É possível sustentar que a Proposta de Resolução Comum votada pelos deputados do BE e por Rui Tavares no Parlamento Europeu deixa a desejar nos seus considerandos e chega muito tarde. Mas o que é, de facto, arrepiante é que os recentes "amigos de Kadhafi" (ainda há pouco tempo, alguns deles se contavam entre as mais tonitruantes vozes que denunciavam o seu regime) apresentem o apoio do BE ou seja de quem for à dita (e insuficiente) proposta de resolução como o prelúdio de uma invasão imperialista da Líbia.
Assim, tendo em conta o desvario propagado por posts como os hoje publicados pelo Bruno Carvalho e Renato Teixeira — que bem poderíamos definir como "o alucinado [que se pensa] na praça Tahir"— posts que cito apenas a título de exemplos extremos de uma atitude infelizmente partilhada por sectores de "esquerda" bem mais vastos, retomo e condenso as razões que desenvolvi nos últimos dias contra a resignação à Europa realmente existente e sobre a urgência de apoiar o campo dos revoltosos na guerra civil que assola a Líbia. A contra-ofensiva de Kadhafi, que conta com uma superioridade de meios esmagadora, torna ainda mais prementes essas razões.
Com efeito, nunca será demais repetir o seguinte: o que qualquer movimento democrático, intervindo na UE, deveria exigir desde o começo da guerra civil na Líbia seria que, invertendo a sua política de relações privilegiadas e cumplicidade com Kadhafi, os governos europeus reconhecessem o Conselho da frente dos revoltosos e apoiassem a luta destes, em termos acordados com eles - sem excluir o recurso aos meios que se revelassem necessários.
Esta posição deveria ser assumida pela UE como iniciativa própria e tomada fora do quadro da NATO, independentemente dos EUA e sem ficar suspensa do aval das Nações Unidas (ainda que reclamando-o). E, de resto, convém dizer que é diferente reivindicar uma intervenção da UE, como aliada do "campo republicano", ou mesmo uma intervenção supervisionada pelas Nações Unidas, e reclamar a intervenção da NATO (por isso também, no meu entender, o BE e os que, no essencial, o acompanham na avaliação da situação que se vive na Líbia, deveriam insistir neste ponto).
Trata-se, sobretudo, de não esquecer que qualquer posição do tipo "abstencionista, ainda que mais temperada nos seus argumentos do que as assumidas nos posts acima referidos, funciona como "amiga de Kadhafi", uma vez que:
1. não impede a intervenção na Líbia, mas contribui para que ela venha a ser decidida e praticada em termos não concertados, como seria desejável, com o "campo republicano" — e na perspectiva de assegurar os mesmos interesses oligárquicos que apoiaram Kadhafi;
2. confunde estupidamente o apoio a um dos campos de um país em guerra civil com a violação do direito à autodeterminação do seu povo, e, no terreno, o seu "programa" só pode beneficiar as forças da ditadura;
3. além de, em vez de apostar no reforço de um movimento democrático na Europa, capaz de inflectir as suas políticas e de questionar as instituições vigentes na UE, aceita a lógica e a realidade da actual UE como um facto consumado e uma fatalidade histórica, da qual só poderíamos ser salvos pela acção de terceiros mitificados (não se sabe que vago "terceiro mundo" ao certo) e objectos passivos de uma redenção não menos despótica nem menos baseada na negação da democracia do que o regime global imposto aos seus súbditos globais pelo actual "império".
Post scriptum: Ao que parece, nem Miguel Portas nem Marisa Matias terão votado o ponto 10 da Proposta de Resolução. Como disse atrás, a formulação do documento deixa a desejar sob vários pontos de vista. É de supor, portanto, que o Miguel e a Marisa não tenham querido avalizar uma "intervenção militar" unilateral na Líbia - isto é, imposta ao campo dos revoltosos em termos que excedam o apoio que reclamam. De qualquer modo, mantenho a minha posição e insisto em que é necessário distinguir o apoio, envolvendo eventualmente a intervenção de meios militares e decerto o fornecimento de armas e outros recursos logísticos, que deve ser prestado aos que combatem Kadhafi, e uma intervenção militar decidida e imposta do exterior ("unilateral", organizada segundo os critérios e os interesses que levaram a que a UE, no seu conjunto, tenha apoiado e legitimado o regime de Tripoli).
14/03/11
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2 comentários:
MS. Pereira: Hillary Clinton foi hoje a Paris, meu caro. Acho que não é preciso dizer mais nada: Sarko recebeu-a como um Chefe de Estado, no patamar da entrada do palácio do Elysée... Tenho lido uns papers num grande blogue norte-americano que angaria opiniões dos supersumos das Universidades e think tanks USA: há um enorme suspense no Espaço Público de alta calibragem teórica face à avaliação da atitude dos USA/NATO e UE para com a Líbia. O precedente da invasão do Iraque e do Afganistão pesa muito em todos os tabuleiros... Os USA comandam- diplomaticamente e militarmente- as operações contra a Líbia do coronel Kadaphi. A NATO e a UE podem ser obrigadas a aderir ao xeque-mate norte-americano, se ele for avante. O que parece, é que há sérias divisões no interior dos corredores do poder dos USA. E os velhos aliados europeus desejam precaver-se face a mais uma " aventura ", claro. A França, especialmente o novo MN. Estrangeiros Alain Juppé,jura desde a primeira hora que não quer fazer nada sem o aval do Conselho de Segurança da ONU. Uma intervenção militar na Libia, mesmo Roberto Gates o tem deixado claro-irá causar novos e mais extensos problemas à imagem e influência política do Mundo Ocidental no Médio Oriente, zona estratégica mundial/ principal de aprivisionamento em petróleo e gás natural. E onde os russos e os chineses se esfolam para se reinstalar- no caso russo, sobretudo- o que, a médio prazo, pode vir a causar muitos e graves problemas de controlo sobre essas matérias-primas essenciais.Niet
excelente post.
é difícil sair dos espartilhos das etiquetas. Kadhaffi tem o carimbo de "anti-imperialista". Isto estabelecido, pode fazer gato sapato lá na sua quinta que em termos de PR está protegido pela esquerda pavloviana. é uma ética bizarra. Apoiam-se os revoltosos porque sim, sem se saber muito sobre as suas motivações mas quando chega a altura de pegar em armas, vale tudo, tudo, menos "agressões imperialistas". agoniante.
a consequência é que é preciso ter coragem para escrever este post sem temer os insultos reles que se seguirão.
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