27/05/10

Nenhum motivo para fazer festas (2)


Mas há, pelo menos no comentário do João Valente Aguiar ao mesmo post, argumentos que importa debater, até porque resumem bem o pensamento e as ideias de quem considera esta concentração indesejável e inoportuna, tendo o mérito de o fazer num plano propriamente político. 
Diz ele: "Em primeiro lugar, esse slogan faz crer que os ditos poderosos estão em crise, logo em recuo e em dificuldades, o que não é de todo verdade. É evidente que estamos a viver uma crise estrutural do capitalismo, mas a burguesia, a classe dominante, não deixa de continuar a determinar a ofensiva no plano da luta de classes. Uma coisa, é a crise económica em torno da acumulação de capital, outra é uma pretensa crise da dominação da burguesia."
Ora esta afirmação, que tem em si elementos de verdade, peca por escassa porque pouco dialética. Ao distinguir, de forma estanque, uma crise estrutural da acumulação capitalista de uma crise da dominação política da burguesia, o João Aguiar fecha qualquer possibilidade à iniciativa histórica e remete o combate para uma posição defensiva. É que é precisamente o facto de a burguesia continuar a determinar a ofensiva no plano da luta de classes que torna imperativo identificar os pontos fortes e fracos dessa ofensiva. E, parece-me importante afirmá-lo, a Grécia é precisamente o ponto onde as duas crises se interseccionam da forma mais visível, retirando espaço de manobra à respectiva burguesia nacional e acentuando a sua dependência face aos grandes centros de acumulação capitalista. Ali, a ofensiva no plano da luta de classes foi momentaneamente subtraída à burguesia há mais de um ano e a sua recuperação continua a ser problemática e trabalhosa, resultando aliás numa espécie de equilíbrio instável que não se sabe bem quanto tempo durará. Uma coisa parece certa, ao retirar a iniciativa à respectiva classe dominante, as lutas sociais travadas na Grécia  rasgaram novas perspectivas históricas e são o mais precioso contributo para uma recomposição política, à escala global, da luta contra o capitalismo. É desse tipo de lutas sociais que necessitamos e é esse tipo de lutas sociais que mete medo aos patrões. 
Pergunta o João "o que é isso dos poderosos?", mas a resposta está inscrita no seguimento do que escreve. Das relações sociais de produção resultam relações de poder. Não me parece completamente evidente que o contrário não possa ser verdade, mas seria um pouco maçudo desenvolver esse raciocínio. Limitemo-nos a constatar o óbvio - haverá algum grande empresário que não seja também poderoso? E, à luz da crise estrutural da acumulação capitalista, não será num terreno privilegiadamente político (e portanto, sobretudo caracterizado pelas relações de poder) que se joga a recomposição da taxa de lucro e  o relançamento da  acumulação? As "formas de expropriação da riqueza colectiva produzida pelos trabalhadores" revelam-se cada vez mais inseparáveis da multiplicação de formas de controlo e disciplinamento que caracterizam os locais de trabalho, mas também as zonas da metrópole consideradas «problemáticas» e onde se acumula uma crescente reserva de força produtiva que a polícia se encarrega de reconduzir ao mercado de trabalho.
Finalmente, a festa. Deixemos de lado a referência um pouco rasteira "ao que essa gente quer". Que a luta é dura e tenaz todos o sabemos, o problema estará mesmo na sua primordial definição enquanto sacrifício. Reduzidos ao seu quotidiano normal, os trabalhadores estão permanentemente divididos e fragmentados, tanto no seu local de trabalho como no de residência, mais ou menos expostos a uma multiplicação de discursos e a um regime de imagem que os confronta permanentemente com as suas fraquezas e impotências, remetendo precisamente para a naturalidade do funcionamento do modo de produção capitalista, da exploração a que são submetidos e dos canais legítimos através dos quais podem canalizar a sua insatisfação. Como dizia Mário Soares, os cidadãos têm o direito à indignação. E, como diria eu, têm esse direito precisamente porque não têm qualquer outro direito. 
Ora o encontro, a comunicação, a partilha, a solidariedade - tudo isso que caracteriza uma luta  que transborda os limites da indignação e disputa o poder num determinado contexto - não podem deixar de assumir as características de uma festa. Onde estavam sozinhos e abandonados, entregues ao despotismo patronal e à autoridade do Estado, os trabalhadores em luta, como aliás qualquer sujeito colectivo em luta, descobrem as suas forças e capacidades, as possibilidades imensas que elas abrem, a inteligência que possuem e que a organização do trabalho constantemente procura enclausurar, a imensa alegria que resulta do facto de controlarem as suas vidas e alargarem o campo das suas escolhas. Sim, a luta pode ser dura e tenaz, feita de momentos trágicos como os que decorreram em Atenas no dia 5 de Maio, mas abre as portas que estavam fechadas e revela caminhos que não se imaginavam. Por isso mesmo, ela é uma festa. E, neste momento, há muitos e bons motivos para fazer a festa.

4 comentários:

João Valente Aguiar disse...

4- o odiado (neste blog, naturalmente) Lénine dançou na neve no dia em que soube que a Revolução Russa tinha ultrapassado o número de dias de vigência do poder proletário da Comuna de Paris. Até esse "maléfico", "duro" e "mauzão" do Vladimir Illitch se lembrou de trazer festa à Revolução. Mas, como ele mto bem sabia, não foi a festa que deu a vitória à Revolução, mas a luta popular, o processo político propriamente dito. Com festa e criatividade pelo meio, mas, como disse acima e volto a repetir, como componentes da luta política e não como sinónimos desta última.

5- a categoria de poderoso faz-me sempre lembrar o trailer daquele filme reaccionaríssimo "Air Force One" com o Harrison Ford. Aí se dizia que o homem mais poderoso do mundo era sequestrado e tal. A categoria do poderoso tb me faz sempre lembrar aquela coisa de qq presidente dos EUA ser "o homem mais poderoso do mundo", como se os Clinton, Bush ou Obama não fossem homens de mão do grande capital. Obscurecendo a dominação de classe, o "poderoso", enquanto categoria não só apenas foca o poder, como tb enforma uma noção difusa de que grupo social (mais concretamente, que classe social) determina as lógicas de organização da sociedade. Para o senso comum mais influenciado pelas ideologias dominantes, poderoso é o Sócrates e os "políticos", não a burguesia que (supostamente) trabalha(ria) arduamente para pagar os salários dos seus trabalhadores. Da categoria do poderoso à concentração das atenções sobre "os políticos", os partidos e os "mamões" que estão no parlamento é um passo. entretanto, o Belmiro e os seus amigos mantêm-se incólumes.

6- não considero a manif pretensamente anti-capitalista como indesejável, mas apenas quis assinalar a vacuidade das suas motivações. A coberto de uma reacção às ditas burocracias (PCP e CGTP), na verdade, não fazem mto por identificar o inimigo de classe (burguesia e seu governo de classe) e preferem apontar para a nebulosa dos "poderosos".

7- crise económica e crise de dominação. A primeira é inquestionável, a segunda só ocorre quando há avanço da luta operária. É verdade que na Grécia se conjugam as duas, mas não tenho a certeza que a burguesia já tenha perdido a ofensiva. Talvez a burguesia grega, mas a grande burguesia internacional não parece mto incapaz. É a UE que conseguiu, até agora (e esperemos que venha a ser derrotada), impor medidas anti-populares. A luta do operariado grego - extraordinária e corajosa como mto poucas nas últimas décadas - é ainda uma luta de resistência, não uma luta de ofensiva capaz de pôr em causa os alicerçes da ordem burguesa. Isso é o desejável e é para isso que se deve lutar. Mas uma coisa é o desejável, outra é o realmente existente. E neste ponto podemos ver que ainda faltam uns bons passos para derrotar o PEC grego e, em consonância, avançar a luta para novos patamares de mobilização.

Fui demasiado longo, mas espero ter sido mais esclarecedor. Se a política não tivesse uma esfera própria e se fosse apenas cultura, então para quê fazer manifs. Bastaria comer caracóis? É isso que tem faltado à classe trabalhadora portuguesa (e não só)? Se comessemos mais caracóis talvez já estivessemos no socialismo. Caramba, como é que o Lénine não se lembrou disso? (Estou a ironizar e a galhofar por exagero, naturalmente, mas achar que o mundo operário é SÓ festa...).

João Valente Aguiar disse...

bom, vou tentar ser breve.

1- eu nunca citaria Mário Soares numa argumentação, por todas as razões e mais algumas...

2- a luta política implica naturalmente festa. O contrário não é verdade (isto tb se aplica ao post acima do José Neves).

3- A sociabilidade cultural ajuda a despoletar a luta e é parte integrante do processo global de formação de qualquer classe trabalhadora. Qualquer leitor do Thompson (o EP, claro) sabe isso. Basta tb ver o exemplo do operariado agrícola alentejano no século XX para se perceber a indissociabilidade entre cultura popular e mobilização política. Contudo, se a mobilização política necessita da esfera cultural (sem identificação colectiva de classe não há luta possível), uma não se reduz na outra. A mobilização política coloca na sua pauta a necessidade de modificar a estrutura social (desde questões mais imediatas até, num estado mais desenvolvido, a luta pela transformação profunda da sociedade existente). Portanto, a esfera da sociabilidade, o convívio, a festa, são uma componente da luta, mas a luta não se reduz a isto. Ela implica uma projecção de redefinição de algo na sociedade. E isso é a esfera mais propriamente dita da política. Pode abarcar festa mas não é exclusiva ou principalmente festa.

Zé Neves disse...

joão valente,

ninguém defendeu que a política e a festa eram realidades coincidentes. apenas que não eram antónimos, ideia que presidiu à crítica ao dito manifesto anticapitalista.

quanto ao resto, o que é assustador é a insistência nessa visão de que agora são as lutas imediatas e depois a transformação profunda.

o comunismo é sempre para depois, não é? ou melhor, para si não é para depois, já aí está, nessa sua formulação da "transformação profunda da sociedade existente". para as massas é que é para depois.

Ricardo Noronha disse...

Não odeio Lenine João. Do que ele escreveu, gosto mais de algumas coisas do que de outras. Mas já escrevi sobre isso há algum tempo, ainda no 5 Dias. Mas gosto mais de qualquer coisa que ele tenha escrito do que do Mário Soares.Não me parece em todo o caso que «poderoso» obscureça a dimensão de classe.E o passo para o populismo também não me parece nada evidente. De qualquer maneira, a questão estará numa política que saiba combinar a luta e os caracóis. Nas portas de stº antão a coisa parecia muito ligada. Cumprimentos.