27/11/12

Um editorial do jornal Combate em Março de 1975 sobre o "significado político e económico das nacionalizações"

Nos últimos dias de Março de 1975, o jornal Combate, já ontem mencionado pelo João Bernardo, concluía, nos termos que a seguir se podem ler (mas o texto pode também ser consultado aqui), um editorial que analisava os acontecimentos e traçava as perspectivas do momento. No essencial, eu voltaria a subscrever — com algumas actualizações ou explicitações terminológicas — o documento que o colectivo então publicou, e penso que é pertinente retomá-lo nas circunstâncias actuais, tendo em conta as discussões em curso neste blogue e noutros lugares sobre o nacionalismo, o capitalismo de Estado, o que pode e não pode ser uma democratização efectiva das relações de poder dominantes.

Adenda: O João Valente Aguiar — achando, e com razão, ser difícil ler o texto do editorial que inicialmente publiquei em JPEG — acaba de me enviar a sua transcrição, que aqui "posto" em substituição da versão anterior, agradecendo calorosamente ao meu amigo o seu trabalho e solidariedade:


Significado político e económico das nacionalizações   

A fase actual inaugura-se com as «grandes» nacionalizações: Bancos e Seguros.

Vimos já o contexto em que essas nacionalizações se inserem. Mas, a palavra «nacionalização» é hoje em Portugal um termo ambíguo. Significa coisas diferentes para diferentes estratos, constituindo assim uma plataforma de entendimento entre classes antagónicas.

Para os operários «nacionalização» significa, a curto prazo, garantia dos salários. Pode aparecer, portanto, como um dos objectivos práticos da luta, sem que, no entanto, se possa inferir sobre o objectivo último que visam conscientemente nas suas lutas.

Para outros trabalhadores pode significar ainda, que na sua estratégia consciente, não vão mais longe do que a luta contra a instabilidade do emprego, e que tudo o que pretendem conscientemente é continuarem assalariados, mas estavelmente.

Para outros operários «nacionalização» significa o desaparecimento do capitalismo em todo o país e a passagem da economia ao conjunto dos trabalhadores. Trata-se mais de uma aspiração, do que de uma estratégia definida. Sobretudo não colocam o problema da mediação ou não mediação entre os trabalhadores e o controlo da economia, ou seja, o problema dos gestores e da gestão não é pensado.

Para os tecnocratas e os capitalistas de Estado já existentes, significa, conscientemente, a sua expansão como classe, a realização integral do Capitalismo de Estado.

Para muitos pequenos accionistas significa a garantia dos seus capitais nas empresas em vias de falência. Inconscientes de que a longo prazo isso significa o fim do capitalismo privado satisfazem-se com a possibilidade de manterem, a curto prazo, o rendimento das suas acções.

Vemos assim que o termo «nacionalização» alia ambiguamente operários, capitalistas de Estado, tecnocratas e pequenos accionistas.

Se a «nacionalização» é hoje terreno de conciliação entre classes antagónicas é porque uma dessas opções é formulada difusamente, permitindo assim que realidades antagónicas se cubram com o mesmo nome.

Cabe aos trabalhadores desfazer esta ambiguidade desenvolvendo lutas autónomas com a simultânea criação de formas organizativas que possibilitem o desenvolvimento da democracia operária em ruptura completa com o modo de produção capitalista e que sejam a base de novas relações de produção – as relações de produção comunistas, que levam ao desaparecimento do salariato e da sociedade de classes.

Em Portugal o proletariado não está enquadrado em partidos de massas ou sindicatos (como se constata pelo desenvolvimento da luta operária, que escapa ao enquadramento dos partidos e sindicatos), apenas vê com maior ou menor simpatia alguns desses partidos, sem demasiado seguidismo. No entanto, tem demonstrado uma extraordinária confiança no Estado, e nas instâncias mais hierarquizadas e repressivas desse Estado: as forças armadas. Este é um aspecto grave da ambiguidade que reina em torno do termo nacionalização.

«Nacionalização» significa por si só Capitalismo de Estado, significa controlo do Estado de toda a vida económica e social.

Significa continuação do salariato.

Significa que uma camada destacada dos trabalhadores e não controlada por eles, a quem aqueles delegam o poder económico e social – os gestores – passam a ser os novos exploradores. São estes os interessados no Capitalismo de Estado.

O Comunismo, que os trabalhadores visam nos seus objectivos últimos, tem como base a democracia dos trabalhadores, tem como base a democracia dos trabalhadores. No comunismo os trabalhadores não delegam o poder noutras camadas sociais, exercem-no directamente, através de instituições próprias, que criam na sua própria luta.

A Democracia Operária pratica-se e desde já nas próprias lutas que hoje se travam. É na prática de luta, com formas de organização que hoje se criam, que se desenvolve a consciência dos trabalhadores pelo comunismo.

Para que o capitalismo de Estado não se confunda com o socialismo, para que estas duas realidades sejam vistas conscientemente como distintas, é necessário que o proletariado em Portugal desenvolva a sua prática de luta no sentido de experiências novas.

A alternativa para os trabalhadores não é entre capitalismo privado e capitalismo de Estado, mas entre capitalismo, de um lado, e democracia dos trabalhadores organizados autonomamente, por outro.

10 comentários:

Libertario disse...

"Em Portugal o proletariado não está enquadrado em partidos de massas ou sindicatos (como se constata pelo desenvolvimento da luta operária, que escapa ao enquadramento dos partidos e sindicatos), apenas vê com maior ou menor simpatia alguns desses partidos, sem demasiado seguidismo. No entanto, tem demonstrado uma extraordinária confiança no Estado, e nas instâncias mais hierarquizadas e repressivas desse Estado: as forças armadas."

Muito optimismo o do Combate, embora houvesse ainda alguma autonomia nas lutas sociais que permitiam justificar esse espírito...

No entanto hoje a confiança no Estado tem uma base material real: a percentagem de portugueses que vive de salários e subsídios ou que vê os serviços púbicos de educação e saúde como produtos da generosidade do Estado é de tal ordem que a crítica libertária torna-se difícil de entender. Esta é a base real do apoio das políticas social-democratas ou do socialismo estatizante.

Vamos ter de enfrentar novamente a velha questão do Estado!

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Libertário,
"Vamos ter de enfrentar novamente a velha questão do Estado" - dizes. Mas, se reparares bem, é isso que alguns temos tentado fazer nas últimas semanas em torno da questão do "nacionalismo".

Abraço

msp

Libertário disse...

Concordo em parte, pois não se confunde totalmente a questão do «nacionalismo» com a questão do Estado. Até porque podemos sair dos pequenos estados para os Estados Unidos da Europa onde a grande diferença é que os donos do poder ficam mais longe do nosso alcance e nesta paróquia irão ficar (já estão) uns regedores que pouco mandam.

Quando digo a velha questão do Estado penso num tema que os marxistas pouco se dedicaram a analisar e em que sempre se opuseram às propostas anti-estatistas, descentralizadoras e federalistas dos anarquistas. As consequências do «socialismo de Estado», que Bakunin previu, ocorreram ainda de forma mais trágica.

Seria bom que os anti-capitalistas do presente aprendessem com a história. O problema é que nas actuais condições, de desmantelamento das actividades «sociais» do Estado providência, é necessário clarificar muito bem o que opõe de forma radical o anti-estatismo anarquista ao estado mínimo policial dos liberais que lhes garante o capitalismo.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Libertário,

retomo aqui, porque me parece vir a propósito das questões que levantas, a maior parte de um comentário de resposta a um post do Pedro Viana (que respondia, por seu turno, ao João Bernardo).

Tu, depois, dirás de tua justiça.

"1. A participação de base a nível local - no governo da cidade ou da empresa - pode encontrar - e tenderá a encontrar - condições mais favoráveis numa Federação Europeia do que nas condições actuais - ou, por maioria de razão, nas que uma implosão da UE acarretaria.
2. Se não há democratização verosímil do exercício do poder, no que incluo o governo da economia, sem participação de base, também não há democratização sem desenvolvimento do poder por parte de cada um decidir das questões centrais, arquitectónicas, que definem o próprio quadro local. O federalismo democrático é a forma que melhor se adapta à conjugação dos diversos níveis de exercício do que seria uma cidadania governante.
3. O Estado. Se, por Estado, entendes um poder político e um conjunto de instituições e "organismos de coordenação que permitam a implementação das decisões tomadas", parece-me que estás a confundir uma forma histórica particular de "sociedade organizada" ou de "poder político" com uma condição universal. E também não me vês advogar uma sociedade sem instituições, sem leis, sem poder. O que defendo é que a democracia é uma forma de exercício do poder político, da coordenação das decisões, etc. oposta à divisão do trabalho político classista entre governantes e governados. Uma forma de exercício do poder político que exclui a dominação hierárquica. A Revolução Americana fazia depender a legitimidade dos impostos da representação. A democracia faz depender a legitimidade das decisões da participação em pé de igualdade nas decisões dos "governados", tornando-os ao mesmo tempo "governantes". O que, de modo nenhum exclui, a necessidade de coordenação de que falas, embora exija outros modos de organização e coordenação."

Abraço

msp

Pedro Viana disse...

O Libertário faz um análise lúcida da realidade: o conceito de Estado tem um apoio esmagador entre a população de qualquer sociedade significativamente industrializada, por várias razões, incluindo algumas que indica no primeiro comentário. Ou seja, a cultura prevalecente é tal que a menos do colapso da civilização industrial (e há quem o preveja em círculos anarquistas, um destes dias coloco um post sobre o assunto), não há qualquer hipótese da ideologia anarquista se tornar prevalecente enquanto quem a defende se negar a adaptar a sua linguagem à narrativa dominante nas nossas sociedades. E isso passa, por exemplo, e como tenho defendido, por não negar o interesse, a utilidade, da existência dum Estado, ou seja de não negar o termo, ao mesmo tempo que re-constrói o seu significado na direcção pretendida: democracia, descentralização, autonomia, federalismo, ausência de corpos permanentes. É uma espécie de "entrismo" linguístico, com o intuito de mudar subtil, mas radicalmente, o significado da narrativa hegemónica. Infelizmente, por vezes parece que as pessoas que se dizem de Esquerda preferem sentir-se orgulhosamente isoladas como resultado da sua pureza terminológica, a adaptarem a sua linguagem de modo a mais facilmente obterem apoio para as suas posições.

Quanto ao editorial, é muito interessante, mas tal como agora peca por uma resposta clara à questão: é preferível nacionalizar/estatizar ou não? Ou dito de outra maneira, e admitindo que estamos perante duas más opções (nacionalizar/estatizar ou manter privado), qual é a menos má? O que eu defendo é que a menos má é a de nacionalizar/estatizar, exactamente porque acredito que tal aumenta a probabilidade de "desaparecimento do capitalismo em todo o país" e da "passagem da economia ao conjunto dos trabalhadores", em particular na situação actual e previsível num futuro a curto-médio prazo. Agora, é óbvio que tal requer abordar, pensar, insistir na reflexão e resolução do "problema da mediação ou não mediação entre os trabalhadores e o controlo da economia, ou seja, o problema dos gestores e da gestão". Nada que decorra dum processo de nacionalização/estatização impede que essa discussão tenha lugar, e que mudanças no sentido dum maior controlo das empresas pelos seus trabalhadores, em detrimento de gestores estatais, não tenham lugar após a nacionalização. Haja confiança nos nossos argumentos. Parece-me que há uma atitude derrotista à partida, que às vezes desconfio que se deve ao temor de que os trabalhadores após a nacionalização/estatização da sua empresa se sintam de tal modo confortáveis no seu papel de assalariados do Estado, que não se sintam tão motivados a lutar pelo controlo directo das suas empresas como quando eram (mais?...) explorados pelos seus patrões privados. Se assim for, devia merecer reflexão a razão porque os trabalhadores se sentiriam mais confortáveis na sua nova posição, e porque não se sentiriam motivados a lutar por deixarem de ser assalariados. Em vez de se insistir numa posição (é melhor manter as empresas privadas) que os próprios trabalhadores não apoiam.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,

1. a estatização - como o Ricardo Noronha em tempos documentou e te poderá mostrar factualmente melhor do que eu - foi defendida por alguns sectores, no pós-25 de Abril, como único meio de manter a ordem hierárquica a funcionar. É óbvio que não é sempre positiva para os trabalhadores, como nem sempre é um recuo… Acresce que as razões pelas quais é, em países como o nosso, preferida pelos trabalhadores têm a ver com o tipo habitual de contrato de determinação indeterminada, logo de estabilidade de emprego, que o Estado praticava, e hoje pratica cada vez menos, tendo-se tornado, sob certos aspectos, um sector de vanguarda da precarização. Por fim, a experiência histórica do século passado mostra que não foi nos países do "socialismo real", mas nos países de Welfare State do Norte da Europa, que o controle dos trabalhadores foi levado mais longe. Tornar as empresas verdadeiramente públicas exige muito mais do que a estatização e não passa - basta pensarmos nas cooperativas - necessariamente por ela.

2. Sobre a pretensa necessidade de nos adaptarmos à narrativa dominante para a inflectirmos e democratizarmos, não posso subscrevê-la de maneira nenhuma. E, do teu ponto de vista, já agora, porque te ficas pela adaptação ao Estado, e não a estendes ao capitalismo, à divisão hierárquica do trbalho e à desigualdade de rendimentos - tudo coisas que, segundo tudo indica, estão pelo menos tão enraizadas como a ideia da necessidade da distinção entre governantes e governados (a ideia da necessidade do Estado), no imaginário colectivo?
3. Finalmente, não explicas se a tua objecção à concepção esquemática de democracia que eu te sugiro, e que conheces de um sem fim de outros textos meus sobre o assunto, é simplesmente de ordem terminológica - caso em que, quando falares de Estado, terás de dizer que entendes por poder de Estado o poder exercido pelos cidadãos organizados como iguais, sem superiores nem inferiores, etc., etc. - ou se a fundamentas noutras razões mais substanciais.

Abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

Concordo totalmente com o teu ponto 1, em particular com a última frase. O que tentei defender é que a estatização de empresas privadas cria melhores condições para que estas passem para o controlo público, democrático, e/ou dos trabalhadores das empresas em questão. Eventualmente envolvendo diferentes níveis de co-gestão entre a comunidade e esses mesmos trabalhadores, consoante a importância do bom funcionamento dessas empresas para a comunidade.

Quanto ao teu ponto 2, não é verdade que o Capitalismo tenha uma aceitação tão universal como o Estado. Basta ver a reacção perante os conceitos de Socialismo ou Comunismo por um lado, e Anarquia por outro, habitualmente considerados como conceitos antagónicos dos primeiros (independentemente de realmente assim ser ou não). O desdém que o conceito de Anarquia induz é quase universal.

Já a divisão hierárquica do trabalho e a desigualdade de rendimentos terá uma aceitação intermédia. Diria que mesmo tu aceitarás certo tipo de divisão hierárquica do trabalho, por exemplo a que é temporária, revogável e imprescindível por necessidade de coordenação. Imaginemos o caso mais extremo de forças de defesa territorial, vulgo exército. Concordarás que as movimentações dos elementos dum exército numa situação de conflito têm de ser coordenadas, o que implica a existência de coordenadores, cujas directrizes têm de ser respeitadas para que sejam eficazes. Como disse, esses coordenadores podem ser eleitos num dado momento, e o seu mandato ser temporalmente restrito e revogável, mas não é por isso que deixa de haver uma hierarquia, resultado da existência duma distinção operacional entre quem profere as directrizes e quem as implementa. Portanto, também o conceito de hierarquia pode ser utilizado de modo muito lato. No entanto, não encontro tanta "utilidade" neste conceito como o relativamente a Estado.

Não acho que a "ideia da necessidade do Estado" resulte da "ideia da necessidade da distinção entre governantes e governados". Acho que a primeira resulta da ideia da necessidade de governo, ou seja da existência de instituições permanentes (mas obviamente os seus membros podem não o ser) que asseguram a coordenação das actividades consideradas imprescindíveis por uma comunidade (por exemplo: segurança, defesa, justiça, ensino, etc). Exactamente quem forma e como é formado o governo (e portanto quem controla o Estado, ou seja as instituições estatais, i.e. de coordenação) é outro assunto, como tenho tentado defender. Esta definição muito básica de Estado (que se confunde com governo) é a que se encontra nos dicionários, portanto nem estou a propor nada de muito original.

Relativamente ao ponto 3, claro que estamos essencialmente de acordo no que deve ser o (auto-)governo da comunidade. A nossa discordância parece-me radicar essencialmente no significado que atribuímos ao termo Estado, e na utilidade que esses diferentes significados podem ter. Em particular, concordamos na necessidade duma democracia participativa radical (preferindo eu o sorteio, complementado pela possibilidade de revogação através do voto, para a escolha dos representantes, quando necessários), em que os governantes são inteiramente controlados pelos governados (distinguindo-se os primeiros apenas pelas tarefas de que são temporariamente incumbidos), e havendo necessidade de hierarquias (tal como descritas acima), que sejam temporárias e revogáveis pelo voto a qualquer momento. E mais há, que não vale a pena estar agora a escalpelizar.

Um abraço,

Pedro

João Valente Aguiar disse...

Diz o Pedro:

«Não acho que a "ideia da necessidade do Estado" resulte da "ideia da necessidade da distinção entre governantes e governados".»

Mas o Estado é precisamente isso: uma estrutura que se relaciona com a tomada de decisões sobre o conjunto da sociedade, estrutura essa que é monopolizada por uma minoria da população e que toma decisões no sentido de: 1) favorecer as condições de reprodução da actual sociedade (o capitalismo); 2) agregar e unificar politicamente as fracções das classes dominantes; 3) promover uma "harmonia" social baseada numa aceitação política e ideológica das decisões políticas e económicas favoráveis à ampliação do capitalismo e à sua reprodução junto dos trabalhadores.

Em suma, não só o Estado tem uma função de classe como, ao mesmo tempo, a sua estrutura interna implica sempre a constituição de uma burocracia política (governo, parlamento, etc.), de uma tecnocracia (gestores e directores dos serviços de finanças, segurança social, ordenamento do território, etc.) e de corpos especializados de repressão para manter a ordem capitalista.

É porque o Estado é de alguns e porque se organiza verticalmente que ele tem de aparentar ser de todos. E enquanto acreditar-se que ele é de todos e que não é imanentemente hierárquico não só é o capitalismo que se mantém intacto como a própria estrutura política do Estado funciona como a válvula de escape para as dificuldades do dia-a-dia dos trabalhadores. O Estado mais não é do que uma grande empresa de coordenação logística e política das várias fracções das classes dominantes. Tal como hoje em dia o FMI, o BIS, o BCE, a OMC, etc. o são ainda mais à escala transnacional. Contudo, como o Estado tem a aura de que representa o interesse geral, e como correlativamente o Estado prentensamente tem os seus órgãos de poder eleitos, quase todos acham o Estado como algo muito diferente das grandes empresas ou das instituições transnacionais. Não descarto diferenças mas elas são fundamentalmente ideológicas e jurídico-políticas e não propriamente estruturais (modo de organização interno) e sociais (papel de coordenação das classes dominantes).

Por conseguinte, serão estas diferenças assim tão importantes para que tenhamos de preferir impreterivelmente o Estado às instituições privadas? O Estado é isto e não os serviços públicos de saúde e de educação que todos nós aqui defendemos. À pala dessa conversa da equivalência entre serviços públicos e o aparelho de Estado é que Cuba ou a URSS construíram um Estado repressor e altamente hierarquizado mesmo que ao lado fossem fornecendo serviços públicos. Para esses regimes, os serviços públicos foram (e ainda são no caso cubano) o biombo ideológico utilizado para esconder a existência de um aparelho de Estado burocrático e onde a participação popular é irrelevante e não tem qualquer poder real de decisão. Precisamente o que acontece aqui... Por isso é que me parece que o último parágrafo do editorial aqui publicado faz todo o sentido.

Abraço

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,

1. a "necessidade de um governo" ou de "organização regular" não são coisas que eu negue - nem a necessidade de delegados e de magistraturas. A questão, portanto, é terminológica. Mas tem a sua importância, pois dá a impressão que não permite distinguir entre "poder" e "dominação", etc., etc.
2. a "hierarquia" que recuso é a que se traduz em desigualdade de poder e em subordinação política e económica estruturais e permanentes. Significa que na tomada de decisões todos os cidadãos estejam em pé de igualdade e tenham os mesmos direitos governantes.
3. O problema da "anarquia" é tão velho como o do próprio anarquismo - o termo é equívoco, por isso evito usá-lo, e encontramo-lo em sentido pejorativo em textos de clássicos dos "pais fundadores". Mas a questão passa ao lado da nossa discussão fundamental
4. A ideia de que é necessária e justa a desigualdade de rendimentos e a ideia de que são os "melhores", mais "sábios" ou mais "competentes" que devem governar, por exemplo, não me parece que estejam menos arraigadas nos espíritos do que a ideia de necessidade do Estado - aliás, são ideias que, por assim dizer, se implicam circularmente.
5. Seja como for, no que diz o teu comentário aproximas-te muito de qualquer coisa como a proposta de uma "república de conselhos" ou da dos princípios de um programa de "cidadania governante". Com o que só posso congratular-me. O que não vejo é como a partir de princípios semelhantes insistes tanto nas virtudes absolutas da estatização e na sua superioridade de princípio, como se ela fosse o mesmo que a disposição pública e democrática dos meios de produção, ou tornasse automaticamente mais democrática a direcção da economia, ou, em todo o caso, garantisse necessariamente mais direitos aos trabalhadores e menos desigualdade entre os cidaddãos. Com efeito, boa parte da história do século XX documenta que não é assim. Que a estatização quase integral dos meios de produção pode ser e foi instrumento de uma dominação e perpetuação da exploração que subordinavam os trabalhadores e o conjunto dos cidadãos comuns a uma ordem classista mais estrita e brutal do que a dos regimes oligárquicos de tipo representativo, obrigados a contemporizar com direitos e liberdades conquistados por lutas seculares, etc., etc. Mas por agora, creio, não preciso de dizer mais.

Abraço para ti

miguel(sp)

Niet disse...

As questões postas pelo Pedro Viana são exemplares e típicas de um bem intencionado e inquieto " intelectual " orgânico que tenta pensar a herança cheia de veneno entre as sequelas de uma aproximação cada vez maior, no mundo laboral e na esfera politica, entre aquilo que Castoriadis define como espiral da degenerescência burocratica que denota uma efectiva- politicamente fatal e economicamente letal- homologia entre os processos de hierarquia e de burocracia. Só que, Pedro Viana, só vê os efeitos primários de uma maquinação infinitesimal muito perigosa. As referências ao legado revolucionário anarquista, por parte de Pedro Viana,por outro lado, revelam uma desatenção muito grande à actualidade politica mundial: o movimento social de expansão mundial, o Occupy Wall Street, suas origens e desenvolvimento teórico ilustram muito um renouveau do legado mais dinâmico e credivel do anarquismo, como toda a gente o sabe...Salut! Niet