Respondendo a um comentário do João Valente Aguiar a outro meu post, escrevi na caixa de comentários do mesmo: "tanto do ponto de vista da defesa das liberdades fundamentais e dos chamados 'direitos sociais', como do ponto de vista ofensivo da luta por uma democratização das relações de poder que caracterizam o capitalismo actual, o antinacionalismo é uma prioridade maior". O mesmo parece pensar o João Bernardo, que acaba de publicar no Passa Palavra o primeiro de uma série de três textos sobre O Mito da Culpabilidade Alemã, escrevendo na apresentação da série:
Perante a crise na periferia meridional da zona euro o nacionalismo torna-se cada vez mais estridente e o Passa Palavra tem-se contado entre as poucas vozes que em Portugal apontam os perigos decorrentes de um abandono do euro e de um aparecimento do fascismo à esquerda. Se as identidades nacionais sempre se construíram sobre mitos, isso sucede mais ainda hoje, numa época em que a transnacionalização da economia reduz o nacionalismo a um delírio ideológico sem base prática. Ora, os mitos nacionalistas têm uma face dupla, tanto servem para identificar o nós como o outro, e entre estes mitos tem ressurgido ultimamente o da culpabilidade alemã. Em resumo trata-se de dizer que, se os alemães foram culpados do nazismo e do genocídio dos judeus, não espanta que sejam agora culpados das medidas de recessão económica impostas aos países da periferia meridional da zona euro. Mesmo alguém como o prof. Boaventura Sousa Santos, que pelo menos deveria ter alguns conhecimentos históricos, ousou escrever em meados do ano passado que «podemos ser preguiçosos, podemos não saber como nos governar, mas não matámos 6 milhões de judeus e ciganos. Tenho pena de o dizer, mas tenho de o dizer. O nacionalismo puxa o nacionalismo» (veja aqui). Mas o nacionalismo, prof. Boaventura, puxa só quem quer ser puxado.
Se se tratasse apenas de um prof., pouca importância teria. Mas o problema é que uma parte substancial e cada vez maior da população portuguesa e, o que é muito mais grave, da esquerda portuguesa pensa o mesmo. Circulam imagens identificando com o nazismo a posição detida pela economia alemã na zona euro e chegaram ao ponto de querer agora levar de novo à cena a histeria do ultimatum. Não importa que enquanto raciocínio de causa a efeito seja uma falácia que deveria fazer corar de vergonha quem invoca aquele argumento, só que a vergonha lhes falta. A questão fundamental é que o ponto de partida é falso. Não houve uma entidade chamada alemães que tivesse sido responsável pelo nazismo, com todas as suas consequências.
(Ler mais)
Parece-me ainda interessante deixar aqui, com autorização do autor, o excerto de uma mensagem pessoal, em que o João Bernardo, referindo-se aos motivos que o levaram a pegar na questão da "culpabilidade alemã", e prolongadno e precisando um pouco mais as considerações preliminares acima transcritas, escreve o seguinte:
(…) a esquerda, que andava sorumbática ao pensar que a democracia representativa ia governar pela eternidade fora, anda agora satisfeitíssima porque entende que o agravamento da crise lhes abrirá as portas. Como podemos nós, nos meios de esquerda, ter audição ao prevenirmos contra o risco de um capitalismo de Estado, se essa esquerda vê precisamente no capitalismo de Estado a sua oportunidade imediata de aceder ao governo ou de regressar a ele? E assim o que se perfila no horizonte é a pior vocação da esquerda: o capitalismo de Estado, necessariamente nacionalista, porque o Estado é nacional. Ora, em situação de crise os trabalhadores retraem-se, porque a iminência de perder os empregos e o pouco que lhes resta constitui a mais eficaz chantage patronal. O agravamento da crise, com a vanguarda profissional histérica nas ruas e a esmagadora maioria dos trabalhadores, daqueles que têm emprego, submissa nas empresas, constitui a situação ideal para a esquerda nacionalista. E depois de lá estarem será muito difícil tirá-los. Ora bem, com este horizonte possível, mesmo aquelas pessoas que teriam simpatia por uma posição europeísta e pela manutenção na zona euro e que no plano das ideias acham o nacionalismo um perigoso absurdo hesitam agora, porque têm medo de se condenar ao isolamento. Onde ficariam eles se a outra esquerda passar para primeiro plano? Ou seja, para falar com mais exactidão, não será que perderiam o peso nos departamentos universitários, o lugar nos comités editoriais das revistas, os convites para os próximos simpósios e congressos, ou, tout simplement, não será que perderiam o emprego? E assim vão como as cerejas, um puxa numa ponta e o resto segue atrás.
09/11/12
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9 comentários:
Apesar de concordar com grande parte do texto de João Bernardo, e logicamente com a sua análise, não deixo de ver como absurdas afirmações ambíguas como esta: «Não houve uma entidade chamada alemães que tivesse sido responsável pelo nazismo, com todas as suas consequências»...
Obviamente essa entidade a que se dá o nome de «Povo», mesmo dividida em classes e com graus de responsabilidade distintos na história, não deixou de ser sim responsável pelo nazismo. Pelo menos todos, e foram a maioria, que foram cumplacentes, e cúmplices, com esse regime terrorista e com todos os seus crimes.
João Bernardo, na tradição de certa esquerda marxista, está sempre pronto a perdoar os «povos» vítimas das classes dominantes. Já nem falo dos «indivíduos» conceito que deve detestar...
Caro Libertário,
não me parece que tenhas lido bem o que o João Bernardo escreve - mas isso ele to dirá, se quiser.
Por mim, limito-me a dizer que é absurdo, e pode levar ao racismo, culpar colectiva e homogeneamente um povo, como tu dizes, ou o Alemão, enquanto essência nacional, pelo nazismo, ou seja pelo que for. Justamente, a culpa é individual: ainda que se trate da de pertença com conhecimento de causa a uma associação criminosa ou de malfeitores. (as SS, o Partido, o Governo do Reich…)
Há, no entanto, um grão de verdade no que dizes: é verdade que não podemos nem devemos negar que os actuais regimes - ou o regime nazi, ou o de Estaline - só funcionaram porque tiveram algum apoio substancial, ainda que minoritário, nas "massas". E podemos até, em meu entender, ir mais longe e dizer (com Castoriadis, por exemplo) que o regime capitalista actual só funciona mediante a adesão pelo menos passiva e parcial da maioria dos que o sofrem, não encarando a possibilidade de uma acção que faça as coisas andarem de outra maneira. Diremos que são "culpados" por omissão, por aceitarem ser governados em vez de se quererem e tentarem fazer governantes de si próprios em pé de igualdade com todos os demais? Bem, se o fizermos, teremos, então, de distinguir graus de culpa, e não os podemos condenar pelo que não decidiram ou ousaram como condenamos os que ousaram e decidiram Auschwitz. E, a partir do momento em que operamos estas distinções elementares, deixamos de poder falar em "culpabilidade alemã" indivisa, ou de responsabilizar "identidades nacionais", ou "povos" como um todo.
Saudações libertárias
msp
Só discordo deste ponto do comentário do Miguel: «Há, no entanto, um grão de verdade no que dizes: é verdade que não podemos nem devemos negar que os actuais regimes - ou o regime nazi, ou o de Estaline - só funcionaram porque tiveram algum apoio substancial, ainda que minoritário, nas "massas"».
Isso pode ter acontecido com o decorrer do tempo, mas ambos alicerçaram-se no apoio da maioria da população. É isso que faz dos regimes ditatoriais (apesar das suas diferenças) bem-sucedidos e, por isso mesmo, mais tenebrosos. Bem-sucedidos para eles claro, não para os trabalhadores.
abraço aos dois
Quem fez Tebas?
Quem combateu no exército alemão? Quem foram os carrascos voluntários de Hitler? O «Povo» alemão.
Houve alemães que morreram nas prisões e fuzilados evidentemente, ninguém o pode esquecer. Houve até aqueles que resistiram ou atentaram contra a vida de Hitler. Mas essa absoluta maioria disposta sempre a servir a sua «pátria» ou morrer pelos seus líderes, deve ser denúnciada como um rebanho, ou pior ainda, matilha, que não pode ser desculpada pelas «razões históricas» ou por qualquer determinismo. E os alemães dessa época - os que aceitaram e serviram o regime -, não os seus filhos ou netos, foram responsáveis pelo nazismo.
João,
a nossa discordância, se o for, é limitada. Eu não afirmaria tão categoricamente como tu pareces fazer que o estalinismo, por exemplo, gozou ab initio do apoio activo da maioria da população. Mas que gozou de um apoio de massa, é indiscutível. E também, como todos os regimes - é um truísmo - gozou da ausência da oposição decidida e explícita da maioria. É uma questão de acentuação, talvez. Mas importante - na medida em que, por contraste, elucida uma condição necessária da democratização instituinte que seria o exercício do governo colectivo pelo conjunto dos "governados": esta democratização - chama-lhe socialismo, ordem libertária, república dos conselhos, cidadanoa governante, o que quiseres - só é concebível e, sobretudo, praticável mediante a adesão activa e deliberada dos seus agentes potenciais (a grande maioria dos trabalhadores e cidadãos comuns da qual fazemos parte). Suponho que, reformulado assim o meu ponto, boa parte das tuas objecções perderá a razão de ser.
Libertário,
dizes o mesmo que eu, mas persistes em formulá-lo de uma maneira que me parece equívoca. Com efeito, se os culpados são os alemães que serviram e aceitaram o nazismo, e não os que o combateram ou se lhe opuseram de múltiplas maneiras, não podemos falar da culpabilidade colectiva dos alemães enquanto alemães… nem de uma responsabilidade homogénea de um povo alemão homogéneo, nem… e assim por diante.
Abraço para ambos
msp
Miguel,
não lhe chamaria discordância mas apenas a acentuação do papel de apoio dos regimes ditatoriais nas massas. No caso do fascismo, é essa capacidade para apropriar-se de massas que anteriormente estiveram em luta, para em nome da nação, remodelarem e aprofundarem os traços mais autoritários e hierárquicos do capitalismo. E isso foi conseguido à custa da mobilização de grandes massas. O mesmo (ou muito parecido) querem fazer a generalida dos nacionalistas de "esquerda" de hoje.
Abraço!
A pessoa que assina «Libertário» mostra, nomeadamente no seu último comentário, que não leu o artigo, porque eu remeto para documentação que indica a continuidade de uma resistência subterrânea e camuflada, mas persistente, não de heróis mas de gente comum, e é esta resistência a que mais importa para destruir o mito da culpabilidade alemã.
Depois de ler os insultos desse tal «Libertário» ao «rebanho» e à «matilha», não posso deixar de recordar que houve em Portugal o mais longo regime fascista da história. E um regime que fez três guerras coloniais. E cujo aparelho de terror, apesar disso, era bastante menor do que o do Reich, embora fosse mais penetrante no aspecto do comportamento quotidiano. Não sei que idade esse «Libertário» tem, mas eu nunca chamaria aos portugueses da minha geração nem «rebanho» nem «matilha», porque conheci as dificuldades da luta política contra o fascismo. Agora vejo pessoas entusiasmadas com a ideia de cobrir estátuas com panos pretos e refazer as indignações do ultimatum, esquecendo de ânimo leve que essas manifestações contra o ultimatum, que levaram a monarquia à cova, constituíram antes de mais uma afirmação de vontade colonialista. É neste quadro, não digo de pensamento, mas de falta dele, de reacções emotivas e irracionais, que de um lado se apela para uma memória histórica de ímpeto colonialista e por outro se recorre ao mito da culpabilidade alemã.
Esse leitor, ou tresleitor, «Libertário» apareceu aqui no bom momento, como a exacta caricatura daquilo que eu refiro no artigo.
O «Mito» da culpabilidade alemã
Este dito Libertário leu efectivamente o texto de João Bernardo e portanto conhece os seus argumentos, e respectivas notas. Só que esses seus argumentos são uma parte da verdade, até exagerados pelo seu entusiasmo.
O que sabemos pelos inúmeros historiadores do regime nazi é que efectivamente houve uma cooperação, e cumplicidade, da absoluta maioria dos alemães (pouco importa se povo, nação, cidadãos, indivíduos)com o regime. A resistência, que a houve, foi infelizmente minoritária.
O que disse sobre o «rebanho» em relação à Alemanha nazi vale também para Portugal ou para a União Soviética. Como sabe o João Bernardo também em Portugal houve essa tal cumplicidade, a resistência foi de uma minoria. Podemos analisar, e debater, as dificuldades «culturais», «históricas» ou «psicológicas» que levam a isso, mas a relaidade foi a que foi. Nessa época havia até aqueles que diziam:«tenho vergonha de ser português».
Este problema da servidão voluntária há muito foi analisado por La Boetie, no século XVI, no seu Discurso sobre a Servidão Voluntária, mesmo que não agrade aos marxistas sempre dispostos a «perdoar» os povos, a classe operária e o proletariado.
Quanto ao Ultimatum foi um bom pretexto para nos opormos (finalmente) aos Ingleses no século XIX, e ainda bem que levou a monarquia à cova. Se esta crise actual - coisa que duvido - levasse as classes dominantes, portuguesas e alemãs, para a cova também seria um bom resultado...
Servidão voluntária é isto:
http://www.assembleiapopularbarreirense.org/?cat=12
e isto http://www.assembleiapopularbarreirense.org/?p=497
é tão abjecto que é difícil classificar.
Marxista anti-Libertário
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