Os anos de 1924-1925 foram
particularmente fecundos em França para o debate político no interior do jovem
Partido Comunista. Nomeadamente, a aceitação das 21 condições de adesão à
Internacional suscitou vivas discussões e levantou importantes questões
teóricas.
Nos começos de 1925, antes de a
referência a Trotski se impor, organizou-se no partido uma tendência oposta à
bolchevização. Quando, a 18 de Agosto de 1925, uma delegação de membros da
oposição foi recebida pelo Comité Central para expor os seus pontos de vista e
afirmar o seu apoio a Souvarine, Monatte, Rosmer e outros - anteriormente
excluídos "como inimigos do partido" -, a sorte da corrente já estava
decidida. Mal os militantes tinham saído da sala, um dos membros influentes do
Comité Central, interpelou os seus pares: "Com que ácido vamos tratar esta
gente?". Tratava-se de Jacques Doriot, um dos dirigentes que, anos mais
tarde, se passará do socialismo nacional para o nacional-socialismo.
Para os membros da oposição da
época, a aceitação das 21 condições abria a porta a uma transformação profunda
da natureza do partido. "Em nome da bolchevização, pretende impor-se ao
partido francês a imitação mecânica e servil do partido russo. Foram banidas
toda a liberdade de pensamento e de expressão, toda a crítica, toda a
iniciativa"1. O que significava o fim de "um partido
revolucionário [que] deve ser antes do mais um partido que pensa, um partido
formado de homens intelectual e moralmente conscientes"2.
Foi Fernand Loriot (1870-1932) quem,
no dia 18 de Agosto de 1925, defendeu as teses da oposição perante o Comité
Central. Hoje quase desconhecido, Loriot foi um membro de primeiro plano da
esquerda da SFIO e manteve posições próximas das dos sindicalistas
revolucionários. Partidário internacionalista de Zimmerwald, foi, durante a
Primeira Grande Guerra, pacifista revolucionário - "aquele que salvou a
honra do socialismo francês durante a guerra (1914-1918)", dirá mais tarde
Souvarine. Mas, sobretudo, Loriot foi o redactor da moção de ruptura com a
SFIO, por ocasião do Congresso de Tours, em Dezembro de 1920.
Simpatizante
activo da Revolução Russa desde a primeira hora, foi, de facto, um dos
fundadores do Partido Comunista, personagem respeitado e apreciado por Lenine e
outros chefes bolcheviques. Tendo-se juntado muito cedo à corrente que se
opunha à bolchevização do partido, eis como Loriot se exprimia sobre a questão
da organização: "A ideologia revolucionária não se baseia no dogma; e a
disciplina dos partidos não pode ser uma forma de submissão da
consciência"3. Por ocasião do IV Congresso, em 1925, insistia:
"A bolchevização dos partidos traduz-se na prática pela criação de um
formidável aparelho de ditadura sobre o partido […] Acaba assim por criar-se,
queiramo-lo ou não, uma espécie de burocratismo terrível e alargada, o mesmo
burocratismo que no partido russo"4.
Vemos bem que havia, neste debate,
mais do que um confronto entre duas concepções da organização. As questões de
organização recobrem sempre questões políticas fundamentais. Para Loriot e os
seus amigos, o que estava em jogo era uma concepção do movimento comunista. Em
seu entender, estava a passar-se de um partido de comunistas a um partido
comunista enquadrando militantes submetidos a uma linha política, decidida na
cúpula de acordo com os interesses da Internacional controlada por Moscovo. Uma
organização burocrática substituía uma organização viva. Daí seguir-se-ia a
impossibilidade de conduzir uma luta pela transformação da ordem social, de
participar na refundação da sociedade sobre bases anticapitalistas. O partido
comunista tornar-se-ia um partido que actuaria no quadro político nacional,
articulando as lutas e as reivindicações dos trabalhadores franceses com os
interesses do Estado russo. A bolchevização acompanhar-se-á assim da
"nacionalização" do partido comunista, transformado em partido
comunista francês.
Depois de terem sido isolados pela
direcção, Loriot e os seus amigos travarão o seu combate político enquanto
militantes no interior das organizações de base do partido. A seguir, em 1926,
violentamente difamado pela imprensa comunista oficial, Loriot acaba por se
demitir. Prosseguirá modestamente a sua actividade política no interior do círculo
restrito que publicava La Révolution prolétarienne. Num texto datado de
1928, voltará a ocupar-se da experiência russa. Para sublinhar uma vez mais o
nexo entre forma de organização e conteúdo do socialismo, para relembrar que,
na luta pela emancipação social, os fins e os meios são indissociáveis.
"[…] O futuro tornará ainda mais evidente a divergência entre os
interesses do Estado russo e a revolução proletária universal. É indubitável,
com efeito, que a Rússia não está a caminho do socialismo. […] A economia russa
estabilizar-se-á talvez sob as formas de uma espécie de capitalismo de Estado,
conservando certos aspectos originais decorrentes das suas origens
revolucionárias, mas as suas características essenciais continuarão a ser as de
uma economia capitalista e não de uma economia socialista"5.
Bolchevização, estalinismo e capitalismo de Estado são assim entendidos como
estádios sucessivos de um mesmo processo de reprodução das relações de opressão
capitalistas.
É conhecida a contribuição das
correntes sindicalistas revolucionárias e anarco-comunistas para a formação de
certos partidos comunistas (o Partido Comunista dos Estados Unidos da América
ou o Partido Comunista Português, por exemplo). No caso francês, tende-se
sobretudo a insistir na relação de filiação/ruptura entre o PCF e a SFIO
[Section française de l'Internationale ouvrière, que, a partir de 1969, mudará
o seu nome, passando a intitular-se como Parti
socialiste/ Partido Socialista]. A redescoberta de figuras como a de
Fernand Loriot lança uma luz nova sobre a história dos primeiros anos do
partido comunista, recordando a influência que exerceram no seu interior
militantes vindos dos meios pacifistas revolucionários e sindicalistas
revolucionários. Estes estiveram entre os primeiros a aperceberem-se da
natureza autoritária da bolchevização e das suas consequências. Depois da sua
participação na Conferência de Zimmerwald, que marcaria a ruptura com o
socialismo patriótico e guerreiro, tinham mantido contacto com os
revolucionários russos e italianos. Mas, sem dúvida por razões históricas
específicas da situação francesa, Loriot e os seus amigos permaneceram
afastados do movimento revolucionário na Alemanha. Parecem assim ter ignorado
as dúvidas de Rosa Luxemburgo perante o autoritarismo bolchevique, ter passado
ao lado dos momentos fortes da revolução alemã e da emergência da corrente
comunista radical, que tomará mais tarde o comunismo dos conselhos como
referência por oposição ao comunismo de partido. Este afastamento pesará sem
dúvida na sua fraqueza frente à bolchevização do partido.
Escreveram-se milhares de páginas
sobre a história do PCF, sobre os seus debates e conflitos internos. Estas vão
variantes oficiais, mais ou menos ortodoxas, às do anticomunismo mais primário,
passando por uma vasta historiografia universitária. Mais raras são as obras
dedicadas ao estudo das dissidências internas, sobretudo se deixarmos de lado
os estudos consagrados mais particularmente à corrente trotsquista. Uma lacuna
acaba de ser preenchida com a publicação de Fernand
Loriot, Le Fondateur oublié du Parti communiste. Neste estudo histórico
sério, efectuado fora do quadro universitário, Julien Chuzeville reconstrói o
percurso político deste revolucionário atípico. Apesar de uma forma narrativa
em que as ricas contradições da vida política de Loriot e dos seus companheiros
se apagam por vezes por detrás do factual, Julien Chuzeville alcançou o seu
propósito de rasgar o esquecimento destes homens que viveram num século durante
o qual todas as contra-revoluções triunfaram.
À leitura das suas páginas (das
quais extraímos as citações que aqui reproduzimos), não podemos deixar de nos
sentir impressionados pela clarividência destes oposicionistas da primeira
hora, que pressentiam sem ambiguidades o desfecho futuro dessa operação
autoritária de alinhamento dos partidos comunistas de acordo com os interesses
do novo Estado russo. Uma vez mais, somos forçados a constatar - contra um
certo materialismo histórico determinista para o qual as etpas justificam com
frequência o compromisso com o "realismo" dominante - que cada época
comporta uma carga de possíveis: os que abrem na direcção do futuro e os que
nos aprisionam num presente que se quer inultrapassável. As dúvidas e as
interrogações políticas de Loriot e dos seus amigos não resistiram à eficácia
bolchevique que engendrou o estalinismo. Mas, relendo as suas análises,
damo-nos conta de que os princípios que eles reivindicavam na época, foram
confirmados pelo movimento da história e se revelam, passado mais de um século,
de uma actualidade surpreendente, continuando a integrar o projecto de
emancipação social.
Sabemo-lo demasiado bem: a história
é sempre a história dos vencedores. E é por isso que é uma história morta.
Segundo a fórmula incisiva de George Orwell: "Os que são senhores do
presente, porque não seriam senhores do passado?" A história dos vencidos
é, pelo contrário, a única que conta para o devir humano, a única que é
portadora de um possível livre da barbárie, por pouco que as sociedades
despertem e se ponham em movimento.
Reapropriarmo-nos da experiência de Fernand Loriot e dos seus
camaradas enriquece a nossa capacidade de oposição no presente.
Janeiro
de 2013
Notas
(1) "Tribune de discussion", Cahiers du bolchevisme, Primeiro de Maio de 1925. Citado por Julien
Chuzeville, Fernand Loriot, le fondateur
oublié du Parti communiste, Paris, L'Harmattan, collection Historiques,
2012.
(2) Correspondência de dois comunistas da oposição, ibid.
(3) Carta dos oposicionistas, dita "carta dos 80", enviada
por Loriot a Zinoviev a 14 de Fevereiro de 1925. Ibid.
(4) Intervenção de Loriot, 17 de Janeiro de 1925, ibid.
(5) "Que vaut l'expérience russe?", La
Révolution
prolétarienne, 15 de Março de 1928.
1 comentários:
Interessante texto de Jorge Valadas que precisa, no entanto, de uma ressalva:
Quando se diz «a história dos vencidos é, pelo contrário, a única que conta para o devir humano, a única que é portadora de um possível livre da barbárie, por pouco que as sociedades despertem e se ponham em movimento» deve-se clarificar de que vencidos falamos...Afinal os próprios partidos comunistas estão hoje, tal como a desaparecida União Soviética, na categoria de «vencidos», para não falar dos outros derrotados do século XX tal como o nazi-fascismo etc.
Evidentemente que o autor está a falar dos movimentos populares e revolucionários emancipatórios vencidos ao longo da história.
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