28/10/10

Desalienação do trabalho ou abolição do trabalho?

No 5 Dias, Nuno Ramos de Almeida escreve que "[a] reivindicação de um trabalho liberto da alienação, em que o produtor é dono inteligente do seu esforço, é um objectivo político essêncial. Mas isso não se confunde com a liquidação do trabalho".

Isto que vou escrever agora é largamente a reedição de algo que pensei no século XX, quando li "As Origens do Esquerdismo" de Richard Gombim; nesse livro (ou seria noutro que tenha lido na mesma altura?) a dada altura fazia-se o contraste entre a ideologia anti-trabalho da "Internacional Situacionista" e a posição dos comunistas de conselhos tradicionais, como Pannekoek, que consideravam o trabalho como o que realizava plenamente o homem.

O que me parece é que a diferença entre os "abolidores do trabalho" e os "entusiastas do trabalho" talvez seja mais semântica que outra coisa qualquer.

Basicamente, há duas grandes visões em confronto: A - "O objectivo do ser humano é consumir, e a actividade humana é um meio para atingir esse objectivo" e B - "A actividade humana deve ser em primeiro lugar uma fonte de satisfação intrínseca, não apenas um meio de obter bens materiais"; no fundo, tanto os "abolidores do trabalho" como os "entusiastas do trabalho" seguem a visão B (enquanto a teoria económica convencional foi construída largamente à volta da visão A), sendo a diferença apenas no significada que dão à palavra "trabalho" - uns usam "trabalho" como sinónimo de "actividade produtiva", e consideram que o ideal é as pessoas sentirem prazer no seu trabalho; outros usam trabalho como sinónimo de "actividade que fazemos não por gostarmos mas por termos que fazer" e por isso consideram que o ideal é não existir "trabalho" mas sim "jogo" (ou outro nome qualquer), definido como "actividade que fazemos porque gostamos".

Mas, como disse acima, creio que é uma diferença largamente semântica.

9 comentários:

Tiago disse...

o objectivo do ser humano é fazer aquilo que quer. O seu objectivo é seu e só a ele lhe pertence. Todas as teorias simplistas de catalogação do objectivo do homem caiem nesse erro - no simplismo contra a complexidade natural de cada individuo. Todas as teorias politicas baseadas em pressupostos deterministas do Homem falham, e embora todos esses resquícios continuem verdadeiros no nosso tempo, eles não têm capacidade face à única verdade do homem - liberdade.

quando compreendermos isto talvez possamos viver harmoniosamente com todas as nossas diferenças.

LF disse...

a questão é - e isto fazendo uma ponte com o post anterior - que na prática as economias de escala também podem existir no socialismo, pelo que a alienação do trabalho em nome de uma abordagem tecnocrática (planificação socialista) poderá levar a uma maior facilidade em abolir o trabalho no futuro (automatização de grande parte da produção, etc.)
quanto a mim são duas posições distintas. a primeira levaria à outra assim que se passasse a chamada fase de penúria de bens. e aí concordo com o primeiro comentário, o determinismo é um ponto contra - ex: na urss acreditava-se que o socialismo poderia ser atingido nos anos 50 e o comunismo nos anos 80 ou algo que o valha. o que acontece é que havendo progresso os parâmetros da penúria também se vão alterando. i.e. o problema do capitalismo em nos aguçar desejos de consumo recorrendo à publicidade pode ser, em grande parte, um reflexo do ser humano independentemente daquela coisa de "relações sociais". (isto claro sem cair no erro bacoco do jmf de dizer que todo o progresso é emanado do capitalismo; o que estou a dizer é que a atitude "proletária" de chamar burguês a qualquer coisa de conforto é uma espécie de ascetismo que só encontra paralelo na religião e.g. budistas ou monges eremitas)

Niet disse...

Olá,este pragmatismo esquemático, redutor e, irremediavelmente,ambivalente- usado no seu texto, M. Madeira- só nos pode levar a um impasse onde se apagam e camuflam os traços essenciais de uma sociedade dominada pelo Modo de Produção Capitalista, fase III ou IV. O que nos força a mergulhar na teoria marxista e seus continuadores no " terreno da luta de classes"-Rosa Luxemburg, Trotsky,Baran/Sweezy, C. Bethleim, por exemplo. Marx bem dizia- como o sublinha Castoriadis-que " de todas as forças produtivas da sociedade, a mais importante é a classe revolucionária ", a que ligava , sem saber como isso iria gerar o monstro burocrático de uma nova classe de exploradores,ao significado totalmente novo da alusiva ditadura do proletariado na forma de poder de Estado( " o poder das massas armadas ").Ora, embora haja outros pontos de interacção,paralelos e concomitantes a respeitar,e aqui o reducionismo branqueia toda a possibilidade de análise; Castoriadis resume bem o nó górdio da conjuntura: " A tendência profunda do capitalismo mundial precipita ,por intermédio da concentração total das forças produtivas, a supressão da propriedade privada enquanto função económica essencial para a exploração, e a fazer da gestão da produção a função que distingue os membros da sociedade em exploradores e explorados. Pelo efeito do mesmo desenvolvimento, o aparelho de gestão da economia, a burocracia estatista e a inteligentsia tendem a fusionar organicamente, a exploração tornando-se impossível sem a ligação directa com a coerção e a mistificação ideológica. Por conseguinte, a supressão da exploração não pode ser efectuada senão- e unicamente tendo isso em conta- se a supressão da classe exploradora se acompanhar da supressão das condições modernas de existência de uma tal classe; e essas condições são cada vez menos a " propriedade privada ", o " mercado ", etc, ( suprimidas pela própria evolução do capitalismo) e cada vez mais a monopolização da gestão da economia e da vida social, gestão que resta uma função independente e oposta à produção propriamente dita ".Salut! Niet

maria disse...

sendo certo que cada um é cada qual e valorizamos o que nos dá na "psicologia" , convém não esquecer que todos , todos , precisamos de almoçar e não há almoços grátis..todos temos obrigação e direito a exercer um trabalho que nos permita cuidar de nós próprios. suponho que a abolição do trabalho é brincadeira , porque ainda não se inventou batatas que se autoplantem , nem que se autocozinhem. ok , sempre podemos viver de amoras , mas só no verão , e mesmo assim temos de as apanhar.

Miguel Madeira disse...

"porque ainda não se inventou batatas que se autoplantem"

Não tenho tanta certeza disso - a batateira é um rizoma, que se auto-propaga debaixo do solo, através de rebentos que vão dando origem a novas batateiras (conta como autoplantação?)

"nem que se autocozinhem."

Pois (embora creio que as descascar, e sobretudo colher, dará mais trabalho que as cozinhar).

"sempre podemos viver de amoras , (...) e mesmo assim temos de as apanhar."

Os meus sobrinhos adoram ir aqui apanhar amoras, e eu na idade dele adorava ir ao caracol; e tenho um colega que adora ir à pesca.

Agora a questão - se "adoramos" conta como trabalho? No fundo, é a questão que levanto no penúltimo parágrafo.

maria disse...

penso que conta . eu adoro apanhar amoras , ainda hoje de crescida. e fico cheia de arranhadelas e tal. e às vezes lá calha um trambolhão no meio das silvas. e tb adoro cozinhar , mas não deixo de ficar cansada.
e ele há muitas pessoas que detestam cozinhar.
cozinhar é trabalho para quem não gosta e não é trabalho para quem gosta ? as tarefas são as mesmas.
vai ficar difícil definir o assunto..
por exemplo , um Workaholic , dado adorar , estar vociado em trabalho , não é um trabalhador ? é antes um tipo que vive para o prazer ?
eu acho é que Trabalho ganhou uma conotação negativa ( marxista?) não merecida. não confundir com exploração do trabalho de outrém..

maria disse...

peço desculpa ser chata.
por exemplo : gosto imenso de receber pessoas em casa , fazer o jantar , dar-lhes mimos e tal. é uma trabalheira. é mesmo trabalho. mas compensa. apesar de no dia seguinte ter uma pilha de pratos e a casa de pantanas e ter de a limpar e arrumar , passei uma noite bem boa e vejo uma serie de amigos contentes e desejosos da repetição da festa.
suponho é que há trabalhos cuja compensação supera o esforço que fazemos.

Miguel Madeira disse...

"eu acho é que Trabalho ganhou uma conotação negativa ( marxista?)"

Penso que a conotações negativa do trabalho até vem mais da "economia clássica", que vê o trabalho como uma desutilidade; pelo contrário, é no marxismo (não apenas, mas largamente aí) que surge a ideia que o trabalho é naturalmente a actividade pelo qual o homem se realiza, e que o facto de a maior parte das pessoas não gostarem de trabalhar e o resultado da organização social, não algo que pertença à natureza das coisas

Miguel Madeira disse...

"por exemplo , um Workaholic , dado adorar , estar vociado em trabalho , não é um trabalhador ? é antes um tipo que vive para o prazer ?"

Há sua maneira, pode ser considerado como "um tipo que vive para o prazer".