De há uns tempos a esta parte, os debates sobre o futuro da esquerda em Portugal têm sido alimentados por alguns contributos que afirmam ter chegado o tempo da unidade. Estes contributos vão de rigorosos exercícios de cálculo eleitoral a comoventes desabafos de alma, mas eu queria colocar aqui três entraves à famigerada unidade.
O primeiro
entrave tem que ver com uma divisão entre, de um lado, quem coloca mais empenho
na reivindicação da democracia do que na crítica do capitalismo e, do outro,
quem mais se dedica a combater o capitalismo e menos preza a luta pela
democracia. Esta divergência entre quem acha que a esquerda é sobretudo nome de
uma luta pela liberdade política e a quem acha que a esquerda é sobretudo uma
luta pela igualdade económica não se resolve através da busca de um mínimo
denominador comum, como alguns pretendem, mas maximizando: precisamos de uma
esquerda que assuma que a sua luta deve ser simultaneamente uma luta radical
pela igualdade económica e um combate sem tréguas pela liberdade política.
Precisamos de uma esquerda ciente de que não há combate ao capitalismo que não
seja luta pela democracia e vice-versa. Um exemplo, entre outros possíveis, de
uma tal esquerda estaria numa política que travasse os combates pela liberdade
de expressão não apenas como uma luta por direitos políticos ou pela liberdade
de imprensa, mas também como uma luta pelo direito de todos os trabalhadores a
não passarem a maior parte do dia e dos dias a fazerem o que não querem e sob o
comando de outrem.
O segundo
entrave à unidade tem que ver com as formas de poder que as esquerdas preconizam
e praticam. Aqui há também uma divergência fundamental. No actual mundo das
palavras, à direita como à esquerda, um dos casos de maior sucesso é
provavelmente o da chamada elite, termo que circula com o maior à vontade por
entre peças jornalísticas e discursos parlamentares, saltando de livros de
História para o verbo de politólogos. Colada à boca de quase todos, a palavra
não é, porém, usada de um modo sempre idêntico. Há quem a utilize de maneira
elogiosa e quem dela faça uso com intenções críticas. E entre estes últimos
cava-se uma distância que não é menor entre, por um lado, os críticos da elite
que a depreciam porque entendem que é necessário apurarmos uma nova elite que
substitua a velha elite e, por outro, os que a rejeitam porque simplesmente acreditam
que um compromisso radical com a democracia deve simplesmente riscar a palavra
do seu dicionário. Há uma bifurcação, sem ponto de convergência à vista, entre
quem entende que a esquerda deverá ser sobretudo nome de um projecto que visa
derrubar governos de direita e substituí-los por governos de esquerda e quem
julga que a esquerda é antes de mais o nome de um projecto de combate à
elitização da política, isto é, um projecto de crítica democrática da
democracia representativa. Eu estou com estes últimos – nenhum combate político
à esquerda pode continuar a ser travado com recurso às velhas fórmulas
hierarquizantes em que uns dirigem e outros são dirigidos, uns planeiam e
outros são planeados, uns pensam e outros são pensados; dirigentes revolucionários
ao leme da vanguarda partidária e economistas reformistas que analisam a
sociedade do alto do Estado devem ser atirados para o caixote de lixo da
história.
Finalmente,
o terceiro entrave é a obsessão com as frases claras e o estilo categórico, que
podem parecer úteis para combatermos a direita, mas que a médio prazo pagaremos
caro. Isto é, não pesemos excessivamente as nossas preocupações e as nossas
propostas, o que naturalmente abrange as que fazem parte deste meu
contributo... Não percamos muito tempo a demarcar o que está dentro e o que
está fora dos nossos territórios. E isto não é só válido para os partidos ou
para os partidos que são apodados de ortodoxos. Aplica-se seguramente ao
manifestante anti-autoritário que ao atirar ovos à sede de um partido de
esquerda se limitou a erguer as paredes do seu próprio partido e a fazer-se
capataz do que deveria ser indomável, o anarquismo. E aplica-se também aos que
em nome da unidade dos partidos de esquerda decidem simplesmente tecer armas
contra todos os sectarismos de todos os partidos de esquerda, como se a sua
resposta à fragmentação partidária da esquerda fosse simplesmente criarem mais
um fragmento que, por lhe chamarem unidade, é suposto não tomarmos como mais um
fragmento. Infelizmente, fazer bandeira da heterodoxia é caminho rápido para
chegar a ortodoxo.
2 comentários:
José Neves encarna ainda o espírito de uma «esquerda» idealista do século XIX, anterior ás trágicas experiências da social-democracia, convertida em gestores corruptos do capitalismo, e dos «comunistas» transformados numa nova classe que não deixou pedra sobre pedra das esperanças numa nova sociedade...
Escrever pois: «...manifestante anti-autoritário que ao atirar ovos à sede de um partido de esquerda se limitou a erguer as paredes do seu próprio partido e a fazer-se capataz do que deveria ser indomável, o anarquismo» é esquecer que todos os que partilham da legitimação deste Sistema, ou que são candidatos a criar novas formas de submissão, são inimigos dos que desejam, e lutam, pelo fim do capitalismo.
Ola,
O primeiro ponto assenta na crença de que existe incompatbilidade substancial entre democracia e igualdade efectivas. Discordo. O aprofundamento da democracia real é também o do respeito da igualdade efectiva na repartição dos bens. De forma correlativa, os "devios" da esquerda em relação às regras democraticas saldaram-se sempre, historicamente, por graves atropelos ao principio da igualdade efectiva. Não vejo porque teriamos de sacrificar um ou outro, quando estamos a falar de duas fases da mesma moeda : nem as regras da democracia (que saibamos, as menos mas até hoje são as da democracia representativa, mas admitir isso não significa que não possamos aperfeiçoa-las), nem o principio da igualdade têm qualquer sentido, ou consistência, quando não passam do papel.
O segundo paragrafo parece-me apontar uma dificuldade consecutiva da anterior : a fantasmagoria, que nasce de uma falta de realismo, ou de um realismo que não consegue ser consequente, nem eficaz. As elites são criticaveis porque nos deixamos. Pura falta de vigilância de todos nos. A elite é o espelho da sociedade. Nada menos. Nada mais. Queixamo-nos das nossas elites ? So pode ser porque nos é que estamos mal !
O terceiro suscita-me a mesma reflexão e parece-me pôr ainda mais em evidência a contradição. O que tem sucesso é o que apresenta resultados. A demagogia so tem resultados à falta de melhor, e não serve de nada estarmos a lamentar o facto se não tivermos melhor para oferecer. Devemos é concentrar-nos na preparação de uma alternativa que funcione. O resto é folclore.
Boas
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