O Público dá notícia de que "um grupo de leigos católicos pela responsabilidade social organizou ontem um encontro de oração, na igreja da Encarnação, em Lisboa", a fim de, a propósito de um problema de legislação em matéria de costumes, pedir "ao Espírito Santo que ilumine o Presidente da República, para uma questão que ainda não está acabada e que agora só está nas suas mãos".
Um dos membros do grupo, José Maria Duque, declara ao jornal: "Caminhamos num sentido em que cada vez mais as leis vão contra o sentido natural da vida. Caminhamos para uma ditadura da democracia por não reconhecer um valor que está acima da lei escrita", justificando assim o apelo que o grupo endereça directamente ao Espírito Santo, indirectamente a Cavaco Silva e, na realidade, em termos políticos, a ambos ao mesmo tempo.
Ora, não sendo verdade que a democracia sacralize, acima de todos os valores, a lei escrita, uma vez que, pelo contrário, só reconhece legitimidade à lei escrita que resulte da vontade política explícita dos cidadãos e da autonomia deliberativa e instituinte destes, o que o argumento de JMD procura estabelecer é a necessidade de um poder político acima da vontade, da liberdade e da responsabilidade democráticas dos cidadãos, investido da tarefa de os submeter e lhes impor a obediência à sua autoridade sempre que estejam em jogo valores superiores, os quais não deverão poder ser postos em questão por aqueles que governam e a quem são prescritos pelas "iluminadas" autoridades competentes.
Aqui pouco importa que a fonte desses valores seja a revelação operada pelo Espírito Santo e cuja interpretação é confiada a uma hierarquia eclesiástico-sacerdotal, a verdade decretada por um colégio ou partido político que se apodera do monopólio da interpretação científica da sociedade e da sua condução, a codificação dos usos e costumes dos antepassados sobrenaturalmente sábios, ou a "objectividade" das exigências da economia e da sua expansão ilimitada. Em todos estes casos, a conclusão é sempre a mesma: limitar, impedir, reduzir à menoridade e, no melhor dos casos, a um regime para-penitenciário de liberdade condicional, a participação livre, igualitária e responsável dos cidadãos no exercício do poder político por que se governam, e, para isso, censurar e submeter ao imprimatur da hierarquia esclarecida e "acima da lei escrita", na base dos seus direitos absolutos de decisão superior e última, a expressão da opinião e da vontade dos cidadãos, esses instrumentos da "ditadura da democracia".
23/04/10
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12 comentários:
Para além do mais, e plagiando uns comentários deixados ontem no Brumas, num post de tema afim, deixem o Espírito Santo em paz e não invoquem o nome de Deus em vão...
Será que estes católicos ainda não repararam que estão a dizer que só reconhecem legitimidade à "lei escrita" na sua Bíblia, e mesmo essa só depois de "interpretada" pelos seus bonzos?
Joana,
já agora fica o mais do que justificado link para o post do Brumas: Apoio à carta de Hans Küng
abrç
miguel
Caro Miguel,
Concordo!
Se fosse dotado de uma eloquência ao nível da sua, não me importaria de assinar por baixo um texto como este, da primeira à última palavra.
Fosse este texto sobre a vida económica, e não hesitaria em ver em si um ilustre liberal.
Não sendo, mantém-se o ilustre, mas substituo o liberal por alguém que, não sendo liberal, tem em si as raízes do liberalismo, ou seja, o respeito pela liberdade dos outros e confiança no facto de as decisões tomadas por eles em liberdade serem sempre melhores do que as que lhe são impostas por outros, ainda que mais sábios do que eles.
Saudações liberais!
PS: Se tiver vontade de retomar o tema da auto-regulação ética, terei todo o gosto em acompanhá-lo, mas não naquele "post" que tomou proporções gigantescas pela multiplicação de comentários, e se tornou de leitura incómoda.
Caro Manuel,
sim, discutiremos sempre que vier a propósito. Regozijo-me por verificar que o meu amigo me parece em vias de passar de um demo-liberalismo sui generis a adepto da democracia libertária - que não é menos, mas mais inimiga da omnipotência do Estado e da regulamentação burocrática do que o liberalismo.
Abrç
msp
Por acaso, Miguel e Manel, estou a ver-vos cada vez mais próximos!
Caro Miguel,
Não creio que esta transformação de demo-liberal em bento-liberal seja por mérito meu! São os seus olhos e a sua tolerância que me vêem por essa perspectiva mais simpática...
Mas repare que eu não sou anarquista, nem simpatizo (para dizer isto de uma forma muito, mas muito, simpática) com o anarquismo nem com os anarquistas.
Onde lhe disse noutra discussão que considerava necessária a existência de Estado, considero-a mesmo necessária.
E para defender a propriedade privada, para além da coisas como a vida, a integridade, a dignidade, a privacidade e a liberdade da cada um de nós.
Na economia considero-o necessário, e muito, mas basicamente apenas para impedir a formação de monopólios e o exercício de práticas anti-concorrenciais, ou seja, para garantir que há tanta concorrência quanto seja possível sem colocar em causa a eficiência.
E isto desde que, e apenas desde que, seja vontade da maioria dos cidadãos viver numa economia de mercado.
Se preferirem viver em socialismo, direi que são tontos, que se estão a arruinar a correr atrás de uma ilusão de seguro contra a pobreza que não assegura nada, mas tenho que me conformar com as escolhas da maioria.
Se a liberdade vier a estar em causa, talvez perca esta fleuma que me agrada e me dá qualidade de vida.
Saudações liberais...
Não seria ao Banco Espírito Santo que eles se estariam a referir ?
Cumprimentos
Oh malta: Há aqui um erro de interpretação. O Espírito Santo a que eles se referem é o do BES, ESCOM,ESSI,GES,etc.
Caro M. V. Pires- Lágrimas de sangue mancharam a minha face pelo teor da sua frase- que penso irreflectida, no mínimo- sobre o anarquismo e os anarquistas. E, passo de imediato, a citar-lhe umas teses que Bakounine escreveu em Lyon, justamente, poucos meses antes da eclosão da Comuna de 1871, um dos maiores e mais libertadores acontecimentos políticos de todos os tempos, celebrado tanto por Marx como por Bakounine. Bakounine justifica a sua teoria baseada na " necessidade de se deixarem manifestar e exaltar livremente todas as paixões, todos os apetites, todas as cóleras do povo sublevado, amotinado, sem freios- que será prejudicial disciplinar ou embastilhar no interior de uma doutrina ou de uma qualquer autoridade ",porque, frisa,o povo foi durante muito tempo " enganado, iludido, explorado e, por isso,tinha agora o direito de se vingar de qualquer modo; os seus excessos tinham sido provocados por outros ainda mais graves; que todos os regimes políticos, todas as legislações têm a sua origem na violência, e não recorrem ulteriormente à moralidade senão para garantir a uma minoria opressora o fruto das suas rapinas. Essa moralidade, como a ordem que ela defende, é artificial; a moral verdadeira não pode ser senão o trabalho de todos os homens iguais e livres: se, antes de a estabelecerem, cometem erros, excessos, é uma fatalidade pela qual é forçoso passar; ninguém possui uma justiça e uma sabedoria superiores à ordem natural dos acontecimentos, que lhe possa fornecer o direito de julgar os outros homens e de lhe fixar a sua conduta. Se quizermos ser revolucionários lógicos, devemos ter confiança no povo e não nas velhas doutrinas que lhe querem impôr os que estão interessados em impedir a marcha natural da humanidade para o seu verdadeiro destino". M.B. OC VII. Niet
Caro Niet,
A frase não é irreflectida.
Pode não concordar com ela, mas, como costuma dizer o Cristiano Ronaldo, "pelo menos é o qu'ô acho".
Espero que, quer o sangue, quer as lágrimas, sejam um exagero do seu comentário.
Receio que sempre que "...se deixaram manifestar e exaltar livremente todas as paixões, todos os apetites, todas as cóleras do povo sublevado, amotinado, sem freios...", elas foram capturadas por bandidos manhosos, que gradualmente as conseguiram dirigir como um rebanho, invariavelmente conduzido ao matadouro.
Tará sido por azar, ou estas manifestações prestam-se mesmo à captura por bandidos manhosos?
Por contraponto, concordo em absoluto com a sua afirmação "Se quizermos ser revolucionários lógicos, devemos ter confiança no povo e não nas velhas doutrinas que lhe querem impôr os que estão interessados em impedir a marcha natural da humanidade para o seu verdadeiro destino".
É isso mesmo que repito vezes sem conta para explicar porque sou convictamente liberal.
Bom fim-de-semana...
M.Vilarinho Pires: O " sistema " super-capitalista atingiu em 2008 o máximo de desigualdade económica e de "fantasmática " virtualidade financeira. Quase que implodiu e tarda a trilhar um novo ciclo, que jamais será igual ao anterior. Deve saber isso melhor do que eu.A alternativa de democracia libertária tem muitas hipóteses. Mas é uma via de "excelência " democrática, participativa e descentralizadora-autogestionária. O MS Pereira tem proposto exaustivamente muitos modelos desse tipo embrionário de real democracia política, social e cultural.
Por outro lado,há em França -deve estar alargado já a toda a Europa- um movimento - que inclui os Verdes´/Europa Ecologia e o Attac, pelo menos- que visa o Des-crescimento- Rede dos Objectores de Crescimento para um Pós-Desenvolvimento (ROCAD). No seu programa- dos oito "R"- Reavaliar,reestruturar,relocalizar,redistribuir,reduzir,reutilizar e reciclar- é posta a tónica para tentar "ainda" salvar o planeta. Está associado com os objectivos essenciais do Desenvolvimento Alternativo e do D. Durável. O que está em jogo, nota um dos principais animadores franceses, o economista Serge Latouche, é que só " saindo da sociedade de mercado "- selvagem, despótica e desigualitária ao máximo, hoje- se conseguirá parar a hecatombe ecólogica.E, mesmo assim, ele revela dúvidas...angustiantes.Niet
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