02/03/13

Re: A deriva populista

 José Manuel Pureza escreve sobre o que chama a "deriva populista", nomeadamente sobre a votação em Beppe Grillo.

Para falar a verdade, há muito que me inclino para achar "populismo" uma palavra que não significa nada (normalmente "populista" costuma significar uma de duas coisas - "politico de direita europeu de que não gosto" ou "politico de esquerda latino-americano de que não gosto"; no caso de Grillo, admito que não me parece encaixar em nenhuma destas categorias).

Mas vamos ao que me parece o argumento essencial de Pureza:
Convém aqui dizer que um voto de protesto é tão vital para a democracia como um voto de programa. Isto dito, o protesto expresso nos 25% de Beppe Grillo é um recado forte com um fundamento fraco. Recado forte porque põe a ridículo toda a elite política do sistema. Mas com um fundamento fraco porque parte da convicção de que o problema é a elite política quando o problema é o sistema. Não há aqui engano possível: enquanto o sistema for o da política de austeridade da troika, as elites políticas suas intérpretes serão sempre medíocres. Porque a gelatina, o bunga-bunga ou a tecnocracia não são senão três rostos da mesma cultura política de pequenez, de subserviência e de feitoria colonial. Por isso mesmo, crer que a renovação da elite política é o foco prioritário da mudança necessária é crer numa ilusão. Mudar políticos é sem dúvida muito importante. Mas mudar de políticas é decisivo.

O embuste do populismo é exactamente esse: criar a convicção de que estamos como estamos porque "os políticos" estão acomodados nas suas prebendas e que um arejamento do método de escolha e de legitimação e um consequente refrescamento da "classe política" trará horizontes completamente novos.
Eu até poderia concordar com a argumentação de que o problema não está nas "elites politicas" mas sim no "sistema", mas dá-me a ideia que Pureza está usando essas expressões de forma muito peculiar: normalmente, quando se diz algo na linha "o mal não está nas pessoas, está no sistema", o que se quer dizer é que o que interessa não é substituir uma pessoa por outra, mas sim mudar as regras. Aplicado à organização politica, o que normalmente quer dizer é "não é uma questão de substituir «maus» governantes por «bons» governantes, mas sim mudar a maneira de funcionamento do poder politico"; mas lendo o texto de Pureza não é nada disso que ele preconiza (aliás, ele põe no mesmo saco "renovação da elite politica" - mudar as pessoas - e "arejamento do método de escolha e de legitimação" - mudar as regras - como se fosse a mesma coisa); quando ele fala em mudar "o sistema" ele refere-se a mudar as políticas que os políticos põem em prática, mas em última instância isso não se refere simplesmente a, de novo, querer mudar de políticos (em vez de ser substituir "políticos corruptos" por "políticos honestos", é substituir "políticos que põem em prática a política X" por "políticos que põem em prática a política Y")?

No fundo, se alguém é culpado de querer mudar simplesmente os políticos em vez do sistema, até será mais Pureza do que os italianos que votaram no "5 Estrelas" - bem espremido, o texto de Pureza limita-se a "precisamos de políticos que façam uma política diferente"; pelo contrário, o "5 Estrelas" (com todos os seus defeitos) tem efectivamente algumas propostas de mudanças nas regras do sistema político italiano.

Outra forma de ver a coisa é que parece-me que, quando Pureza escreve que "o problema [não] é a elite política (...) o problema é o sistema" não é verdadeiramente isso que ele quer dizer, mas sim "o problema não é o sistema politico, mas sim o sistema económico" - afinal, a mensagem geral do texto parece-me ser não algo como "não basta mudar os políticos, é preciso mudar a forma de organização do poder político" (que é a primeira coisa que me ocorre quando alguém escreve que o problema não são "as elites" mas "o sistema"), mas  "o que interessa não é mudar a forma de organização do poder politico, mas sim a forma de organização da economia"

8 comentários:

Pedro Viana disse...

Exacto! Análise certeira.

Um abraço,

Pedro

Ivo disse...

"o que interessa não é mudar a forma de organização do poder politico, mas sim a forma de organização da economia"
Exatamente. Ao que eu acrescentaria, de Voltaire, "a arte de governar consiste em tirar tanto dinheiro quanto possível a uma classe de cidadãos para o dar à outra".

culturdança disse...

Caro, Miguel Madeira, como acha que poderá ser a organização do novo poder político que advoga? esta pergunta já foi colocada ao Pedro Viana, há dias atrás,que fez o favor de não responder.
Cumprimentos,
Fernando Lacerda

Miguel Madeira disse...

Neste blogie o Pedro Viana tem escrito muito sobre o assunto:

http://viasfacto.blogspot.pt/2011/06/referendo-por-iniciativa-popular.html

http://viasfacto.blogspot.pt/2011/06/quatro-propostas-para-uma-democracia.html

http://viasfacto.blogspot.pt/2011/06/quatro-propostas-para-uma-democracia_02.html

http://viasfacto.blogspot.pt/2011/06/quatro-propostas-para-uma-democracia_03.html

http://viasfacto.blogspot.pt/2011/06/quatro-propostas-para-uma-democracia_2190.html

Niet disse...

Extractos de uma análise sobre a Crise Politica italiana, tornada pública por uma tendência do partido anticapitalista francês. Curiosamente, a argumentação essencial do texto dos trotskistas gauleses amplia e aprofunda as teses de JM Pureza... Sugere detalhes muito significativos e enumera factores críticos mínimos para se tentar perceber o autêntico quebra-cabeças em que se encontra a grande burguesia italiana; e, com o efeito de um raio, o terrível desafio que perturba as miragens perversas da alta burocracia da UE em posto em Bruxelas... " Estruturalmente, o que reflecte esta crise de regime(italiano), com a incapacidade da Confindustria e dos sectores mais concentrados do Capital de confortarem a sua hegemonia política, é, acima de tudo uma crise profunda da articulação das diferentes fracções de classe em Itália, acima de tudo no interior da burguesia. O problema com o qual se confronta o grande Patronato não se prende com o facto de não existirem contra-reformas operárias e populares. Deste ponto de vista, depois de 1993 e sobretudo 1996, com o primeiro Governo Prodi, o patronato italiano avançou qualitativamente em termos de ofensiva contras as conquistas e direitos sociais criados mo pos-II Guerra Mundial e nos anos 70( o que não o impede de querer alargar mais a sua hegemonia). Mas, o que pensa sobremaneira no sistema politico italiano, no seu conjunto, e se repercute a nivel politico, é o desproporcionado peso da pequena e média burguesia, perfeitamente sobrerepresentada politicamente,capaz de manter refém a alta burguesia, através das suas mais diversas representações politicas, quer sejam o berlusconomismo quer a Liga do Norte,impedindo toda a possibilidade e tentativas de concentração e de racionalização do Capital, uma necessidade para a burguesia, sobretudo nestes tempos de crise ". Salut! Niet

Libertário disse...

O que diz a direita liberal do Blasfémias, sobre o mesmo tema:

"O que é que motiva os eleitores quando elegem quem manifestamente não está preparado para compreender o funcionamento político institucional (nem quer) e faz da “conversa de café”, descontraída e irrefletida, uma espécie de programa político. Eleitos que criticam a democracia representativa e tentam repristinar uma espécie de “ditadura do proletariado” anti-ideológica e anti-partidária, sob a capa difusa das vantagens da democracia direta?"

Porque será que a opinião da direita e da esquerda institucional, mesmo dessa amálgama inconsistente do BE, é a mesma?

joão viegas disse...

Ola,

Sem querer polemizar (pelo contrario) eu não disqualificaria assim tão depressa o termo "populista". A questão é antiga, é central, não pode ser mais actual.

Grilo, como Farage, como o proprio Mélenchon (não, não os ponho no mesmo saco), reivindicam-se do "povo" e fazem questão de afirmar alto e bom som que consideram a qualificação de "populista" como um elogio.

O termo tem, como disse, uma longa historia. Podemos evocar Roma, onde os populares foram aqueles que ajudaram a construir o Império conseguindo neutralizar as elites da época com um apelo à plebe (comprada a pão e circo). Podiamos evocar muito mais exemplos (e derivas) de Cesarismo plebeu. Muito cedo chegariamos a sitios muito pouco frequentaveis...

O clamor da turbamulta é sempre, por si, sinal de progressismo ? Nunca ninguém viu os piores retrocessos apoiarem-se cinicamente nos aplausos boçais de quem se basta com a sumaria vitoria de ver por terra aqueles que, ontem, haviam sido apressadamente elevados aos pincaros ?

Não tenho resposta e, sobretudo, não acho satisfatorio enveredar pela caricatura inversa, que levaria a aceitar apenas as criticas que passaram pelo crivo da curia régia ou do tribunal constitucional (e nos temos um particularlmente inteligente, como vimos o ano passado...).

Mas não disqualifiquemos o debate.

O que seria tão absurdo como defender que a demagogia não existe...

Boas

Anónimo disse...

A Imprensa de rigor e Qualidade italiana- a do Grupo La Repubblica/ L´Espresso - já está no encalço da honra perdida do clown Grillo. O semanário de Turim apresenta dados sensiveis sobre as sociedades-écran criadas na Costa Rica por Grillo e o seu motorista. Turismo e imobiliário são os dispositivos , com forte odor da máfia,utilizados. Ao mesmo tempo,nos finais dos anos 90, sócios italianos dos investimentos carabaicos de Grillo, beneficiaram de uma extravagante redução de pena de prisão por narcotráfico " negociada " no Parlamento de Roma.Niet