À laia de comemoração de mais um aniversário da Revolução Húngara de 1956, recomenda-se aqui a leitura deste texto de Thomas Feixa, publicado por Le Monde diplomatique, em 2006 - aqui, na versão brasileira de Márcia Macedo -, que poderá ser uma boa introdução à importância do debate sobre a experiência do Outubro Húngaro, na perspectiva daquilo a que Amador Fernández-Savater, na esteira de Castoriadis, chama "reconstrução das pontes queimadas" da "exigência revolucionária" e da sua actualidade histórica.
Budapeste, 23 de outubro de 1956. Organizada pelo Círculo Petofi, um grupo de estudantes e intelectuais húngaros, uma manifestação em solidariedade aos poloneses põe fogo no barril de pólvora. Quem são os insurgentes? Segundo o jornal Le Figaro, militantes cuja intenção era a de restaurar uma "democracia" à moda ocidental, seguindo as leis do capitalismo. A máquina de propaganda do Partido Comunista Francês não tinha a intenção de mostrar o contrário, pois para ela os instigadores do levante de Budapeste eram agitadores contra-revolucionários. Os crimes do stalinismo certamente já haviam sido reconhecidos, mas eram atribuídos a uma personalidade perturbada. O Pravda também explicara que "o culto da personalidade é um abscesso superficial no órgão perfeitamente são do partido", o proletariado e a revolução permanecem no poder, não apenas na União Soviética, mas também em todas as "democracias populares". Como o proletariado na Hungria poderia, então, voltar-se contra si mesmo?
Vejamos agora a originalidade das análises feitas por Socialismo ou Barbárie, um periódico comunista tido como marginal, mas cuja influência estará, por exemplo, fortemente presente em maio de 1968. "Órgão crítico de orientação revolucionária" (é o sub-título do periódico), Socialismo ou Barbárie foi co-fundado em 1949 por dois dissidentes do trotskismo, Claude Lefort e Cornélius Castoriadis. A partir de dezembro de 1956, ele dedicou quatro edições à elucidação do evento húngaro, utilizando textos, convocatórias e palavras de ordem difundidas por insurgentes, estudantes e operários.
Para Castoriadis, é antes de tudo imprescindível "dissipar o nevoeiro da propaganda (que utiliza de todos os meios para dissimular a realidade sobre a revolução húngara), para mostrar as verdadeiras tendências proletárias e socialistas dessa revolução". As análises áridas e confidenciais de Socialismo ou Barbárie parecem partilhar dos objetivos e práticas dos insurgentes húngaros. A revolução dos conselhos operários, que toma forma em Budapeste, Györ, Miskolc ou Pecs parece confirmar a pertinência de um projeto revolucionário ao mesmo tempo radical e igualitário. Os acontecimentos de Budapeste, modelos para o desencadeamento de uma revolução democrática, constituem, segundo Lefort, a primeira revolução anti-totalitária e abrem a perspectiva de um socialismo que se opõe à ideologia leninista e todas a suas variantes.
Revolução sem vanguardas
Assim como a revolução russa de fevereiro de 1917, a insurreição húngara opera espontaneamente. O poder monolítico do partido-Estado decompõe-se em poucos dias, diante de um conjunto de movimentos rebeldes, "centrífugos" e autônomos. Essa revolução socialista, "de múltiplos focos", segundo Castoriadis e Lefort, desenvolve-se distante de qualquer vanguarda revolucionária, e contra a própria idéia de uma subordinação a eventuais "profisisionais" da revolução. Sendo assim, ela reabilita as formas políticas de luta radical: a greve geral e a criação de conselhos autônomos operam sobre uma plataforma de democracia direta.
Ela também se choca contra a fórmula do partido revolucionário defendida por Lênin e por Trótski: a de uma organização autoritária e centralizadora, na qual as decisões são tomadas por uma elite sábia e restrita. A insurreição húngara ilustra a autonomia dos movimentos revolucionários, fazendo jus à auto-emancipação do proletariado, idéia preciosa a Karl Marx. E é aqui onde se encontra o coração do marxismo heterodoxo de Socialismo ou Barbárie. A despeito do que pensaria o autor de Que fazer?, a "consciência socialista", longe de nascer de uma sabedoria exclusiva a uma elite ou vanguarda, é produto de uma experiência coletiva de combate em prol da inversão da ordem estabelecida.
A partir do dia 25 de outubro de 1956, a estimativa de Lefort é de que "a Hungria está povoada de conselhos, cujo poder passa a ser o único, além do exército vermelho". Em suma, a atividade espontânea e radical dos insurgentes ilustra sua criatividade política e resulta na instituição de conselhos operários. Esses conselhos não constituem formas políticas transitórias: ao contrário, eles tendem a substituir a lógica centralizadora do Estado pela sua lógica democrática.
O "socialismo dos conselhos"
Quem fala de socialismo de conselho refere-se, simultaneamente, ao controle dos representantes, à vontade de repudiar toda tendência oligárquica, à esperança de impedir toda autonomização do poder. A adoção do mandato imperativo – que foi considerado inútil por todas as consitutições republicanas francesas e cujo princípio não é aceito por nenhuma grande formação política, inclusive em seu funcionamento interno – constitui um dos pilares do conselhismo. Ele visa impedir a dissociação entre uma minoria dirigente e uma maioria executante. Em oposição ao mandato representativo, ele instaura a revogabilidade permanente de todo mandatário: o representante é encarregado de aplicar as instruções daqueles que o elegeram. Já o sistema de mandato representativo lhe concede uma independência total: uma vez eleito, ele torna-se a voz da Nação, e não mais a de seus mandatários.
No dia 28 de outubro, o Conselho de Szegel passa a reinvidicar a autogestão operária. Outros conselhos ou comitês de fábrica (que continuam a proliferar) seguem a mesma trajetória. Em 2 de novembro, a Federação da Juventude proclama: "Nós não devolveremos a terra aos grandes proprietários, nem as fábricas aos capitalistas". Para Castoriadis, a revolução húngara assemelha-se a um anti-capitalismo real, que atinge as próprias relações de produção e não se satifaz, por meio do socialismo, com a abolição do regime de propriedade privada. De acordo com Lefort, o regime stalinista permitiu que os operários húngaros compreendessem algo essencial: "a exploração não é resultado da presença de capitalistas privados, mas da divisão, feita nas próprias fábricas, entre aqueles que decidem tudo e aqueles que apenas obedecem". A estatização dos meios de produção – ou sua nacionalização – não conseguiria conferir uma característica socialista à produção. Tal erro acabaria por encobrir a realidade de um sistema de exploração nunca antes visto, que em 1956 foi desmantelado pelos insurgentes húngaros.
A revolução de Budapeste provocou fissuras em uma construção tida como invulnerável. Ela proporcionou uma invenção democrática sem precedentes e sem relação alguma com o que Castoriadis chamava de nossas "oligarquias liberais". Contra o totalitarismo, a revolução. Tal oposição põe em xeque toda uma historiografia conservadora. Aquela que, de François Furet a René Rémond, confunde "gulag" com fenômeno revolucionário.
26/10/10
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6 comentários:
MS.Pereira: O artigo tem o seu valor e interesse pedagógico, se bem que contenha algumas inexactidões- uma delas, a maior e mais grave- é a de tentar catalogar a revista " Socialisme ou Barbarie " como um orgão comunista. No sentido de Kropotkine, sim, efectivamente... " Sabem que a insurreição começou porque no dia 23 de Outubro a polícia secreta( que se chamava A.V.H.) abriu o fogo sobre uma multidão de manifestantes desarmados ? ", diz Castoriadis num grande texto sobre o desenrolar da sublevação inserto no n°.20 de Dez.1956 de S.ou Barbarie. Nota importante- até para se verem as " facilidades " da Imprensa, mesmo de qualidade...- o primeiro Conselho Operário a rclamar a gestão operária das fábricas foi o da vila de Szeged. Liberté et égalité. Niet
Vigilante camarada Niet: Obrigado pela achega, mas a inexactidão é relativa, como tu próprio explicas - porque, efectivamente, era como comunistas que os militantes do grupo se designavam. Sobre a evolução terminológica do próprio Castoriadis - a sua preferência, a partir dos anos 70, por chamar "autonomia", "autonomia democrática", "democracia" ou "projecto de autonomia" e "sociedade autónoma" ao que antes, nas suas próprias palavras, visava quando falava de "socialismo" e "comunismo" - ver a introdução a Le contenu du socialisme", Paris, 10-18, 1979.
Salut!
msp
MS.Pereira,intrépido autonomista! Remarque muito importante a tua, meu caro. Bem topaste que andava a focalizar as minhas notas em textos anteriores a essa data, bom malandro! E depois temos os textos de 1975 da Instituição Imaginária... Vou já ver a raiz do problema(s)! E não podias propor na praça lisboeta uma nova Antologia de Castoriadis- com textos seleccionados por ti? É que está tudo mais do que esgotado- mesmo em Paris! Liberté et égalité! Niet
O melhor ensaio que já li sobre o assunto foi de Ferenc Feher e Agnes Heller.
Sr. Anónimo das 13.45. Agnes Heller( e creio que o seu colaborador Feher também) eram grandes amigos de Castoriadis. Ela húngara, discípula de G. Lukács, participou com um artigo no livro de Homenagem a C.Castoriadis- "Autonomia e Autotransformação da Sociedade", publicado pela célebre editora Droz, de Genève, em 1989. A bibliografia de A.Heller parece muito extensa, já, e vive hoje em New York.Parece ser uma das maiores especialistas mundiais da obra de G. Lukács. Niet
Os textos políticos decisivos de Castoriadis- MS. Pereira relançou e, por preclaro golpe de génio e audácia, colocou mais um patamar empolgante no processo de análise e definição do projecto revolucionário com a indicação do imenso avanço teórico dos textos que compõem o volume sobre " O conteúdo do Socialismo ", que foi posto à venda em Outubro de 1979. Justamente, Castoriadis ataca sem dó nem piedade os vectores mais inconsequentes do legado marxista-leninista:" O que está aqui em jogo é qualquer coisa de mais profundo do que o termo de " ditadura do proletariado " ou mesmo de " proletariado". É toda a teoria das " classes ", toda a soberania imputada à economia pelo imaginário capitalista e integralmente herdado por Marx, enfim, toda a concepção da transformação da sociedade ". " A preparação histórica, a gestação cultural e antropológica da transformação social não pode e não puderá ser obra do proletariado, nem a titulo exclusivo, nem a título privilegiado.Está fora de questão acordar a uma categoria social particular, qualquer que ela seja, uma posição soberana ou " hegemónica" .(...) Assim como não podemos hierarquizar os apoios das diversas camadas da sociedade em relação a qualquer um deles". Urge ler, discutir e aprofundar este conjunto radical de teses no sentido preciso que Castoriadis advoga: " Uma sociedade justa não é uma sociedade que adoptou, uma vez por todas, leis justas. Uma sociedade justa é uma sociedade onda a questão da Justiça permanece constantemente aberta- dito de outra forma,onde há sempre possibilidade socialmente efectiva de interrogação sobre a lei e o fundamento da lei. Isso quer dizer, que ela está constantemente no movimento da sua auto-instituição explicita( À suivre, donc!) Liberté et égalité! Niet
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