Caro Miguel Serras Pereira,
Acabo de ver com estupefacção que leste aqueles meus artigos. Nunca pensei que alguém em Portugal os lesse. Mas quero dizer-te que estou de acordo com as ressalvas finais que fazes. No Brasil, uma boa parte do que se denomina Movimentos Sociais visa precisamente o que chamas «a transformação da praça pública». Penso que, com o fim da grande empresa fordista, com a precarização das relações de trabalho e com a diluição da fronteira que antes separava os ócios da actividade laboral, também deixou de existir uma diferenciação nítida entre espaço de trabalho e espaço público. Movimentos como o dos sem-tecto e o do passe-livre, além de outros localizados geograficamente, contam-se entre os elementos principais da luta anticapitalista no Brasil, embora a sua acção não ocorra dentro de empresas. O mesmo se passa no México e decerto noutros países. Mas estes movimentos contribuem para pôr em causa o capitalismo precisamente porque não reproduzem os interesses corporativos, especialmente não reproduzem a fronteira que separa os assalariados do Estado daqueles outros assalariados que trabalham para patrões privados. Ora, é aqui que entra a questão dos sindicatos. Numa longa resposta que dei a um leitor, no último artigo da série que mencionaste, escrevi a certo passo:
Se suceder desta vez o que sucedeu noutras ocasiões, a maioria dos trabalhadores em países onde a economia está em recessão ou estagnada, ou seja, nos Estados Unidos, no Japão e em alguns países europeus, preferirá aceitar uma descida do nível de vida a pôr em risco a continuidade dos empregos e contribuir para o aumento da taxa de desempregados. Contrariamente ao que sucede com os professores universitários e com os alunos que dispõem de bolsas de pesquisa e que, portanto, podem ganhar a vida tranquilamente dando aulas e escrevendo monografias acerca da crise terminal do capitalismo e do horizonte de lutas que se avizinha — ou que já está aí — os trabalhadores ganham o sustento vendendo a força de trabalho e só optam pela revolução quando sentem que ela é uma alternativa viável a muito curto prazo. É por isso que há mais «revoluções» nos campi universitários do que fora deles. Em alguns daqueles países, nos serviços públicos, onde os sindicatos ainda são relativamente fortes, é possível fazer greves que, pelos seus efeitos colaterais, paralisem ou retardem outros sectores da economia. Mas não se trata nestes casos de um confronto de classes, e pretendi chamar a atenção para isso no último artigo da série, infelizmente em poucas palavras, porque o artigo já estava demasiado longo. Porém, se o confronto se ampliar do sector público para as empresas privadas o caso muda de figura, e então já será posível falar de uma luta anticapitalista. Se tal ocorrer, a França será a primeira candidata porque, de todos os países da Europa ocidental, é aí que a taxa de sindicalização é mais baixa. Por isso a França tem tido as lutas mais radicais, sem sindicatos suficientemente poderosos para as poderem conter.
Para avaliar as actuais lutas em França, é conveniente recordar que a França não é um dos países em crise na zona do euro. E é bom saber que 20% da população activa francesa estava sindicalizada na década de 1970, percentagem que caiu para 10% nos meados da década de 1980, para 9% nos últimos anos da década de 1990 e para menos ainda na década actual. A extrema-esquerda portuguesa devia meditar sobre isto, quando implora às centrais sindicais o favor de fazerem a revolução que nós não somos capazes de fazer
Cordialmente,
João Bernardo.
3 comentários:
MS. Pereira: Não brincas em serviço, meu caro. Óptimo texto intercontinental e belas e dinâmicas(!) ideias sobre o que são hoje as Greves de Massas. A radical Rosa Luxembourg bem nos tinha advertido contra as "teorias pedantes" e as " pequenas guerrilhas sindicais " onde, quando se misturam ´a priori `os cálculos e as estatísticas dos estados-maiores partidários e sindicais tudo se perde...no jogo reformista, das concessões nas costas dos trabalhadores e no segredo dos acordos de gabinete. É o que se está a passar em França. João Bernardo determina um justo ângulo de visão e joga com desassombro nos sortilégios da espontaneidade revolucionária. Que é a única forma de se neutralizarem os instintos burocráticos e demissionários dos partidos clássicos. " O que temos necessidade é de menos " disciplina ", de menos " educação política ", de menos precisões sobre os custos e consequências que, em oposição, de uma acção de classe resoluta e verdadeiramente revolucionária, capaz de tocar e envolver as camadas mais extensas das massas de proletários inorganizados, mas revolucionários pela sua simpatia e a sua condição ", R. Luxemburg,1906. Niet
Caro Niet, quem, na circunstância, não brinca em serviço é o João Bernardo. Eu limitei-me a ceder-lhe a minha antena - ou convidei-o a ocupá-la - para precisar melhor as suas posições e concepção do "espaço público".
É uma honra tê-lo feito e ter podido contar com a sua disponibilidade para esta colaboração com o Vias.
Salut, et bon vent
msp
Para além da frescura e da radical irreverência das ideias do João Bernardo, sobejamente sublinhadas e festejadas pelo Niet, o que não deixa também de me espantar é o facto de elas virem de um país com economia em crescendo, o que poderia explicar algumas esperanças no sistema, ao invés do que acontece num país como Portugal, onde o seu estado de agonia não inspira mais do que umas institucionais e ordeiras greves, e umas loas sobre o que não seria o derramar de graças e bençãos, se eventualmente fosse conseguida a eleição de Manuel Alegre.
nelson anjos
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