04/05/12
Idealização, apoucamento, juízo político e responsabilidade (uma tentativa de resposta ao Zé Neves)
por
Miguel Serras Pereira
Zé, julgo que compreendo a tua intenção. E aprovo o que escreves quando dizes que não devemos "apoucar" os consumidores que, de algum modo, responderam positivamente à campanha do Pingo Doce no Primeiro de Maio. Dito isto, creio também que, a pretexto de os não "apoucar", renunciarmos a exprimir um juízo político claro sobre a sua adesão à campanha é, na realidade, apoucarmo-nos a nós, e às nossas convicções, ao mesmo tempo que nos leva a assumir perante os protagonistas da adesão uma atitude paternalista, que os desrespnsabiliza e, por isso mesmo, apouca.
Não podemos endereçar-nos, como cidadãos comuns, à (pelo menos potencial) autonomia dos outros cidadãos comuns — sem cuja acção a autonomia democrática que queremos para eles e para nós, e uma coisa porque outra, não poderá abrir caminho que valha a pena — abstendo-nos, ao falar deles, para eles e, sobretudo, com eles, de os julgar e responsabilizar politicamente pelo que dizem e fazem. Ora, a verdade é que a campanha do Primeiro de Maio do Pingo Doce foi uma acção política do "capitalismo no seu melhor", como escreveu a nossa camarada Ana, e que a acção dos que aderiram à campanha funcionou, tanto quanto vejo, em benefício dos que a lançaram, legitimando-os, e deslegitimando e reprimindo a persepctiva de uma alternativa ao seu modo de organizar e governar a vida na cidade.
Portanto, se consideramos que a campanha do Pingo Doce foi uma iniciativa de reforço da oligarquia governante e dos seus interesses, temos de considerar do mesmo modo que aqueles que contribuíram para o seu sucesso, contribuíram para uma derrota das perspectivas e interesses da democratização em que apostamos como alternativa. E é isso mesmo que devemos dizer(-lhes), se não os quisermos apoucar e/ou aprovar a sua resignação ao apoucamento que, reduzindo-os à condição de súbditos do governo dos "superiores", os mantém afastados do governo democrático das suas próprias vidas.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
5 comentários:
Concordo com o que diz, mas não incorpora um facto que traduz toda a realidade do acontecido, é que a acção decorre num cenário de necessidade,de incerteza no futuro, num quase estado instintivo de sobrevivencia e nessa condição não há valores que se sobreponham,o estomago é o primeiro império.
Que eu saiba carregou-se de tudo...mas o que não era prioritário para o estomago!
E não se pode sequer afirmar que a maioria era desempregados e velhos reformados necessitados. Por outro lado só as rações de combate duram alguns anos pelo que daqui a um mês ou dois todos estão com o mesmo problema...
Falar de estado de sobrevivência, mera retórica, é justificar o rebanho a caminho do matadouro.
Os únicos que tiveram um comportamento racionalmente compreensível foram os paquistaneses que foram abastecer o seu pequeno comércio...
Caro Anónimo,
não subestimo a necessidade. E, sem dúvida, que a aposta da campanha era explorar o estado de necessidade daqueles a quem se endereçava. Mas o estado de necessidade tem diversos graus. E dizer que aqueles que aderiram à campanha o fizeram presas de um instinto de sobrevivência irresistível, como que sob pena de morte, parece-me um exagero. De resto, se assim fosse, pode perguntar-se porque não saquearam as lojas sem pagar, etc., etc.
Cordialmente
msp
A Jerónimo Martins sabe de análise sociológica tardo-capitalista. A crise do público e do comum, o aumento da importância da esfera privada levam à substituição paulatina dos direitos de cidadania pelo direito ao consumo e à substituição do interesse na participação política pela participação no consumo. Ainda que a política e a economia excluam, se o consumo simula a inclusão através do incremento de um denominado poder de compra, fáctico ou fictício, apaziguam-se os conflitos e as tensões sociais e instala-se a percepção de autonomia e liberdade (o desvario prestamista das últimas décadas criou esse simulacro de inclusão em que todos podiam comprar tudo) .
Caro David da Bernarda, hoje a dignidade requer um pouco mais que um naco de pão, requer por exemplo um sabonete ou uma cerveja para oferecer a um amigo.
Uma leitura é certa, quem em estado de não necessidade, não dispende a maior parte de um dia de feriado encerrado num supermercado naquelas condições.
Qualquer um diria," que se lixe a promoção, está muita gente, vou embora!"
Caro MSP´
é exactamente isso,o estado de necessidade tem diversos graus, assim como o mecanismo de sobrevivencia que por enquanto responde a uma percepçao de incerteza no futuro e extremas dificuldades financeiras em honrar compromissos assumidos, quanto ao saqueamento é só uma questão de continuidade do estado das coisas.
Apenas duas notas; veja-se o aumento dos casos de suicidio (na Grécia também) e a análise de Pacheco Pereira na Q.circulo,partilho plenamente.
Abraço.
Enviar um comentário