Na linha de saída — revisão, retoques finais e últimos sobressaltos, impaciência ainda e nostalgia já — da minha tarefa impossível, apraz-me anunciar a esperança de ver a Relógio d'Água dentro em breve dar à estampa a minha tradução de The Poetry of Thought de George Steiner. E, já agora, também a esperança de, uma vez mais, poder ler a nossa camarada Ana on Steiner, navegando, de concerto com ele, no pensamento da poesia, a poesia do pensamento.
Aqui fica um excerto do início da coda:
O ponto que tentei elucidar é simples: a literatura e a filosofia, como as conhecemos, são produtos da linguagem. É esse, inalteravelmente, o seu solo comum, ontológico e substantivo. O pensamento na poesia, a poética do pensamento, são obras da gramática, da linguagem em movimento. Os seus meios, as imposições que os constrangem, são os do estilo. O indizível, no sentido imediato da palavra, circunscreve-os a ambos. A poesia visa reinventar a linguagem, fazê-la de novo. A filosofia esforça-se por tornar a linguagem rigorosamente transparente, purgá-la de ambiguidade e de confusão. Por vezes, esforça-se por superar as limitações lexicais e sintácticas e o conjunto das atrofias herdadas, recorrendo à lógica formal e aos algoritmos metamatemáticos, como no caso de Frege. Mas a matriz total continua a ser o discurso humano. Este aspecto tem uma ilustração soberba no Zibaldone de Leopardi. A seu ver, não havia poesia válida sem filosofia; nem, sem poesia, filosofia que valesse a pena aprender. O acesso generativo a uma e outra é uma filologia apaixonada. Leopardi examina, com uma erudição muitas vezes microscópica, as unidades lexicais, as ordens gramaticais e as aplicações pragmáticas. Deus — ou, por outras palavras, o milagre do sentido comunicável — reside no detalhe linguístico. Como vemos no cabalista que deriva da simples letra os próprios impulso e magia da criação. As letras estão escritas no fogo primordial. Da incandescência deste, vêm toda a filosofia, toda a poesia — e os paradoxos do seu uníssono autónomo.
8 comentários:
Excelente!
Entretanto só uma mera achega para eventual debate. Diz a coda do Steiner: «A filosofia esforça-se por tornar a linguagem rigorosamente transparente, purgá-la de ambiguidade e de confusão». Ora, se como ele diz (e bem) «não havia poesia válida sem filosofia; nem, sem poesia, filosofia que valesse a pena aprender», e sabendo também que «As letras estão escritas no fogo primordial», não será impossível essa tarefa de aspirar(mos) a uma «linguagem rigorosamente transparente»? Claro que ela deve aproximar-se desse ideal, mas não será tudo isso, precisamente, um ideal?
Um abraço
Sem dúvida, caríssimo. E o Steiner, de resto, não o ignora. A ideia de uma linguagem inteiramente transparente esqueceria o corpo-a-corpo (da sociedade e do indivíduo) com o mundo, o real, etc. - esse corpo-a-corpo metamórfico onde deita raízes a invenção ou criação (em certo sentido antónimas da transparência sem resto) da linguagem.
Aliás, seria interessante explorarmos um pouco as afinidades desta fantasia de transparência total com a do "discurso inteiramente legitimado" por si mesmo, nos termos em que o caracteriza e define um texto clássico e demasiado menospreazdo de F. Châtelet (Logos et praxis. Recherches sur la signification théorique du marxisme. Paris, SEDES, 1962).
Mas o "aclarar" sem limites a priori - sem fronteiras últimas nem primeiras -, a elucidação indefinida e indefinidamente por recriar não devem ser confunidas com a fantasia da transparência total. São a "solenidade e risco" da nossa tarefa poética e filosófica e do trabalho de criação política que a propõe e legitima.
Abraço também para ti
msp
Não percebi tudo. Mas, o que percebi, é suficiente para me deixar a festejar a chegada de mais um Steiner. E enquanto a revolução não dá mais um passo, ao menos isso: pelo menos mais um Steiner.
nelson anjos
Fixe, camarada Nelson.
Talvez eu tenha obscurecido, com a pressa, o que ´simples, embora tenha consequências inesgotáveis.
Assim, há - na linguagem, a conceber, como acção e exercício de imaginação instituinte sobre a paisagem da qual faz parte, e não só como representação ou reflexo - criação (novidade ontológica) e acontecimento (irredutível a efeito inteiramente determinado pelas condições anteriores). De onde a transparência perfeita, o saber absoluto, o discurso exaustivo, são impossíveis, não tento pelas limitações dos seus recursos como pelo excesso do real. O "real" - o "ser" - não é uma massa inteiramente coincidente consigo própria, uma ordem de determinações primeira ou final - mas metamorofose incessante no tempo. Como o mostra, de resto, a própria realidade da linguagem e do conjunto da história que são, sob muitos aspectos, um fazer-ser do que antes não era (era "nada"). Abreviando razões - para bom entendedor -, é por isso que nenhum poema fecha o caminho a outro e que não há conhecimento acabado, como não há fim da história nem última palavra.
Abraço grande
msp
OBRIGADO pelas suas traduções. Creio que é Ortega que louva a arte do tradutor. O seu trabalho é diamante.
Apesar de pertencermos a mundividências políticas diversas, creia-me meu caro que recebe a admiração deste redactor porque 1º é um ser (o a priori do respeito); 2º desenrola-se na comnunicação conjugando o futuro, logo humano (o apriori do respeito pelo Homo Sapiens Sapiens) 3º tem obra que muitos não conseguiriam, como eu; 4º faz com gosto o que faz; 5º Sabe o que faz e continua...; Viva!
Salve
GVRCS
Caro GVRCS
obrigado pelo seu encorajamento que muito me responsabiliza.
Cordialmente
msp
Olá caro Miguel SP,
Estou aguardando a publicação deste livro. Penso ser neste mês ainda, pelo que vi no site da editora.
Caro Miguel Pestana,
é a Relógio d'Água que lhe poderá fornecer indicações mais precisas sobre a data da publicação. No entanto, tudo leva a crer que sim, que a publicação não tarde.
Obrigado pelo seu interesse. Saudações cordiais
msp
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