18/05/10
Renato Teixeira, o timoneiro
por
Zé Neves
O Carlos Guedes questiona até que ponto a moção de censura do PCP não será um erro, na medida em que se "substitua" à manifestação da CGTP. Diz o Carlos que, assim, o PCP se coloca na "dianteira" da luta. Prontamente, o Renato Teixeira vê nisto uma contradição e diz ao pobre Carlos qualquer coisa deste género: "mas meu, como pode ser um erro se tu mesmo dizes que a moção coloca o PCP na dianteira?" Ora, aqui estamos perante um desencontro de espécies animais. De um lado, um revisionista-bloquista-renovador-comunista para quem a questão da reforma e da revolução, da vanguarda ou da falta dela, é tema problemático. Do outro, o Renato Teixeira. Eu já desconfiava, mas agora esclarece-se ainda mais: entre o extremismo do Renato Teixeira e o centrismo de quem acha que as coisas serão o que são não existe qualquer diferença de natureza. Tal como não existe diferença entre o timoneiro que lidera as massas e o tribuno que as representa no parlamento. A força desta "rua" e o folclore "eleitoralista" opõem-se mas complementam-se. O Renato, na hora da verdade, por mais ou menos crítica e radicalismo que o suporte, só consegue ver as coisas na linearidade. A diferença entre ele e quem nos governa está em que o Renato pinta a linha de vermelho e tem mais pressa em percorrer a dita cuja até nos levar ao seu fim glorioso. Esperemos, por isso, a salvação. Ao Renato não passa pela cabeça que os que ficam "atrás" da "dianteira" a que ele tanto aspira sigam por outro caminho que não aquele que lhe é indicado pelo exemplo dos condutores (mas só os condutores puros, os da bayer, é claro). Não se trata, sequer, das "massas" ficarem atrás ou não ficarem atrás. Mas da possibilidade de desviarem a linha, sabotarem o caminho-de-ferro. Isso o Renato não consegue imaginar. Talvez porque seja um homem de fé e um homem de ciência. Política, isso é que não.
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37 comentários:
Pois é, caro Zé Neves,e se bem reparar também parece que há quem, pelo meio de discussões sobre «dianteiras» e «traseiras», vá esquecendo o que o próprio PCP diz sobre a moção que vai apresentar,que há quem vá esquecendo que se trata de um caso positivamente «clássico» de articulação e complementariadade entre luta social e luta institucional e sobretudo que há quem pareça não pôr a hipótese de o PCP estar profundamente inquieto, sinceramente preocupado e autênticamente arrepiado com as consequências da política e medidas do governo.
Mas Vítor, a inquietação e preocupação, por sinceras e autênticas que sejam, não furtam ninguém ao debate acerca das consequências, vantagens e desvantagens de uma determinada estratégia.
Essa articulação e complementariedade parecem-me aliás extremamente problemáticas. A manifestação de 29 de Maio tem como finalidade a queda do governo? E essa queda traduzir-se-à numa alteração de políticas no sentido que pretende o PCP e o movimento sindical? E como é que uma moção de censura ao governo se estende também ao PSD, como se afirma no comunicado?
Caro Vítor Dias,
O tema é complicado, por certo. Eu não coloco o "partido" à frente do "movimento", lógica que me parece assistir ao esquema de pensar do Renato Teixeira. O PCP, ao falar de articulação, revela igual sensibilidade ao problema que eu foco, por certo. Mas eu tenho muitas dúvidas sobre a possibilidade de uma tal "articulação", como sabe. As questões que o Ricardo Noronha coloca parecem-me um excelente ponto para continuar a discussão. Que pode continuar sem que esteja em causa o apoio que se presta quer à moção de censura (isto é, fosse eu deputado e votaria Sim, mesmo discordando do timing) quer à manifestação (sobretudo a esta, pelo acima exposto).
Ora aí está uma palavra que eu não pensava ouvir na tua boca: "extremismo", principalmente usada para caracterizar uma determinada posição política à esquerda. Como imaginas, isso esgota todo e qualquer debate. Sugiro por isso que vás chatear o Carlos Vidal, que eu ando perdido em questões de menor importância.
E se fosse o BE a apresentar a moção de censura. Também vinham criticar o seu vanguardismo na luta?
Bem, caso o BE vote contra esta moção de censura espero que o Zé Neves e o Carlos Guedes sejam os primeiros a acusá-lo de oportunismo político e de não querer alinhar numa política de esquerda conjunta só porque não foram os primeiros a dar o mote...
Caro André Filipe,
Nem eu, nem o Carlos Guedes (parece-me), colocamos em causa a legitimidade e até a possível oportunidade da moção de censura. Acho apenas que se pode debater a coisa. Quanto ao BE, fale com eles. Eu acho que o BE deve votar a favor da moção de censura.
Caro Renato,
Qual é o problema de te acusar de "extremismo"? Não é música para os teus ouvidos?
Não. Estou certo que saberás a diferença entre encontrar o extremo ou a raiz dos problemas.
É pá! Tanta a gente a salivar de raiva contra o PCP!!
Vocês falam, falam, mas eu não os vejo a fazer nada!!!
Carrrrreega Jerónimo!!!
Renato, então e o fundamentalismo islâmico, que em certas circunstâncias apoias, tal como o nacionalismo anti-imperialista? Devo depreender que são solução para a raiz do problema? Ou é extremismo (em relação ao centro) e por isso apenas uma forma de táctica, ficando o radicalismo para a estratégia?
Inteiramente de acordo, Ricardo. É o tipo de debate que indicas que, como tenho insistido, deve acompanhar a acção e construir a sua "unidade". A clarificação, exposição clara ou explicitação estratégica que indicas é também uma resposta às insuficiências da simples política do "não".
O critério do “não” não basta para definir um programa alternativo ou as bases de uma acção não só comum, mas definida de baixo para cima, através da participação e decisões deliberadas na base. Não basta opormo-nos a este governo, mas devemos tentar propor desde o primeiro momento que a sua contestação se faça em termos que sejam já actualização de alternativas - ao nível das propostas apresentadas no plano das reivindicações imediatas, no plano da organização, e no que se refere às formas de mobilização dos interessados.
Abraço solidário
miguel sp
Nem fundamentalismo islâmico nem nacionalismo. Estou a ver que queres ler nas entrelinhas para não debater as linhas. Mas vou insistir, a ver se nos entendemos: defendo a resistência islâmica contra o imperialismo. Anyway... não era sobre a Greve Geral que tinhas começado a falar?
O que te falta para a achares justa?
caro zé neves e restantes comentadores,
a questão do timing, sendo problemática, não perece ser determinante. Se o PC tivesse agendado a moção de censura para depois da manifestação ou de outras acções de luta, não estaria a expor-se a críticas de capitalização política oportunista da luta de massas e dos protestos sindicais e da sociedade civil? e a concordância ou não de objectivos políticos entre os protestos sindicais e o PCP que o Ricardo Noronha coloca não existirá independentemente do timing ou da existência sequer desta moção de censura? e qual será a alternativa a esta estratégia: assumir radicalmente a dissolução do vínculo entre a acção política institucional e a acção orgnaica da sociedade civil e dos sindicatos?
cumprimentos,
Não está escrito em lado nenhum (ok, até está, mas não tem que ser assim) que o movimento de massas se deve orientar conforme a composição da AR e em função das conveniências de um governo da esquerda-unida-que-governa-realmente-à-esquerda. A rua não tem que ser apenas uma parte dos cálculos de quem está nas instituições. A minha posição relativamente a esse assunto não é da mera conveniência táctica ou de calendário, mas de natureza e, portanto, distinta da que introduziu o Carlos Guedes. Limito-me a considerar extremamente discutíveis os considerandos do Vítor Dias, que correspondem em todo o caso a uma posição que conheço bem e que me parece generalizável a quem se situa à esquerda do PS: a articulação entre as mobilizações contra a actual política e a elaboração de uma alternativa à actual política. Noto em todo o caso que essa alternativa, por muitas observações que faça acerca da natureza de classe das medidas levadas a cabo pelo PS, inclui sempre aquele partido na materialização de uma alternativa. Porquê?
Sim, Ricardo: a questão de calendário importa na medida em que envolve questões de fundo, para além das de oportunidade táctica. A questão é que oposição queremos fazer e afirmando (actualizando) que política. A questão da eficácia vem depois. E não o contrário. Não podemos dizer que o mais importante é descobrirmos a maneira mais eficaz de derrubar este governo (a rua, a assmbleia, a conjugação das duas, os locais de trabalho, etc.) e que o para quê, fica para depois, em vez de informar a acção desde o começo.
Ou como diz o Zé Neves, não precisamos de um caminho-de-ferro que conduza os explorados, humilhados, subalternizados, frustrados pelo governo a uma meta ou objectivos governamentalmente fixados mais satisfatórios. O que importa é lutarmos ao seu lado pela liberdade de sermos nós, os governados, a escolher o caminho que fazemos e a decidir dos porquês e dos para quês do movimento.
Abrç
miguel sp
Neves,
Este post transcende-me. A culpa é certamente minha. Primeiro, a funalização do título. Depois, o conteúdo.Gosto de ler este blogue, mas acho que exageram no destaque que dão a questiúnculas com alguns bloggers do 5 dias. Concordarás comigo que mais ideias discutidas e menos farpas, podia ser um caminho mais interessante.
Finalmente, sobre o conteúdo, cá para mim, o PCP pode apresentar as moções de censura que entender. Há muito que este governo devia ter sido censurado. E o movimento sindical convocar os protestos que quiser. Pessoalmente, ficava feliz que o fizessem antes desse momento mágico em que todos iguais e irmanados vamos mudar o mundo por magia. Mas isso sou eu que não acredito em musicas celestiais.
Desculpe, Ricardo, mas você é que leva sempre em conta o PS na materialização duma alternativa. Exemplos: o seu apoio ao Costa, Alegre e esta sua oposição à moção de censura agitando o medo dum governo (ainda) mais à direita. Nenhum dos seus argumentos é novo, novidade é ser você a dizê-los.
renato, ainda bem que não defendes o nacionalismo anti-imperialista nem o fundamentalismo islâmico. vê lá é se o carlos vidal não começa a considerar que és um adepto dos de Miami e um defensor do imperialismo norte-americano. quanto à greve geral, queres que te diga o quê? Que do alto da minha sabedoria política decreto uma bem quentinha?
Eu agora ando também muito ocupado com outro tema: o Miss USA 2010. Não posso discutir as ideias deste blogue.
Bem... depois dessa do quentinho nem sei o que diga, mas sinto que há pouca margem para continuar o debate. É o velho centrismo imobilista a dar cabo da acção política das tuas boas intenções.
Um conselho, já que me tens dado alguns: o registo spectruniano, ou diria mesmo, anarco-régio, desta posta, não abona nem a força dos teus argumentos, nem o sentido de humor.
Saudações argentinas
Nuno e Renato,
Então, as farpas não têm nada de mais. E coexistem com as ideias. Não creio que valha a pena inquietarem-se com isso. Vocês, em registo diferente, usam e abusam delas. E com ideias, também. Depois há o caso do Vidal, em que só há farpas (cada vez mais) e não há ideias (cada vez menos).
A minha qeustão é simplesmente esta: a ideia de estar na dianteira da luta deve ser rejeitada. Traz consigo toda uma visão que é justamente criticada em inúmeros debates e movimentos. Não é questão menor.
Como, creio, deve ser rejeitada qualquer pretensão à ideia de que o mundo poderá mudar sem ser por magia antes que mude por magia todos juntos e irmanados. Na verdade, o mistério do ministério (a magia, se quiseres) está justamente aí: em recusar a magia do todo juntos e irmanados em nome de uma qualquer necessidade de transformação que, no fundo, naõ deixa de ser a que corresponde à vontade de quem lidere a transformação. Podes é não lhe chamar timoneiro, mas que existem, existem.
abç
Neves,
Acho que por vezes a justa ideia que as palavras fazem as coisas está muito sobrevalorizada. É bom que os discursos sejam encantadores, tenho dúvidas quando são encatatorios e as pessoas fiquem convencidas pelo simples facto de os fazerem algo aconteceu.
A conversa das vanguardas e rectaguardas é interessante, desde que não nos convença que as lutas podem ser feitas por ninguém, ou, a mema coisa, feitas por todos.
As lutas são conflitos e nunca serão por definição feitas por todos. Outra questão é da democraticidade e da capacidade de inclusão nos processos de luta.
E sobre isso te digo: está por provar que as "coisas" que usam o consenso e reclamam procedimentos abertos sejam mais democráticas, ou menos anti-democráticas, do que as organizações revolucionárias que se reclamam do marxismo. Na minha experiência limitada, todas as movimentações pouco formais, têm lideranças informais que monopolizam o seu controlo, a diferença é que as regras não são claras e formalizadas e as lideranças não são escrutinadas nem eleitas.
O Carr tem um texto sobre um historiador que tinha tantas preocupações de rigor com a história que nunca conseguia escrever nada sobre essa mesma história. Às vezes os chamados autonomistas recordam-me esse texto.
Nuno,
Pois, mas o problema do Carr é justamente esse (não em todos os seus textos, por certo): ele acho qeu os textos não são história e que a história é aquilo que está fora dos seus textos, sobre os quais ele escreve. Trata-se de uma posição ingénua em que se tende a defender que o historiador é exterior à realidade. O que, concordarás, permite esconder o que de subjectivo existe na história que o historiador faz.
quanto às lideranças formais e informais e isso tudo, claro que estou de acordo contigo. a crítica de o estalinismo não garante que a crítica seja comunista e democrática. Mas vale a pena tentar, por certo.
Dizes-me, por fim, que são palavras. E tens razão. Mas como consolo fica sempre o epíteto que os tipos da pide reservavam para os panfletos do PCP: "balas de papel". E não é que feriram?
abç
Caro Nuno,
se me permites que entre na conversa, diria o seguinte.
Do meu ponto de vista, é possível que uma ou várias organizações políticas contribuam com propostas, programas de acção, etc. para a extensão da autonomia e do autogoverno. Essas organizações, naturalmente, que proporão direcções, medidas, iniciativas; mas não se candidatarão ou proporão a ser o órgão de poder, a chefia daqueles ao lado dos quais combatem e cuja participação igualitária "governante" promovem, contribuem para instituir. Noutra linguagem, era isto pouco mais ou menos o que dizia uma marxista como Rosa.
Do mesmo modo, o facto de numa assembleia democrática todos terem o mesmo direito a falar, não disporem de voto qualificado ou de poder de veto qualificado, não significa que todos digam coisas igualmente relevantes ou usem da palavra com igual frequência. E se tu me disseres que poderão ser transformados - até contra vontade - em chefes ou profetas pela assembleia ou colectivo de que fazem parte, a resposta é que a única maneira que há de lutar contra isso é manter, reforçar e defender os princípios da auto-organização democrática (sem êxito garantido à partida, claro), e não arranjar uma direcção esclarecida, hierarquicamente superior, que impeça esse "desvio" antecipando-o. Outra vez Rosa: a melhor verdade do melhor comité central torna-se um erro monstruoso se for imposta administrativa ou hierarquicamente.
A questão aqui é não nos pormos enquanto elementos de uma organização ou partido actual ou potencial acima, adiante e fora da massa governada pelas instituições e aparelhos da exploração e da opressão hierárquicas e classistas.Somos nós que somos governados e queremos ser governantes, somos que somos impedidos de participar igualitariamente nas decisões que moldam e enquadram a nossa vida e que queremos a liberdade de nos auto-governar - e como queremos exercer essa liberdade de mudar e decidir procuramos organizarmo-nos com os que o querem também.
Não dispomos de antídotos anti-degenerescência absolutos nem de prescrições infalíveis. Mas a melhor das garantias de que dispomos frente aos perigos de que falas é o reforço da participação e não a escolha de chefes suficientemente sábios e puros, com um estatuto à parte, que impeçam que nos governemos mal ou cometamos erros. Porque a segunda escolha, bem vês, é já a resignação à desigualdade e à liberdade condicional, sob tutela dos "legítimos superiores", de quem escolhe não governar.
Os insurrectos americanos bateram-se adoptando a divisa de "não à tributação sem representação". A divisa da autonomia, tal como a entendo e proponho, seria: "Não ao governo ou ao poder político de que como iguais não façamos parte".
Abrç
miguel sp
Por esta altura o meu «apoio» ao PS já devia estar a render alguma coisa não «strangelove»?
É cansativo responder a quem pura e simplesmente insiste em inventar coisas a meu respeito. Mas faço um desafio: leia os programas do PCP e do Bloco e verá se está ou não lá contemplada a ideia de que uma «alternativa» só pode resultar da convergência de toda a esquerda para concretizar uma política de esquerda.
E depois faça o mesmo relativamente a algo que eu possa ter escrito nos últimos, vá, dez anos, e veremos quem apoia ou deixa de apoiar o quê.
Carlos Vidal, esse teu estilo de «agarrem-me se não eu vou-me a eles» não convence ninguém. Estás mortinho pela atenção...
Ó Noronha, mas eu estou longe de tudo o que tu dizes e pensas. Nem sei do que estás a falar. Agora é comigo, é??
Caro Nuno,
só uma adenda e um esclarecimento sobre a informalidade.
Não sei onde foste buscar a ideia de que a autonomia estipula uma espécie de informalidade política difusa e generalizada.
Não concebo uma sociedade sem poder político, sem instituições e sem lei. Mas justamente o problema é tanto - ou mais - o de transformarmos a nossa relação (de exercício ou de produção, se quiseres) com as instituições, a lei e o poder político como os conteúdos da lei e as representações associadas às instituições e ao exercício do poder. Bem vistas as coisas, os dois aspectos são solidários, embora seja o primeiro que marca a diferença e separa as águas.
msp
Sem me querer imiscuir nas cisões e outras confusões político-bloguistas, há pelo menos dois pontos em que a posição autonomista/conselhista (para simplificar) manifesta neste blog me parece bastante truncada.
1)Parece haver, ainda que em graus diferentes, uma aversão à desordem e complexidade do mundo e à forma impura e contraditória (Cf. a 'crítica' a Cuba ou à Palestina) como lutas concretas e formas de resistência emergem ou desaparecem no campo social. O fascínio pela pureza de um movimento emancipador em abstracto está longe da realidade empírica, mas também muito distante do pensamento autonomista. Autonomistas como Holloway ou o Negri não se importam de sujar as mãos. Mas aqui não há zapatismo que se safe e os nomes e citações que vêm do passado têm desde logo uma aura mistificadora e uma chancela autoritária, tão contrário ao que se advoga.
2)Existe de facto um problema do ponto de vista formal entre instituição de um regime e a concepção de autonomia enquanto autogovernação (a não ser que se siga o argumento liberal e se invoque um contrato fundamental e livre, auto-instituinte, entre governadores e governados). A questão não é negar a possibilidade, e necessidade, de instituição e organização social dentro do quadro autonomista. O problema é saber o que subjaz formalmente a autonomia política. Sob que ponto de vista a forma de governo tem que ser laica ou republicana? Porque não, se assim entenderem aqueles que se governam, a construção de formas não laicas ou republicanas de autonomia? Dir-me-ão que é uma questão de democracia e igualdade; que estas exigem um enquadramento formal, mesmo que em contradição com o conceito de autonomia, sem o qual o autogoverno não se realiza de forma plena. O problema é que a via iluminista, senão jacobina, está a milhas de distância da solução autonomista. Ela assenta na razão e na vontade, nas Ideias e na vontade de um povo.
Zé, Ricardo e Miguel,
Estou plenamente de acordo com vocês no que toca à necessidade de não ceder á chantagem das coisas tal como elas se nos apresentam. Entre dois males não há escolha possível. Como dizia o Estaline, citado pelo Zizek, são ambos piores. O problema é que me parece que vocês contrapõem aquilo que é, aquilo que deve ser. E é em relação a esse dever-ser, a esse ideal orientador, que vocês fazem a crítica do que existe. No fundo, não deixa de ser curioso notar as semelhanças com um certo normativismo crítico - ambos assentam, em última análise, numa prática judicativa assente num ideal regulador.
Tendo em conta o conteúdo do ideal com que vocês julgam o real, não admira que pouca coisa lá caiba, para além do infinitamente grande, que obviamente não existe em lado nenhum, e o infinitamente insignificante -talvez uma esquimó lésbica, um pinguin imigrante um okupa vegetariano que decidem plantar uma horta não transgénica, e temos aí o possibilidade da emancipação, de preferência se algum deles deitar uma pedra à polícia.
Admito que não é fácil e eu não tenho nenhuma fórmula, mas parece-me que o idealismo é um tiro ao lado. As possibilidades de transformação pensam-se a partir do real. E Zé, por muito que te custe, esse real existe fora dos textos, e afirmar a sua existência não é pormo-nos fora da realidade. Porque é que haveria de ser? Como se só houvesse, de um lado, o positivismo labrego, "das coisas tal como elas são", de um sujeito que observa de fora o real, e, do outro lado, a dissolução da realidade no texto.
vamos pensado.
saudações pol-potianas,
bruno
Caro Anonimo,
a autonomia tem de ser laica e republicana - por assim dizer - por razões simples.
Autonomia significa a condição dos que se dão a sua própria lei e a assumem como liberdade e responsabilidade própria. Se forem os antepassados, a tradição, uma doutrina sacralizada da natureza ou da história, os mandamentos divinos, a ditar a lei, sobrepondo-se à decisão, deliberação e governação, daqueles que a lei governa, deixamos de poder falar de autonomia.
A acção autónoma significa também, no plano colectivo, obra pública igualitariamente empreendida a partir de uma ou várias iniciativas que surgem do meio - entre - os implicados. É por isso republicana pelo facto de ser coisa pública, de criar um espaço público sui generis, distintivo, ao entrar em acção.
Quanto aos conteúdos ou suportes substanciais da acção democrática autónoma, são fornecidos, estão sempre já lá, nos problemas, aspirações, projectos, embates da vida de todos os dias, aos mais diversos níveis.
Saudações libertárias
msp
Caro Bruno,
para provocação, provocação e meia: quando o Pai dos Povos falava para dizer que de entre dois males, os dois eram sempre piores, fazia-o para dissimular o facto de nenhum deles ser pior do que o seu próprio regime e magistratura. O Zizek não deu por isso? A perspicácia do rapaz é bastante intermitente…
Quanto ao que é e ao que deve-ser. Daquilo que é fazem parte, são parte inteira, a tensão, o conflito, a projecção, a vontade, os projectos. O que é não é coincidência ensimesmada de um estado de coisas com esse estado de coisas. É também potencialidade e acção, ao mesmo tempo que se julga, avalia, critica por dentro, através daquilo que fazemos ou queremos fazer ser do que somos (também parte relevante do que é).
E tu tomas posição a partir de quê? A partir do que é? Mas, se responderes assim, ficamos sem saber que posição tomas, e ficas tu sem saber que posição tomar. Condenas-te ou à inacção política ou ao seguidismo, adoptando como objectiva e verdadeira uma das versões ou definições do que é e procurando cumprir as suas instruções. Não sais, portanto, agindo em conformidade com o que é, nem do normativo (o que é diz-te o que deves fazer) nem da política (a própria inacção favorece, promove, reproduz relações de força e de poder).
Dito isto, a autonomia critica implacavelmente os ideais exteriores, as metas que pressupõem mapas antecipados e sentidos únicos, a oposição dos fins e dos meios, a instrumentalização /capitalização do tempo e da acção. Mas já te estou a roubar muito tempo, e remeto-te aqui para o que escrevi nos anteriores comentários desta caixa (sobretudo os que procuram discutir as observações do Nuno).
Saudações de Miami
miguel sp
caro anónimo,
Não sei porque razão é prova de maior autoridade citar um autor do passado do que citar um do presente. (E a minha crítica não tem que ver com os autores em causa, Negri e Holloway, por certo). Quanto ao "sujar as mãos", remeto para a resposta do Miguel Serras Pereira ao comentário do Bruno Peixe.
abç
«a autonomia tem de ser laica e republicana - por assim dizer - por razões simples.
Autonomia significa a condição dos que se dão a sua própria lei e a assumem como liberdade e responsabilidade própria. Se forem os antepassados, a tradição, uma doutrina sacralizada da natureza ou da história, os mandamentos divinos, a ditar a lei, sobrepondo-se à decisão, deliberação e governação, daqueles que a lei governa, deixamos de poder falar de autonomia.
A acção autónoma significa também, no plano colectivo, obra pública igualitariamente empreendida a partir de uma ou várias iniciativas que surgem do meio - entre - os implicados. É por isso republicana pelo facto de ser coisa pública, de criar um espaço público sui generis, distintivo, ao entrar em acção»
Caro Miguel,
Senão segue a trajectória iluminista está redondamente enganado relativamente à suposta necessária ligação entre laicidade e autonomia política. Exemplos abundam onde a autodeterminação de um grupo social se faz de acordo com uma identificação, 'natural' ou outra, entre um certo território, uma língua, 'cultura' ou religião e um povo. Houve alguma vez comunismo pré-capitalista sem uma forte força identitária religiosa? Com que se faz uma república sem que haja um fundo agregador do campo social? O que é o 'auto' da autonomia? Insisto: querer radicalizar um processo imanente de construção social para ainda assim impor premissas formais que são, deste ponto de vista, transcendentes a esse mesmo processo é chegar a um beco sem saída. O problema é teórico e de fundo e, penso, precisa de toda uma outra articulação entre processo de autoconstrução e o construído. O que é preciso é toda uma formalização da autonomia para que só possa ser autónomo aquilo que é radicalmente democrático e igualitário (quero dizer, mais Espinoza por via de Negri et al, mas fundamentalmente, através da ontologia de Deleuze).
Quanto à segunda questão tudo aquilo que diz relativamente à coisa pública podia ter sido dito pelo mais fervoroso dos liberais. É este espaço público contraposto a um espaço privado? E já agora: existe, hoje em dia, algum caso onde tal acção autónoma se dê a ver?
nf
bruno,
não se trata de negar que a realidade existe fora do texto, mas de defender que só podemos aceder a ela discutindo com outros textos e que jamais acederemos à sua verdade última. de modo que não é legítimio utilizar argumentos do género: vocês só falam e não fazem. porque essa crítica é justamente um texto que confronta outro texto.
quanto ao resto, estou compeltametne de acordo com a resposta do Serras Pereira. Curiosamente, vejo que acabas a desvalorizar a força criadora do negativo. é ele que revela a amplitude do positivo. mas eu nem sou hegeliano...
mais ainda: acho que o problema relativo ao que é a realidade é o cerne da divergência quando se trata de debate prático. dizes (eu sei que estou a simplificar): cuba é mau mas este mau tem que ser enquadrado historicamente; mas nesse historicamente que falas estás sobretudo a pensar geopolitiacmente; se nesse historicamente levasses em conta (não só, por certo, mas também) as tensões "internas", o mau-que-afinal-é-bom deixava de poder ser visto assim.
abç
abç
Caro Zé Neves,
É uma questão de estilo que no entanto revela toda uma posição. Se sempre que somos interpelados pelo presente recorrermos ao Olimpo (sim, assim, torna-se numa espécie de Olimpo) libertário-conselhista-autonomista sem a necessária actualização de facto não sujamos as mãos: fazemos do presente um mero interlocutor das nossas ideias com a nossas ideias. Mas não é uma das forças do autonomismo actual o de chafurdar no capitalismo contemporâneo? Não é suposto esta posição ser assumidamente materialista, o tal «materialismo democrático», por oposição ao racionalismo das Ideas e o idealismo do auto-movimento do pensamento?
nf
Caro NF,
questões de fundo, sem dúvida - mas que, embora mantenham a sua pertinência, são postas a partir de uma leitura equivocada do que escrevi - ou de uma expressão deficiente da minha parte.
1. Digo que a autonomia democrática é ateia ainda que seja a de uma assembleia onde pululam os cidadãos que têm crenças religiosas porque é um regime em que sabemos, assumimos, pressupomos, que somos nós darmo-nos as instituições e leis que nos governam, e porque é nossa vontade deliberada governarmo-nos por leis que nos demos através da paticipação igualitária de todos os cidadãos nas decisões que os vinculam.
2. Em certo sentido, do ponto de vista das luzes democráticas, que não tenho problema em assumir, todas as sociedades se autodeterminam, porque em todas elas as instituições e leis são obra humana e em todas elas são consentidas - que mais não seja por omissão ou inércia, mas a inércia nunca é só por si razão bastante - por aqueles que vinculam (há casos complexos de dominação pelo invasor, etc., ou outras circunstâncias - mas não invalidam esta tese geral). Mas historicamente o reconhecimento de que assim é, a dessacralização da ordem estabelecida ou a estabelecer, a sua prática e experiência como obra humana, foi excepcional. A heteronomia promete eternidade, certeza e fundamento seguro acima do que a companhia dos humanos pode dar: apresenta-se, e não no caso da religião, como sentido, último e primeiro, imortal. E assim o propósito das luzes de ousar saber mantém a sua actualidade, sobretudo se reformulado como ousar fazer, ousar criar. E não como descoberta progressiva de uma teoria verdadeira da ordem do mundo cuja verdade, uma vez descoberta, baste aplicar para pôr fim à navegação sem mapa da história e/ou à aventura e responsabilidade de um caminho que se faz passo a passo.
3. O espaço público de que falo é o da cidadania governante que define uma legitimidade diferente da do liberalismo: o governo legítimo é o autogoverno explícito dos iguais e não simplesmente o primado da lei ou o "Estado de direito".
4. Seria impossível desenvolver aqui este ponto: mas sim, a autonomia democrática, a vontade política de autonomia, é inseparável do "inter-esse" de bens comuns - da existência-entre os membros de uma sociedade de bens, propósitos, motivos e interesses comuns . O espaço públco democrático da deliberação e decisão políticas é alimentado e informado por um espaço colectivo comum (público/privado, público informal) de coexistência e comunicação, de interacções e relações, cujos usos e costumes por sua vez informa e alimenta. E também por um tipo de socialização que estipula a criação de indivíduos capazes de livre-exame, de distância em relação a si próprios e às instituições e regras que os governam, capazes de independência e de participação, etc. - capazes em suma de se tornarem cidadãos, sem que esta última condição os esgote ou defina exaustivamente. Compreenda que sei que tudo isto é muito esquemático. Trata-se de uma questão fundamental, e teremos de voltar a falar sobre ela.
Saudações republicanas
msp
Caro Miguel,
Vamos então por pontos:
1.Mais uma vez este pode perfeitamente ser um argumento liberal: separação de poderes e constituição do estado de direito como garantia de igualdade formal na realização da liberdade. Posso também seguir o argumentário teológico e dizer que só Deus garante a igualdade absoluta entre os homens. Ou ir pela via da negação e dizer que não há 'outro' sem a recíproca determinação do eu. A pergunta persiste: como é que o estado laico se apresenta como premissa categórica do autogoverno? Por outro lado, do ponto de vista histórico pode-se afirmar que Deus morreu há muito mas que democracia e igualdade nem vê-las.
2.Pode-se seguir o racionalismo iluminista (embora pense que este necessite duma autocrítica radical, uma autentica purga, para que o 'mau' iluminismo não apareça pelas portas das traseiras). Há quem o faça, e bem. Mas este é todo um outro quadro conceptual (e histórico) onde não cabe a linha autonomista. Digo isto do ponto de vista teórico, sendo óbvio que há diálogos, críticas e referências possíveis e mesmo necessárias entre um e outro.
3.Este pode também ser um argumento liberal sendo a igualdade formal o fundamento para a liberdade efectiva. O estado de direito diz-nos que a lei é igual para todos e não há ninguém acima dela, mas também que a lei é legitimamente, democraticamente, instituída.
4.Veja-se os termos: «vontade política», «interesse» (não se pode esquecer todo o discurso liberal à volta do interesse), «público/privado». Isto é como querer fazer uma omeleta autonomista com os ovos dos inimigos (teóricos e políticos) Utiliza-se as categorias do liberalismo e do iluminismo para seguir, supostamente, um caminho radicalmente diferente. O racionalista dir-lhe-á que vontade política sem Razão (sem as Ideais de Democracia, Igualdade e, porque não, Comunismo) é pulsão para o caos. Alguém como o ZiZek provavelmente iria mais longe e diria que é o lobo vestido de cordeiro: 'vocês organizam-se como bem entenderem, mas, já agora, tenho aqui um textozinho no bolso do meu casaco, sem o qual o vosso autogoverno não é nada. É, digamos, uma espécie de constituição.' Um típico double-bind tão próprio ao liberalismo: 'exprimam-se à vontade, mas...'.
Eu, claro está, acho estas questões pertinentes e não me parece que resultem duma tresleitura ou mal- entendido. Acho somente que o desenvolvimento desta linha de pensamento requer um outro caminho.
NF
Caro NF,
o seu comentário deixa-me perplexo.
Com efeito, eu não confundo o "Estado de direito" liberal com a autonomia: pelo contrário, oponho à sua fórmula a da cidadania governante.
Não digo que a laicidade garanta a autonomia - esta só pode ser garantida pelo exercício democrático instituinte. Digo que a ideia de que somos nós a darmo-nos as nossas próprias leis implica a destituição política da religião (como fundamento da instituição, fonte última das leis, etc.).
Não oponho a autonomia à razão: pelo contrário, indico que a primeira como registo da acção e da palavra é inseparável da exigência de dar conta e razão.
Não confundo esta exigência com a posse, contemplação e aplicação de uma teoria, mas como uma reflexão dialógica produtiva, poiética, acompanhando a convivência comum e o convívio de cada um consigo próprio. Por isso, estou de acordo quando diz que o projecto das luzes não pode ser mantido ou reanimado sem um trabalho radical de auto-transformação. É a passagem - que a Rosa L me sugeriu num mail que me escreveu ontem à noite - do "ousar saber" ao "ousar fazer, ousar criar" (continuando a ousar saber que se faz e cria o que de outro modo não chegaria a ser).
Grafei "inter-esse", em latim, para distinguir precisamente o "espaço entre" comum dos "interesses" na versão/entendimento que você refere, afirmando-o como fonte das matérias sobre as quais a autonomia se exerce enquanto deliberação/decisão política.
O exercício da democracia não é apenas legislar: o seu campo de decisão inclui as obras públicas (em sentido não técnico), incide sobre as medidas arquitectónicas (também não no sentido técnico) e de ordenamento do espaço colectivo, estabelece programas que correspondem à satisfação de necessidades e propósitos que são criados ao nível do social-histórico anónimo. "multitudinário", do "mundo da vida" e do "inter-esse" quotidianos. Mas é evidente que este autogoverno (a instituição na existência social da dimensão "cidadania governante") não se pode fazer sem um mínimo de regulação normativa. A legitimidade democrática - ao contrário da liberal - vem do igual acesso à participação activa de cada um na definição da norma e nas decisões "governamentais", e não do simples consentimento, igualdade perante a lei ou selecção de representantes que decidam em nome dos cidadãos. Você escreve: "O estado de direito diz-nos que a lei é igual para todos e não há ninguém acima dela, mas também que a lei é legitimamente, democraticamente, instituída". A vontade de autonomia exige um pouco mais: que a lei seja igualmente estabelecida por todos, que a sua legitimidade seja provisória ou "até mais ver", e que não se constitua um poder de representação separado, que reproduza a divisão do trabalho político liberal e a distinção - estrutural, permanente - entre governantes e governados, dirigentes e dirigidos (a minha concepção de política inclui a actividade económica colectivamente instituída como "socialmente necessária").
Enfim, poderíamos continuar, mas creio que a areia que está na camioneta já começa a transbordar. Embora ainda não tenha compreendido bem qual é - deixando de lado o ter-me você lido bem ou não - o outro caminho de que fala.
Cordialmente
msp
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