08/02/13

Nas Origens do Partido Comunista Francês — ou o tratamento por ácido à prova do tempo



            Os anos de 1924-1925 foram particularmente fecundos em França para o debate político no interior do jovem Partido Comunista. Nomeadamente, a aceitação das 21 condições de adesão à Internacional suscitou vivas discussões e levantou importantes questões teóricas.

            Nos começos de 1925, antes de a referência a Trotski se impor, organizou-se no partido uma tendência oposta à bolchevização. Quando, a 18 de Agosto de 1925, uma delegação de membros da oposição foi recebida pelo Comité Central para expor os seus pontos de vista e afirmar o seu apoio a Souvarine, Monatte, Rosmer e outros - anteriormente excluídos "como inimigos do partido" -, a sorte da corrente já estava decidida. Mal os militantes tinham saído da sala, um dos membros influentes do Comité Central, interpelou os seus pares: "Com que ácido vamos tratar esta gente?". Tratava-se de Jacques Doriot, um dos dirigentes que, anos mais tarde, se passará do socialismo nacional para o nacional-socialismo.
            Para os membros da oposição da época, a aceitação das 21 condições abria a porta a uma transformação profunda da natureza do partido. "Em nome da bolchevização, pretende impor-se ao partido francês a imitação mecânica e servil do partido russo. Foram banidas toda a liberdade de pensamento e de expressão, toda a crítica, toda a iniciativa"1. O que significava o fim de "um partido revolucionário [que] deve ser antes do mais um partido que pensa, um partido formado de homens intelectual e moralmente conscientes"2.

            Foi Fernand Loriot (1870-1932) quem, no dia 18 de Agosto de 1925, defendeu as teses da oposição perante o Comité Central. Hoje quase desconhecido, Loriot foi um membro de primeiro plano da esquerda da SFIO e manteve posições próximas das dos sindicalistas revolucionários. Partidário internacionalista de Zimmerwald, foi, durante a Primeira Grande Guerra, pacifista revolucionário - "aquele que salvou a honra do socialismo francês durante a guerra (1914-1918)", dirá mais tarde Souvarine. Mas, sobretudo, Loriot foi o redactor da moção de ruptura com a SFIO, por ocasião do Congresso de Tours, em Dezembro de 1920.
Simpatizante activo da Revolução Russa desde a primeira hora, foi, de facto, um dos fundadores do Partido Comunista, personagem respeitado e apreciado por Lenine e outros chefes bolcheviques. Tendo-se juntado muito cedo à corrente que se opunha à bolchevização do partido, eis como Loriot se exprimia sobre a questão da organização: "A ideologia revolucionária não se baseia no dogma; e a disciplina dos partidos não pode ser uma forma de submissão da consciência"3. Por ocasião do IV Congresso, em 1925, insistia: "A bolchevização dos partidos traduz-se na prática pela criação de um formidável aparelho de ditadura sobre o partido […] Acaba assim por criar-se, queiramo-lo ou não, uma espécie de burocratismo terrível e alargada, o mesmo burocratismo que no partido russo"4.

            Vemos bem que havia, neste debate, mais do que um confronto entre duas concepções da organização. As questões de organização recobrem sempre questões políticas fundamentais. Para Loriot e os seus amigos, o que estava em jogo era uma concepção do movimento comunista. Em seu entender, estava a passar-se de um partido de comunistas a um partido comunista enquadrando militantes submetidos a uma linha política, decidida na cúpula de acordo com os interesses da Internacional controlada por Moscovo. Uma organização burocrática substituía uma organização viva. Daí seguir-se-ia a impossibilidade de conduzir uma luta pela transformação da ordem social, de participar na refundação da sociedade sobre bases anticapitalistas. O partido comunista tornar-se-ia um partido que actuaria no quadro político nacional, articulando as lutas e as reivindicações dos trabalhadores franceses com os interesses do Estado russo. A bolchevização acompanhar-se-á assim da "nacionalização" do partido comunista, transformado em partido comunista francês.

            Depois de terem sido isolados pela direcção, Loriot e os seus amigos travarão o seu combate político enquanto militantes no interior das organizações de base do partido. A seguir, em 1926, violentamente difamado pela imprensa comunista oficial, Loriot acaba por se demitir. Prosseguirá modestamente a sua actividade política no interior do círculo restrito que publicava La Révolution prolétarienne. Num texto datado de 1928, voltará a ocupar-se da experiência russa. Para sublinhar uma vez mais o nexo entre forma de organização e conteúdo do socialismo, para relembrar que, na luta pela emancipação social, os fins e os meios são indissociáveis. "[…] O futuro tornará ainda mais evidente a divergência entre os interesses do Estado russo e a revolução proletária universal. É indubitável, com efeito, que a Rússia não está a caminho do socialismo. […] A economia russa estabilizar-se-á talvez sob as formas de uma espécie de capitalismo de Estado, conservando certos aspectos originais decorrentes das suas origens revolucionárias, mas as suas características essenciais continuarão a ser as de uma economia capitalista e não de uma economia socialista"5. Bolchevização, estalinismo e capitalismo de Estado são assim entendidos como estádios sucessivos de um mesmo processo de reprodução das relações de opressão capitalistas.

            É conhecida a contribuição das correntes sindicalistas revolucionárias e anarco-comunistas para a formação de certos partidos comunistas (o Partido Comunista dos Estados Unidos da América ou o Partido Comunista Português, por exemplo). No caso francês, tende-se sobretudo a insistir na relação de filiação/ruptura entre o PCF e a SFIO [Section française de l'Internationale ouvrière, que, a partir de 1969, mudará o seu nome, passando a intitular-se como Parti socialiste/ Partido Socialista]. A redescoberta de figuras como a de Fernand Loriot lança uma luz nova sobre a história dos primeiros anos do partido comunista, recordando a influência que exerceram no seu interior militantes vindos dos meios pacifistas revolucionários e sindicalistas revolucionários. Estes estiveram entre os primeiros a aperceberem-se da natureza autoritária da bolchevização e das suas consequências. Depois da sua participação na Conferência de Zimmerwald, que marcaria a ruptura com o socialismo patriótico e guerreiro, tinham mantido contacto com os revolucionários russos e italianos. Mas, sem dúvida por razões históricas específicas da situação francesa, Loriot e os seus amigos permaneceram afastados do movimento revolucionário na Alemanha. Parecem assim ter ignorado as dúvidas de Rosa Luxemburgo perante o autoritarismo bolchevique, ter passado ao lado dos momentos fortes da revolução alemã e da emergência da corrente comunista radical, que tomará mais tarde o comunismo dos conselhos como referência por oposição ao comunismo de partido. Este afastamento pesará sem dúvida na sua fraqueza frente à bolchevização do partido.

            Escreveram-se milhares de páginas sobre a história do PCF, sobre os seus debates e conflitos internos. Estas vão variantes oficiais, mais ou menos ortodoxas, às do anticomunismo mais primário, passando por uma vasta historiografia universitária. Mais raras são as obras dedicadas ao estudo das dissidências internas, sobretudo se deixarmos de lado os estudos consagrados mais particularmente à corrente trotsquista. Uma lacuna acaba de ser preenchida com a publicação de Fernand Loriot, Le Fondateur oublié du Parti communiste. Neste estudo histórico sério, efectuado fora do quadro universitário, Julien Chuzeville reconstrói o percurso político deste revolucionário atípico. Apesar de uma forma narrativa em que as ricas contradições da vida política de Loriot e dos seus companheiros se apagam por vezes por detrás do factual, Julien Chuzeville alcançou o seu propósito de rasgar o esquecimento destes homens que viveram num século durante o qual todas as contra-revoluções triunfaram.

            À leitura das suas páginas (das quais extraímos as citações que aqui reproduzimos), não podemos deixar de nos sentir impressionados pela clarividência destes oposicionistas da primeira hora, que pressentiam sem ambiguidades o desfecho futuro dessa operação autoritária de alinhamento dos partidos comunistas de acordo com os interesses do novo Estado russo. Uma vez mais, somos forçados a constatar - contra um certo materialismo histórico determinista para o qual as etpas justificam com frequência o compromisso com o "realismo" dominante - que cada época comporta uma carga de possíveis: os que abrem na direcção do futuro e os que nos aprisionam num presente que se quer inultrapassável. As dúvidas e as interrogações políticas de Loriot e dos seus amigos não resistiram à eficácia bolchevique que engendrou o estalinismo. Mas, relendo as suas análises, damo-nos conta de que os princípios que eles reivindicavam na época, foram confirmados pelo movimento da história e se revelam, passado mais de um século, de uma actualidade surpreendente, continuando a integrar o projecto de emancipação social.

            Sabemo-lo demasiado bem: a história é sempre a história dos vencedores. E é por isso que é uma história morta. Segundo a fórmula incisiva de George Orwell: "Os que são senhores do presente, porque não seriam senhores do passado?" A história dos vencidos é, pelo contrário, a única que conta para o devir humano, a única que é portadora de um possível livre da barbárie, por pouco que as sociedades despertem e se ponham em movimento. Reapropriarmo-nos da experiência de Fernand Loriot e dos seus camaradas enriquece a nossa capacidade de oposição no presente.

Janeiro de 2013


Notas

(1) "Tribune de discussion", Cahiers du bolchevisme, Primeiro de Maio de 1925. Citado por Julien Chuzeville, Fernand Loriot, le fondateur oublié du Parti communiste, Paris, L'Harmattan, collection Historiques, 2012.
(2) Correspondência de dois comunistas da oposição, ibid.
(3) Carta dos oposicionistas, dita "carta dos 80", enviada por Loriot a Zinoviev a 14 de Fevereiro de 1925. Ibid.
(4) Intervenção de Loriot, 17 de Janeiro de 1925, ibid.
(5) "Que vaut l'expérience russe?", La Révolution prolétarienne, 15 de Março de 1928.

1 comentários:

Libertário disse...

Interessante texto de Jorge Valadas que precisa, no entanto, de uma ressalva:

Quando se diz «a história dos vencidos é, pelo contrário, a única que conta para o devir humano, a única que é portadora de um possível livre da barbárie, por pouco que as sociedades despertem e se ponham em movimento» deve-se clarificar de que vencidos falamos...Afinal os próprios partidos comunistas estão hoje, tal como a desaparecida União Soviética, na categoria de «vencidos», para não falar dos outros derrotados do século XX tal como o nazi-fascismo etc.
Evidentemente que o autor está a falar dos movimentos populares e revolucionários emancipatórios vencidos ao longo da história.