Nas Assembleias Populares do Rossio têm-se discutido várias questões logísticas. Algumas que passam por temas como limpeza e arrumação do sítio. Não são as discussões mais importantes do mundo. Mas no mundo imperfeito daquela acampada são discussões incontornáveis. E talvez sejam discussões mais complicadas do que será de supor à primeira vista. Por exemplo, nelas transparece, por vezes, um indisfarçável orgulho relativo à eficiência do trabalho colectivo. Um pouco à imagem de um comício do PCP, em que todos arrumam tudo, facto que por vezes merece uma notinha de louvor nas reportagens jornalísticas - "porque o PCP, já se sabe, é um partido diferente". E isto é fixe. Mas também há, naquelas discussões, por vezes, sinais de alguma tendência para excessos de controlo sanitário. Do tipo de control de acampadas de Escuteiros. E isto, diria eu, já não é assim tão simpático. A fronteira entre uma e outra coisa, entre o "bem" do trabalho em comum e o "mal" da comunidade enquanto autoridade sufocante, não é absolutamente clara, bem sei; seja como for, estas são questões para se discutir por lá, na Assembleia, ou aqui, mas numa outra ocasião.
Passemos agora ao mundo perfeito em que vivem alguns dos críticos da acampada, tema deste post. Nesse mundo perfeito é claro que aquelas dicussões seriam dispensáveis. Sê-lo-iam nomeadamente porque ou existiriam seres humanos especializados em tarefas de limpeza que lhes ocupariam o dia-a-dia por anos a fio; ou as mulheres que têm participado na acampada seriam imunes às pérfidas ideologias feministas que lhes meteram na cabeça que não são elas que, necessariamente, têm que fazer a limpeza do sítio; ou os homens da praça não estariam a sofrer de desvios a nível da sua masculinidade, desvios a tal ponto graves que lhes impedem de pressupor que são as mulheres que devem dar conta do recado; ou, por fim, os níveis de higiene média dos acampados seriam tão ordinários como os de que se orgulha este javardo (ele que mostre o estado em que ficou a sua cozinha para que fizesse vir ao mundo o triste espectáculo retratado nesta fotografia).
É também neste mundo perfeito, algures numa das suas alíneas, que vive, é claro, a nossa Fernanda Câncio. Foi ao Rossio, tirou uma fotografia ao acampamento, tirou a fotografia à zona que se encontrava menos limpa, disse que aquilo era a acampada. Entretanto, foi-lhe dito, nas caixas de comentários, que aquela era justamente a zona do acampamento onde o lixo tem sido arrumado. Ainda assim, a nossa jornalista continua a achar que não há nenhuma má-fé no seu post inicial. E nas caixas de comentário do post é inclusivamente socorrida pela sua colega Irene Pimentel, que acrescenta ter passado pelo Rossio às 9h da manhã do dia não sei quantos e que nem sequer vai "falar do cheiro". E no entanto o cheiro é, meus amigos, uma questão da mais candente actualidade.
Sei que, perante o alto nível intelectual deste debate, é difícil conseguir ainda mais elevação, mas vamos tentar, todos juntos e com recurso à chamada abstracção. Assim: um dos problemas nestes debates sobre limpezas e cheiros é que nunca se sabe até que ponto o problema está no ar que se respira ou nos detritos que vivem acampados no interior das nossas paredes nasais; e que necessariamente filtram o nosso contacto sensitivo com a realidade exterior. É a velha questão dos limites da objectividade do conhecimento. O ar que respiramos é nosso ou não é nosso? Trata-se de uma questão que não será por certo estranha a uma jornalista e a uma historiadora que se encontram entre as mais distintas defensoras do código deontológico das respectivas profissões.
Se me permitem um acrescento ao debate, contudo, diria que uma senhora antropóloga, que nunca cheirei mas que ainda assim já tive o prazer de ler, de seu nome Mary Douglas, escreveu em tempos umas coisas que podem ajudar à necessária clarificação deontológica. Seguindo-a, diríamos que, se quisermos aferir o estado de limpeza do Rossio, talvez seja estratégia prudente começar por questionar o estado de sujidade sensorial de observadoras tão distintas como as nossas duas jugulares. Uma "História Higiénica da Acampada do Rossio" poderá, por isso, ter dois capítulos, diríamos, meta-higiénicos. O primeiro intitulado "Uma sociologia da axila de Fernanda Câncio" e o segundo "Etnografia do hálito de Irene Pimentel". Como tenho participado nas assembleias, não estou em condições de realizar este estudo, mas outros praticantes da ciência dos homens que iniciem o trabalho de campo necessário a esta empresa.
A politologia agradece.
29/05/11
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
10 comentários:
tendo embora achado que este post está relativamente espectacular, e não conseguindo, a propósito do mesmo, citar nenhum autor estrangeiro relevante (muito menos mulher), eu (não sei se a fernanda cancio e a iren e pimentel sentem o mesmo) fico com a sensação (digamos, o cheiro) de ter sido mal interpretado no lugar que a documentação da javardice deve ter no universo da crítica (palavrinha demasiado ambiciosa para os meus calcanhares, mas como estou a falar de pessoas que querem "pensar esta sociedade", perfeitamente admissível) que lhe faço. pela minha parte, a característica que torna notória a porcalhice que prevalece naquele espaço é, em essência, a mesma (rigorosamente a mesma) que faz sobressair aos meus olhos os cabelos escovados, as camisas a sair por baixo dos pull-overs, os sapatos vela e os botões doutarados dos blazers dos agrupamentos da Juventude popular. a javardice (o sentar no chão, as rastas, as t-shirts qu não são marca levis - onde é que já se viu! -, as calças, os calções, etc etc) é uma manifestação (um epicentro) de algo que corre mais fundo, e que eu não considero e talvez até despreze; por me aborrecer, e talvez por não ter vontade de aprofundar, essas superficialidades são, a meu ver, um excelente substituto à documentação exaustiva e ao pensameno metodico, uma magnífica ilustração para um preconceito. mais em concreto: por baixo da propaganda de democracia verdadeira e de que todos terão o direito a ser ouvidos e que vão ali pessoas muito diferentes e de todas as classes sociais e mais não sei o quê, o que vejo não acrescenta sem subtrai um milímetro que seja à demoracia que eu conheço; veja-se que não se perdeu tempo a que saisse um comunicado da assembleia popular a querer fortalecer os laços com a resistencia palestiniana: ou seja, aquilo mais não é que uma forma de meia duzia de priápicos (?) politicos avançarem com as suas causas particulares. aquelas pessoas e as suas opiniões, todas elas, estão representadas na democraciazinha burguesa: no pcp e no be; estão é fora do pote e do circo institucional, e a sua juventude não admite que se sintam ignorados. a tentativa de dar àquele teatro qualquer relevancia mais lata na sociedade portuguesa esbarra na jarvadice, mas não na javardice que deixam pelas ruas, mas na previsibilidade uniforme de como aquilo tudo se "organiza". no fundo, o que se afrima é que não há "javardices" do centrão, não há javardices do cds, não há javardices do PNR; nem lá querem javardices a dizer "cgtp inersindical", que isso podia javardar a aparencia de democracia vrdadeira. só ha javardos de esquerda, de uma certa esquerda. mas com javardas giras, isso não há duvda; quando estive mais magro passo por lá para participar.
(não vou rever esta merda, por favor, não me azucrinem os cornos)
PS: o professor doutor, o "interior das paredes nasais" chama-se epiteli nasal.
maradona
Brilhante, camarada Zé Neves. E audaz, também: atreveres-te a falar em "ciências do homem", indiferente às fulminações das correctissimamente fracturantes jugulares, hombre!
Abraço
miguel(sp)
maradona, os teus posts sobre o rossio são excelentes, a léguas de distância dos posts do jugular, por isso não te irrites, era só a ver se estavas atento. a malta no rossio até fala dos posts. a esquerda hoje está menos sizuda, é uma chatice, e até há quem se ria de si mesmo. olha, na verdade, os teus post sobre o tema são bem melhores que este teu comentário. agora, de qualquer dos modos, obrigado pelo epiteli.
A Dona Irene Pimentel quando passava noites e noites na Rua Alexandre Herculano nº 55 na sede da OCMLP a lutar pela revolução popular, também não cheirava muito bem. Mudam-se os tempos...
não é "epiteli nasal", é epitélio nasal, epitélio nasal; as minhas desculpas
maradona
não é "epiteli nasal", é epitélio nasal, epitélio nasal; as minhas desculpas
maradona
Post e comentários muito diáfonos e sublimes. Em Paris, o acampamento da Bastilha também está um pouco murcho e não tem tendas. O blogger Maradona tem imensa piada e estética- verdadeiramente surpreendente e revolucionária- como dizia Deleuze. A nova geração será deleuziana? Um texto de Bakunin para lembrar algumas coisas importantes: " A sociedade- não falo do povo- a nossa sociedade( isto é, a das classes e dos circulos mais ou menos privilegiados), indissoluvelmente ligada ao Estado e não existindo senão por ele, só se pode emendar destruindo-se definitivamente. O que não se ilude com sonhos orgulhosos e miragens, belas e estéreis aspirações e vão palavreado, que quer verdadeiramente o triunfo da revolução..., isto é, a emancipação do povo, deve desejar a destruição radical desta sociedade. Mas poderei dedicar-me sincera e inteiramente a esta destruição, a esta causa e a servir tanto que subsistem, entre esta actual sociedade e eu,mesmo só vagas ligações ditadas pelo interesse, o amor da glória, a ambição, a rotina, a família e outras razões afectivas? Não, não estarei em condições. É preciso romper todas essas dependências? É preciso. E se não tiveres coragem para romper com tudo isso, não te engajes na acção revolucionária ". M. Bakunin,20 Junho 1870. Niet
apesar do movimento em si aparentar ares de semi-novo e não passar de uma cópia do que se faz lá fora é interessante ver a falta de dimensão do nosso
e a desmobilização e volta a casa dos papás quando chove
tirando isso a praça sempre foi sujinha mais cagadela menos mijadela
Há coisas que podem ser ditas fotografando ou desfotografando, dependendo para onde se está virado no momento. Por exemplo, há não muitas décadas atrás um senhor chamado Trotsky foi desfotografado
Maradona, não deixas de ter alguma razão, mas só alguma.
Se a menina dá à anca sempre que se cruza com um homem, para ti não passa de uma vaidosa. A mim deixa-me a perguntar Será que lhe morde alguma coisa?
Enviar um comentário