17/09/10

Tomando do sol a altura e compassando a universal pintura


Negri esteve em Lisboa, a convite da Fundação EDP e a propósito da exposição dedicada ao tema do Povo, organizada, entre outros, pelo José Neves e pelo Bruno Dias. Coube-me a tarefa da tradução simultânea, da qual outros disseram não ter corrido nada mal. E embora eu prefira outros azimutes e textos da lavra do cattivo maestro, devo dizer que ele me pareceu extremamente sólido na defesa dos seus pontos de vista. Não teve esta palestra o brilho daquela que o mesmo proferiu há alguns anos atrás, num auditório da FCSH, onde veio à baila a sua fama de agente secreto (sanguinetti et all) e outros temas de evidente pertinência. Desta vez Negri falou sobretudo dos mundos possíveis que contém este mundo, de como o comunismo é jovem e bem-parecido (apesar do cancro estalinista que o corrói), pairando como um espectro sobre o modo de produção capitalista, latente nos comportamentos do trabalho vivo, ameaçador nas formas de luta que percorrem o mundo.
E se isto escrevo, é sobretudo porque noto que Carlos Vidal continua a fazer das suas, invocando agora Anselm Jappe em seu auxílio a propósito deste evento. Ora Jappe, que escreveu sobre Debord uma admirável biografia, tem a respeito de Negri e do operaísmo italiano um ponto de vista assaz menos informado. A comparação de Mário Tronti, Sergio Bologna e Antonio Negri (apenas para citar uns quantos) à social-democracia alemã de finais do século XIX, revela apenas  o seu desconhecimento tanto de uma coisa como da outra. E não será porventura casual que - discorrendo com autoridade e rigor filológico acerca de quase tudo - não tenha Jappe avançado a este respeito uma única demonstração daquilo que afirma. Ou poderá alguém com o mínimo de honestidade intelectual afirmar que a ideia mais forte do operaísmo - a de que são as lutas sociais da classe trabalhadora a moldar o desenvolvimento do modo de produção capitalista e não o contrário - se encontra já nos escritos de Engels, Kautsky ou outra eminência parda, dessas em que a II Internacional era prodigiosamente fértil?
Tudo isto vai por isso arrumado no capítulo daquelas querelas e rivalidades mesquinhas, que tão comuns se mostram ser entre diferentes correntes políticas radicais que disputam terrenos contíguos. É preciso dar a isso a importância que merece (que é pouca) e encontrar, nas diferenças efectivamente existentes entre esses  filões teóricos, aquilo que pode ser relevante para um debate político carregado de actualidade. Parece-me que - a esse respeito - Jappe e o grupo Krisis se esgotam numa crítica da economia política que se encarrega sobretudo de renovar e actualizar um património antigo (que inclui, naturalmente, a II Internacional...) e que Negri e as pessoas agrupadas em torno da revista Multitudes se dedicam à equação de estratégias para pôr fim a essa economia política. Cada uma dessas perspectivas tem, naturalmente, virtudes e defeitos. Há em Jappe uma carga moralista a propósito da decadência cultural cujo tom adorniano (desculpa João Pedro, estás à vontade para demonstrar o meu equívoco) pouco ou nada me diz. E há em Negri uma vontade programática que amiúde se revela precipitada nos seus juízos (o mesmo para o Zé Neves).
A questão será aqui delinear um percurso intelectual e político próprio, à medida dos nossos princípios como dos nossos fins, uma passagem do Noroeste que nos conduza na direcção desejada, uma carta de marear para navegar em tão tormentosas águas. Um pouco como quem procura uma outra rota para a Índia e assim mesmo acaba por encontrar um continente desconhecido. E agora Carlos, venha de lá esse Kacem.

12 comentários:

Anónimo disse...

Porreiro, porreiro foi a exposição estar anunciada que terminava dia 19 e fechar dia 14... Calculo que eu tenha sido um entre vários a bater com o nariza na porta. Alguém sabe qual foi a razão de fechar mais cedo e ninguém avisar?

Será que perceberam que o povo já não existia? :-)

Carlos Vidal disse...

Antes de Kacem, está Badiou, antes deste está Caravaggio, antes deste estão dois artistas (por acaso videastas), o que por acaso dá três livros para já. Badiou, entretanto, é um projecto antigo de tradução que vai ter de esperar - e Kacem ainda muito mais. Como vês caríssimo, somos profissionais de coisas muitíssimo distintas.

Zé Neves disse...

anónimo,
a exposição encerrou mais cedo por razões logísticas do museu.tenho pena que não tenha visto.

ricardo,
compreendo a tua crítica em relação a um determinado modo de proposta política que está presente no negri. mas é uma discussão mais longa. e depende do que estivermos a falar. tanto a proposta do rendimento garantido como a proposta da cidadania mundial são, creio, propostas que vale a pena fazer. resta saber o peso da "proposta" na política que queremos fazer. quanto ao resto, estou de acordo com tudo.

outra coisa ainda, ricardo. o vidal não é assim tão distinto de ti, lamento informar-te. na verdade, ele talvez já não se lembre, mas ainda tu e eu andávamos a trocar de fraldas e ele já andava a traduzir o negri para português. honra lhe seja feita.

C Vidal disse...

O Zé Neves brinca ou andou a espiar coisas já perdidas, mas assumidas com todo o prazer. Sim, para o catálogo de uma exposição colectiva minha e de amigos (Louro, Tabarra, Brito, Palma e Mendes), traduzi uma pequena coisa do Negri, em 1995. Não sei se é a isto que o Zé Neves se refere, ou se está a fazer má ironia. Se se refere a isto, anda bem informado. Mas, meu caro, não é relevante para nada (a não ser para mim), nem tem interesse. Já a exposição, sim, foi um portento.

Miguel Serras Pereira disse...

Preclaros camaradas Ricardo e Zé Neves,

vocês, que parecem conhecer o exemplar melhor do que eu, talvez me possam ajudar a responder à pergunta que eu me ponho sobre ele, retomando de resto fielmente a que ele formula sobre Israel (http://5dias.net/2010/06/07/e-porque-e-que-israel-tem-ou-deve-existir-o-que-e-este-direito-como-foi-adquirido/): porque é que o Carlos Vidal tem de existir, alguém me explica?
Já lhe pus em tempos a questão, mas ele disse-me que isso só a Divina Providência sabia. Ora, a Divina Providência e eu, há muito tempo já que cortámos relações… Mas, pelo conhecimento que tenham das suas vias insondáveis, ou por outros meios, talvez vocês me possam ajudar.

Abrçs

miguel (sp)

Zé Neves disse...

miguel,

não sei responder a essa pergunta...

vidal,

que em 1995 o meu amigo fosse uma coisa "muitíssimo distinta" (para usar a sua linguagem espadissíssima) do que é hoje é algo que me dá esperança.

Niet disse...

Belíssimo texto!Das coisas mais sentidas que li nos últimos tempos! E com uma visão estratégica muito interessante.Niet

Anónimo disse...

Caro Zé Neves

Parece-me um pouco imbecil, que por motivos "logísticos" uma entidade encerre uma exposição a 5 dias de terminar, quando sabemos bem que é na inauguração e no fecho que estas costumam ter mais visitantes...

Qual foi então o verdadeiro motivo? Pouca afluência de público?

Também tenho pena que não avisassem do alto dos pedestais (através dos enérgicos meios de promoção que a usaram para a divulgar no seu lançamento) o dito povo que a mesma fechava mais cedo...

Ou devo interpretar (em jeito metafórico) que todos, dos organizadores aos comissários, se estão a marimbar para este mesmo "povo" que sublimam na dita exposição...

Só vejo aqui retórica e muito pouco respeito...

Zé Neves disse...

anónimo,

não foi por falta de afluência do público. a decisão estava tomada, creio, desde julho, se não mesmo junho. tem que ver com necessidades relativas a uma nova utilização do espaço nos próximos dias. e nos anúncios que têm saído nas últimas semanas já vinha a nova data de encerramento. nada disto o consola, bem sei, e compreendo-o.

cumps

João Pedro Cachopo disse...

Oh Ricardo, crítica moralista à decadência cultural? Adorno pode ter criticado – por vezes injustamente, por via da generalização – a dinâmica da indústria cultural como um todo, mas nunca o fez numa óptica moralista, opondo-se a algo como a “decadência” da cultura. Pouco importa.
Não conheço o Jappe. Hei-de de lê-lo, daqui a uns meses... De resto, gostei do teu texto. Isso é que tem sido pesquisar essas cartas de marear :)
Grande abraço,
João Pedro
Ps. no fundo, acho que tb aprecias as tons escuros adornianos.

Miguel Serras Pereira disse...

Toda a razão, ou quase, caro camarada João Pedro.
Aqui há que defender o exemplo do Ricardo, eventualmente contra esta ou aquela fórmula marginal do próprio Ricardo, porque, podendo apoiar-se neste ou naquele pensamento e mesmo reclamando-se desta ou daquela tradição, pensa, propõe e ajuíza pela sua própria cabeça e segundo ideias sem dono, impatenteáveis.
Não andamos aqui a ver quem é mais marxista ou mais "autónomo", quem leu melhor os mestres e os textos canónicos. O que nos importa é pensar livremente e no interior da acção que visa instituir a igualdade e a liberdade como formas de nos governarmos.

Abraço para ambos

miguel (sp)

João Pedro Cachopo disse...

Caro camarada Miguel,
mas claro; eu só respondi meio na brincadeira ao Ricardo; ele, e outros amigos, metem-se cmg por causa da minha veia adorniana - e fazem muito bem. E eu não arredo pé, e defendo o tom adorniano - ora aí estaria um belo post "da necessidade de um tom adorniano" - em várias situações.
(Entretanto, para dizer a verdade, não me considero muito autonomista e o meu deleuzianismo protege-me da narcose negativista.)
Grande abraço.