impuseram-se desde início como«os especialistas»
da violência e encarregaram-se da «autodefesa» da Euromaidan. Apesar de a ocupação ter durado mais de dois meses, as
práticas de acção independente e de auto-organização foram quase inexistentes, e
foram os chefes e as hierarquias que dominaram e decidiram. Não houve
assembleias nem tomadas de decisão colectivas, e os debates limitaram-se às
questões nacionalistas e estritamente políticas. As tentativas de abordar a
questão social chocaram de imediato com a oposição dos chefes neonazis, que as
denunciaram como uma «provocação». É certo que a vida interna da praça eramuito
diversificada, mas as organizações fascistas mantiveram o controlo do lugar. Os
grupos paramilitares, os Sotnia, continuaram
sob a direcção de chefes nacional-socialistas, alguns dos quais tinham estado
ligados a sectores da polícia. Trata-se de grupos constituídos exclusivamente
por homens, em que os valores machistas são especialmente vincados. Assim, não
admira que, logo a seguir a Yanoukovitch e o seu clã terem sido lançados borda
fora, estes grupos se tenham assenhoreado de Kiev e dos edifícios oficiais,
misturados com a polícia de Kiev que se pôs ao lado das forças da oposição.
Os pequenos grupos
de radicais foram marginalizados, excluídos da organização da ocupação da praça,
com excepção dos grupos de ajuda médica, onde muitos radicais e mulheres
puderam inserir-se. Logo que tentaram exprimir as suas ideias ou levantar
questões de carácter social foram violentamente atacados e expulsos da Euromaidan, acusados de serem «provocadores».
Ousar pôr em causa o mito pró-UE dos partidos da oposição e relembrar que a
Europa é também sinónimo de austeridade social equivalia a ser-se apelidado de
partidário da Rússia…Alguns radicais bem tentaram agrupar-se e formar um Sotnia independente, mas as milícias do Svoboda atacaram-nos imediatamente e
expulsaram-nos da Euromaidan, acusando-os
de serem um grupo «racialmente impuro». De acordo com informações fornecidas
por estes camaradas, os raros anarquistas e radicais que se conseguiram
integrar nos Sotnia acabaram por se
resignar, por razões tácticas ou por oportunismo, a aceitar os valores
nacionalistas e racistas dos chefes! O mesmo é dizer que, ao fazê-lo, renunciaram
aos seus valores e princípios e suicidaram-se politicamente. A confusão e a
força do nacionalismo são tais que a própria figura de Makhno é hoje adulada
pelos nacional-socialistas. Dado que lutou contra os bolcheviques, é
apresentado como um verdadeiro nacionalista ucraniano…
Os três textos acima
referidos abrem o debate acerca de uma questão importante: as causas e os fundamentos
da expansão da ideologia nacional-socialista e do racismo nas sociedades do
antigo bloco capitalista de Estado. Tudo se passa como se o vazio ideológico deixado
pelo desmoronamento dos regimes totalitários comunistas tivesse sido
substituído pela expansão do nacionalismo, e a velha ideologia do «socialismo
científico» tivesse sido substituída pela do «nacionalismo científico». A
passividade, o individualismo e o seguidismo actual dos trabalhadores perante
os partidos populistas estão ligados à cultura da submissão reinante nos países
do «socialismo realmente existente». Para efeitos dos seus interesses e da sua
propaganda, o poder russo esforça-se por reduzir todo o movimento da Euromaidan a uma tomada do poder pelos
fascistas. Ora, no leste da Ucrânia, o Partido
Comunista Ucraniano desempenha o mesmo papel populista que o partido
neonazi no oeste do país. Organiza as suas próprias milícias paramilitares e fomenta
um nacionalismo pró-russo feroz e belicoso.É o fascismo castanho contra o
fascismo vermelho e vice-versa.
Os acontecimentos
bárbaros a que assistimos inscrevem-se na orientação do que foi o antigo
sistema opressivo da exploração, que erigiu os nomes do socialismo, do marxismo
e do comunismo em cobertura ideológica. Não será nos próximos anos que sairemos
desta liquidação.
Ao animador da rádio
livre norte-americana que pergunta que forma concreta de solidariedade podemos
pôr em prática para com os anarco-sindicalistas ucranianos, o camarada entrevistado
responde: «O melhor que podem fazer é o que estão a fazer, ou seja, tentar
desmistificar a situação actual, pois é natural que muitos anarquistas nos
países ocidentais tenham tendência para sentirem um optimismo excessivo acerca
do que se passa na Ucrânia.» A solidariedade internacional
não pode olhar para uma situação complexa de maneira simplista. Parece evidente
que estamos a assistir, não a um movimento que estabelece as premissas de uma
emancipação social, mas, pelo contrário, a um movimento maioritariamente
controlado por formações políticas autoritárias e animado por ideologias
mortíferas e reaccionárias. É provável que, nas zonas de sombra e nos raros
espaços não ocupados pelos chefes nacionalistas e racistas, existam germes de
uma outra maneira de ver o mundo e de outras formas de acção. Mas, na evolução
da situação, tudo aponta para que estejamos ainda longe do caminho da
emancipação social. Reconhecer isto é dar provas de solidariedade para com os
nossos camaradas que no local da acção tentam fazer-se ouvir em condições
adversas.
4 4) http://avtonomia.net/2014/02/20/maidan-contradictions-interview-ukrainian-revolutionary-syndicalist/
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