18/10/10

Estranhas hipóteses emancipatórias

O Renato Teixeira resolveu dissecar o título de um post no qual anunciava a presença em Coimbra e em Lisboa da afegã Mariam Rawi, da RAWA (Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão). Segundo ele, o lema “nem NATO, nem talibãs” só é possível a quem pode estar confortavelmente distante dos cenários de guerra – presumo que se esteja a referir a mim e não às activistas da RAWA – e configura na verdade um acto de “cumplicidade, ignorância ou cobardia”. E concretiza: “para que amanhã os afegãos tenham ainda uma hipótese emancipadora, teremos, infortunadamente, que fazer unidade com as forças de resistência à ocupação da NATO, o que no Afeganistão tem o nome feio dos Talibãs”.

O Renato, do que sei, considera-se politicamente à esquerda da esquerda, e portanto este apelo de “unidade” com o fundamentalismo religioso é eminentemente “estratégico”. Trata-se de imaginar uma grande frente anti-imperialista, animada por diferentes e contraditórias correntes internas, e passível de uma posterior síntese feliz. Esta formulação fez-me lembrar uma frase frequentemente atribuída a Hegel: “se a realidade é desmentida pela teoria, pior para a realidade”. E, neste caso concreto, pior também para aqueles e aquelas que, buscando uma hipótese emancipadora, porventura seguissem a elucubração suicida.

Talvez o Renato pudesse ter seguido o meu conselho e assistido a uma das conversas com Mariam Rawi. Tinha aí uma excelente oportunidade para a convencer da justeza da aliança com os talibãs. Ela talvez lhe explicasse algumas coisas que ele já saberá – que os talibãs cresceram com a conivência dos EUA, que boa parte do seu financiamento deriva actualmente de pagamentos para garantir a segurança e as passagens dos contentores das tropas da NATO e que muitos sectores fundamentalistas estão com Karzai – e outras coisas que, sabendo ou não, o Renato esquece na formulação da proposta. Assim, em termos crus: que se o Afeganistão tem hoje uma elevada taxa de violência doméstica, violações, suicídios de mulheres por imolação, ataques a professoras e alunas, e continua a ser o pior país do planeta para se nascer, a situação durante o domínio aberto dos talibãs era ainda pior. Que se a actuação de organizações laicas e democráticas, como a RAWA, é hoje em dia muito difícil, e ainda coberta de precauções e vigilâncias, durante a liderança do camarada Omar era impossível ou feita sob o manto da mais rígida clandestinidade.

O Zé Neves já escreveu sobre a necessidade de sermos um nadinha mais internacionalistas e um nadinha menos simplistas. O Hugo Dias demonstrou agora o quão suicidária é a ideia de que o inimigo do meu inimigo, meu amigo é. Pode ser reconfortante para quem não concebe ou não conhece as terceiras trincheiras, em muitos casos, como neste, as únicas habitáveis. Pode ser reconfortante, repito, mas é tudo menos uma hipótese emancipatória.

3 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Excelente post, intrépido camarada Miguel C.
Abrç solidário

miguel sp

Ricardo S. Coelho disse...

"O Renato, do que sei, considera-se politicamente à esquerda da esquerda"
Acho que ele está ainda mais à esquerda que isso. Andou tanto para a esquerda que deu a volta ao mundo e agora anda a apoiar os revolucionários Talibãs contra os imperialistas Ianques. Antes apoiar o fascismo islâmico que ser equidistante - fica o mote deste grande teórico da esquerda, tão incompreendido entre o povo.

Semeador de Favas disse...

Por princípio estou de acordo com este post. Mas, infelizmente, a frase de Hegel é carapuça que tanto me serve a mim como ao Miguel Cardina quanto à própria Mariam Rawi.
Esta questão levanta dúvidas que a escavação de uma terceira trincheira não dissipa, de modo algum.
De que armas dispõem - para aplicar no terreno no presente contexto - os soldados da «terceira via», para além da solidariedade interna e internacionalista dos princípios?
Como podem combater - militar e ideologicamente - em duas frentes sem nunca caírem em qualquer tipo de oportunismo ou colaboracionismo?
Podem sabotar simultâneamente tanto a ideologia obscurantista como as operações militares dos ocupantes? Têm sequer força material e humana para uma delas?
Coloco estas questões sem qualquer ponta de cinismo. Não tenho mais do que pontos de interrogação.