25/05/10
Comunidade, Estado e Economia
por
Pedro Viana
No parágrafo inicial deste seu post, o Miguel Serras Pereira critica o aumento da intervenção do Estado na economia como principal via através da qual esta poderá passar a estar sob maior controlo público. No entanto, eu não vejo outra alternativa a curto-prazo. Nem sei se será desejável outra opção, mesmo que pudessemos escolher.
Qualquer comunidade necessita de se auto-organizar de modo a conseguir assegurar a implementação das decisões que toma. Excepto a um nível muito local, tal necessidade requer a criação de instituições que efectivamente contêm em si os atributos que geralmente se associam a um Estado. Portanto, parece-me que um maior controlo público, colectivo, de tudo o que possa afectar uma dada comunidade, nomeadamente os processos económicos, requer efectivamente um maior controlo por parte do Estado. No entanto, por si só este não implica, de modo inverso, necessariamente maior controlo público. Tal só acontecerá se o Estado e nas instituições que o constituem forem democraticamente controlados pela comunidade.
No caso particular da economia, do que foi dito não releva que esta deva estar completamente estatizada. O Estado deve ser actor único apenas nas áreas onde a concorrência é difícil ou perniciosa para comunidade, como, por exemplo, a distribuição de água. Nas áreas onde a concorrência pode efectivamente existir e ser benéfica para a comunidade, o Estado deve intervir apenas como regulador, o que, no entanto, não impede que a regulação possa ser parcialmente feita através da intervenção do Estado como actor. Por exemplo, providenciando directamente transporte público, em concorrência com actores não-estatais. O controlo democrático dos meios através dos quais o Estado intervém na economia pode ser efectivado através da eleição directa dos gestores das entidades em causa e/ou pela exigência de que qualquer decisão estratégica por parte dessas entidades esteja dependente de aprovação pela comunidade através de processos de oscultação da opinião pública.
A regulação estatal da economia deve ter como objectivo principal assegurar que qualquer processo decisório que nela ocorra é participado por todas as pessoas que por ele são efectadas, bem como impedir a emergência de situações de desigualdade que comprometam a participação igualitária em qualquer processo decisório no seio da comunidade. Isto implica necessariamente que em tal economia o único formato admissível para uma organização empresarial não-estatal é efectivamente o de cooperativa, controlada por aqueles que nela trabalham, e que a disponibilização de capital para investimento apenas possa ser feita através de bancos estatais ou cooperativos, capital esse que não pode dar direito a qualquer tipo de influência na gestão da entidade a quem foi concedido o empréstimo de capital.
A mudança exigida perante as actuais economias de cariz capitalista é radical. No contexto europeu, não vejo como possa ser conseguida a nível da União Europeia (UE), sem primeiro haver experiências a nível local, regional e nacional. Quanto mais longe na cadeia de controlo se encontra um detentor de poder decisório, mais imune se torna a reinvidicações da comunidade, e mais permeável se revela perante pressões do Poder sócio-económico. Qualquer pressão para uma mudança radical do paradigma político e sócio-económico a nível da UE muito provavelmente levaria à sua desintegração, a não ser que tal pressão originasse em simultâneo da grande maioria dos seus Estados membros, o que me parece implausível. E também não dúvido que qualquer Estado membro da UE que proponha implementar tal mudança ver-se-ia obrigado a abandonar a UE, a qual também nessa situação ficaria à beira da dissolução. É por isso que acho que quem pretenda uma mudança radical da situação política e sócio-económica ilude-se ao pensar que tal é possível no âmbito da UE, tal como existe. Idealmente, a re-nacionalização total do processo decisório seria coordenada a nível europeu, entre as comunidades/Estados que decidissem dar esse passo. Coordenação essa que serviria de embrião a uma nova entidade europeia no âmbito da qual, eventualmente, algum do poder decisório poderia passar a ser de novo partilhado.
A coordenação global é importante, mas é a acção local que é essencial.
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4 comentários:
Caro Pedro,
há aqui uma questão terminológica preliminar que pode levar a mal-entendidos. E tem a ver - como teve sempre nas nossas discussões - com os usos diferentes que fazemos da palavra "Estado". Se aceitares - e já sei que vais dizer que sim - que na tua ideia de Estado está implicado o exercício do poder político através da participação governante dos cidadãos, a minha única objecção é que o uso dessa linguagem confunde certas coisas. Por exemplo, uma intervenção acrescida do Estado pode ser mais disciplinarmente hierárquica do que democrática. Outro exemplo, quando falamos em "Estado democrático", dado o peso das significações sedimentadas em vigor, a imagem imediata que comunicamos não é a da autonomia, ou da cidadania governante, mas a de um aparelho "separado", implantado sobre uma divisão do trabalho político que reforça e institui a distinção (hierárquica) permanente entre governantes e governados - e podemos transmitir também a ideia errada que um Estado democrático é o que admite ou inclui um sistema de representação eleitoralmente estruturado, que concede o direito de voto aos cidadãos, sim, mas na condição de o usarem apenas para escolher entre candidatos ao exercício do poder governamental, aceitando em troca não serem eles próprios a governar-se.
Como já escrevi noutra discussão contigo: ‹se a ideia de uma sociedade sem poder político, sem lei(s), sem injunções e preferências “culturais” (instâncias de socialização, formação, etc.) positivas, é aquilo a que Castoriadis … chamava uma “fantasia inconsistente”, importa distinguir “poder político” de “dominação”, “espaço público” de “competência do Estado”, e assim por diante. Se o Estado implica a divisão do trabalho político hierárquica e a distinção permanente entre governantes e governados, o exercício da autonomia democrática plena implica a simultaneidade, em cada cidadão, da condição e capacidade de governar e ser governado, de governar enquanto é governado›.
É por isso que ‹prefiro … distinguir liminarmente “poder político” e “Estado” – sabendo embora que, por vezes, sobretudo na tradição anglo-saxónica, o “Estado” (State) é quase sinónimo de poder político exercido a partir de um espaço público formal de deliberação, decisão, participação igualitárias. … por exemplo, as “sociedades sem Estado”, estudadas por P. Clastres em “A Sociedade contra o Estado”, têm instituições e lei no sentido mais forte, mas não têm Estado. A meu ver, este, que se reivindica representante e protagonista da esfera pública, é de facto um obstáculo à publicização democrática do exercício do poder de cidadãos que sejam governantes ao mesmo tempo que governados.
Quanto ao aspecto táctico e metafórico da terminologia que usamos: tão importante como sermos capazes de pôr em circulação e acção as nossas propostas e ideias na linguagem comum, é sermos capazes de promover nela a reflexividade e o espírito crítico, a interrogação das ideias feitas (incluindo as nossas), iniciando um processo de auto-transformação “interior” das representações estabelecidas. Orwell é, uma vez mais, a este propósito, uma fonte de inspiração decisiva: partir da “decência comum” ou dos valores que informam aquilo a que, com E.P.Thompson, o Zé Neves chamaria “a economia moral da multidão”, incitar os seres humanos comuns a explicitarem e a assumirem a responsabilidade das suas consequências, transformando as suas representações habituais e a relação que com elas mantêm, e começando a percebê-las como guias que nós próprios nos damos e criamos›. (Cf. comentários do post, no 5dias: http://5dias.net/2009/12/15/do-arco-da-degustacao-ao-arco-da-governacao/#comments ).
(continua no comentário seguinte)
(cont. comentário anterior)
Dito isto, e chame-se "estatal" ou não à publicização democrática da economia através da participação dos seus agentes, o teu programa não me parece suficiente - a partir dos teus próprios pressupostos, que, sob aspectos decisivos, são também os meus.
Nas empresas não-estatizadas que referes, qual será o estatuto, em termos de poder e no que se refere à direcção, à determinação das condições de trabalho, etc., dos seus trabalhadores? Que estatuto terão essas empresas, no caso de serem democratizadas - serão "propriedades privadas", "cooperativas" e "democraticamente geridas"?
Estas questões não são retóricas. O problema da organização da esfera económica e do trabalho é um problema político decisivo, é o problema da organização hierárquica e classista ou democrática de uma instância fundamental de poder político, ainda que procure não se assumir como tal. Sendo a esfera económica uma sede de poder governante de tal importância, não pode ser excluída da acção instituinte através da qual os cidadãos reivindiquem a participação igualitária nas decisões que os governam. Portanto, não vejo como deixar subsistir, a par das empresas "estatais" que referes, um poder económico não democratizado segundo os critérios já enunciados. Não é pensável que não reclamemos desde o início - embora a reivindicação possa levar tempo a afirmar-se e a generalizar-se - as mesmas condições de auto-governo para todos os trabalhadores (aqui exceptuam-se casos como os dos pequenos lojistas, etc., que, mediante uma política de rendimentos ajustada, poderão subsistir numa economia democraticamente socializada).
Por fim, parte destas dúvidas talvez decorram do facto de o teu post se centrar na defesa do sector público sem entrar na análise do regime interno das empresas ou locais de trabalho e das condições da extensão da democracia nesse âmbito. Pois que, se o tivesses feito, a partir dos mesmos pressupostos que estruturam a tua opinião acerca do poder político democrático, serias levado a empreender uma crítica em forma da solução "economia mista" - ou a apresentar dela uma definição muito diferente da que circula e nos representamos mentalmente quando ouvimos esse termo.
Abraço do teu camarada e amigo
miguel sp
Caro Miguel,
Obrigado pelos comentários.
Aquilo que defino como Estado é o conjunto das organizações que asseguram a implementação das decisões democraticamente tomadas pelo conjunto dos cidadãos que habitam um certo território. A não ser a um nível local e em sociedades de baixa complexidade, não vejo como é possível uma comunidade assegurar que as suas decisões são implementadas na ausência dum Estado. Clastres, na seu livro “A Sociedade contra o Estado” apenas dá exemplos de sociedades sem Estado com poucas centenas de membros, e de baixa complexidade social. Não é por acaso que não existe na história qualquer exemplo de uma sociedade sem Estado com milhares de membros, já para não dizer milhões. Porque tal não é possível. Consegues imaginar o território de Lisboa a ser gerido (democraticamente, pelos seus habitantes) sem uma estrutura estatal, que assegure que as decisões tomadas são efectivamente implementadas? E Portugal?...
Quanto às entidades empresariais que menciono no meu post, julguei que tinha sido claro: considero que apenas entidades estatais e cooperativas deveriam ser permitidas, e ambas devem ser controladas democraticamente, no primeiro caso pelo conjunto dos cidadãos e no segundo caso pelo conjunto dos trabalhadores de cada entidade cooperativa.
Um abraço,
Pedro
OK, Pedro. Mas não entendemos a palavra "Estado" no mesmo sentido…
Vamos continuando a falar
Abrç
miguel sp
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