João Bernardo despista-se pelos caminhos da termodinâmica no seu mais recente texto, sobre o que entende por ecologismo. Não são antes proclamar que "(…)as grandes empresas conseguiram mostrar que podem ampliar as suas operações e proporcionar uma maior abundância sem com isso esgotarem os recursos naturais(…)". Mostrado, ou demonstrado, fica antes de mais, e mais uma vez, a profunda admiração que João Bernardo nutre pela empresa capitalista, e pelo elevado grau de eficiência económica que é capaz de atingir. Será que nas mãos dos trabalhadores tal fenomenal máquina de produção eficiente manteria a sua performance? Quantos casos há de empresas controladas por trabalhadores a competirem com sucesso no contexto duma economia de mercado Capitalista avançada? Mas, então, ao defendermos o controlo da produção pelos trabalhadores não estaremos, na prática, a defender a sobre-exploração da força de trabalho no quadro empresarial?…
Bom voltemos à termodinâmica. Segundo João Bernardo, existe uma contradição entre a formulação da segunda lei da termodinâmica tal como foi feita por Clausius, e aquela que pode ser elaborada recorrendo aos princípios da física estatística, da qual Boltzmann foi um dos pioneiros. No entanto, tal contradição não existe de todo. A física estatística apenas introduz um novo nível, microscópico, de interpretação dos processos termodinâmicos, que ocorrem ao nível macroscópico.
Eddington terá afirmado, com toda a razão, que: "A lei que afirma que a entropia cresce — a segunda lei da termodinâmica tem, segundo o meu pensamento, a posição suprema entre as leis da natureza. (…) se a sua teoria está em oposição à segunda lei da termodinâmica, então não posso lhe dar esperança alguma: não há nada a esperar dela, senão cair na maior humilhação."
A segunda lei da termodinâmica tem sido formulada, ao longo do tempo, de modos distintos mas equivalentes, por exemplo:
É impossível a construção de um dispositivo que, por si só, isto é, sem intervenção do meio exterior, consiga transferir calor de um corpo para outro de temperatura mais elevada. (Clausius)
É impossível a construção de um dispositivo que, por si só, isto é, sem intervenção do meio exterior, consiga transformar integralmente em trabalho o calor absorvido de uma fonte a uma dada temperatura uniforme. (Kelvin-Planck)
Quem quiser compreender melhor as implicações físicas da segunda lei da termodinâmica, pode por exemplo ler este pequeno excerto dum livro escrito por Carlos Fiolhais, docente no Departamento de Física da Universidade de Coimbra e um dos maiores divulgadores da Física em Portugal.
Para perceber a ligação entre a segunda lei da termodinâmica e a noção de entropia, precisamos primeiro de definir esta. A definição termodinâmica de entropia foi proposta por Clausius em 1865, em resultado da sua análise do Ciclo de Carnot: a entropia dum sistema é a quantidade característica do sistema que aumenta proporcionalmente à quantidade de calor por ele absorvido, e de modo inversamente proporcional à sua temperatura. Portanto, o enunciado de Clausius da segunda lei da termodinâmica efectivamente diz-nos que a diminuição da entropia total dum sistema de dois corpos, igual à soma da entropia de cada um, mesmo que capazes de transferir calor entre eles, é impossível. Pois, se T1 > T2 são respectivamente as temperaturas dos corpos 1 e 2, então de acordo com a segunda lei da termodinâmica é apenas possível a transferência de calor Q do corpo 1 para o corpo 2. Mas, tal origina necessariamente um aumento da entropia do corpo 2 em Q/T2 > Q/T1, onde Q/T1 é a diminuição da entropia do corpo 1 como resultado dessa transferência, ou seja um aumento da entropia total do sistema em Q/T2 - Q/T1 > 0.
Este exemplo serve para ilustrar dois aspectos da segunda lei da termodinâmica, do ponto de vista macroscópico: (1) a entropia dum sistema isolado nunca diminui; (2) a entropia dum sistema pode diminuir, apenas se a entropia dum outro (ou mais) sistema(s) aumentar pelo menos da mesma quantidade, de tal modo que não haja uma diminuição da soma da entropia dos dois (ou mais) sistemas em consideração.
Passemos então à contribuição que o desenvolvimento da física estatística, nomeadamente através do trabalho de Boltzmann, deu para uma melhor compreensão dos fenómenos termodinâmicos, e das leis que lhes estão associadas. Foi Boltzmann quem propôs que a entropia dum sistema era proporcional ao logaritmo do número total de configurações possíveis para esse sistema ao nível microscópico, compatíveis com o estado do sistema ao nível macroscópico. Devido a esta definição, é também por vezes dito que a entropia é uma medida do estado de desordem de um sistema, ou da quantidade de informação necessária para caracterizar um sistema. Qualquer uma destas definições é completamente compatível com a segunda lei da termodinâmica, tal como antes apresentada, inclusive na formulação de Clausius.
Do ponto de vista microscópico, o que a segunda lei da termodinâmica nos diz é que qualquer sistema isolado tende para um estado de equilíbrio termodinâmico. Pode ser demonstrado que este corresponde a um máximo no número de configurações possíveis para o sistema ao nível microscópico, compatível com as propriedades do sistema (por exemplo, a energia interna total). O que parece confundir o João Bernardo é o conceito de "tendência". Num sistema que possua uma temperatura acima do zero absoluto, as partículas que o constituem possuam energia cinética não nula, que pode corresponder a movimentos (quase-)periódicos (por exemplo, vibração) ou aperiódicos. Estes movimentos originam modificações nas características (por exemplo, posições e velocidades das partículas) do sistema ao nível microscópico. Ora, o facto das partículas do sistema se poderem movimentar, e eventualmente transferir energia entre elas através de colisões, permite ao sistema aceder a um cada vez maior número de possíveis micro-estados, aumentando a sua entropia, até atingir o equilíbrio termodinâmico. No entanto, esta progressão para o equilíbrio termodinâmico não acontece de modo determinístico. Ou seja, é possível, mas extremamente improvável, que enquanto progride na direcção do equilíbrio termodinâmico, um sistema atinja um macro-estado de menor entropia que o anterior, situação que será rapidamente revertida de seguida. A probabilidade de ocorrer uma diminuição da entropia num sistema isolado é da ordem do inverso da raiz quadrada do número de partículas que constitui o sistema. Ou seja, quando consideramos sistemas macroscópicos, ie. com um número muito elevado de partículas (por exemplo, 1g de água contém cerca de 3x10^23 partículas, neste caso moléculas de água), a probabilidade da entropia diminuir estando o sistema isolado é tão baixa que se pode considerar, para todos os efeitos práticos, como nula. E é isto que João Bernardo parece não ter ainda entendido.
Voltemos então ao planeta Terra... (continua)
30/09/13
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29 comentários:
excelente!
Pedro Viana escreveu:
«Segundo João Bernardo, existe uma contradição entre a formulação da segunda lei da termodinâmica tal como foi feita por Clausius, e aquela que pode ser elaborada recorrendo aos princípios da física estatística, da qual Boltzmann foi um dos pioneiros. No entanto, tal contradição não existe de todo.»
Ora bem, quem afirma isso, antes de mais, é o Georgescu-Roegen. Todo o livro dele está construído em torno dessa afirmação, defendendo a termodinâmica clássica, de Clausius, e considerando-a incompatível com a termodinâmica estatística, de Boltzmann. E todo o artigo do João Bernardo está construído em torno do livro de Georgescu-Roegen. O artigo está recheado de citações, quem quer que o leia pode verificar. Mas para isso é necessário ler o artigo.
Caro Pedro,
ou estou muito enganado, ou não é o João Bernardo que afirma (limitando-se a referir que Georgescu-Roegen o faz) a existência de uma "contradição entre a formulação da lei da termodinâmica tal como foi feita por Clausius" e a formulação que a física estatística torna possível. Pelo menos, é o que me parece ter lido no texto do Passa Palavra. Não queres verificar?
Quanto aos aspectos propriamente científicos do teu post, a exposição parece-me conseguida (opinião de leigo e simples curioso…), à excepção da imputação referida e das ilações que dela extrais para carcaterizar a posição do JB. Mas, enfim, receio que nos afaste do fundo da questão. Pela parte que me toca, recuso-me a deduzir das leis da termodinâmica - ou da gravidade, para o efeito tanto dá - "leis" ou critérios de juízo político, seja em que matéria for. E creio que a tua concepção da democracia te levará a adoptar uma atitude semelhante. Ou não?
Abraço
miguel (sp)
Caramba, que coisa tão rara - um homem de esquerda capaz de introduzir na sua análise sociológica (espero) os dados das ciências físicas! Parabéns, e venha daí a continuação.
Boa lição plena de ilacções, meu caro. Mas a ecologia tem que ser integrada num projecto politico de autonomia para ter expressão radical e positiva. E, justamente, nessa interlecção se joga o futuro da economia da cooperação livre assente numa lógica subversiva de ultrapassagem da riqueza fundada sobre o capital e trabalho, temas desenvolvidos em profundidade por René Passet, Antonella Corsani e Maurizzio Lazzarato. Por outro lado, Castoriadis chama muito a atenção para o " esquecimento " de Marx ao "não realizar" uma critica interna da técnica e da organização da produção capitalista. " Este " esquecimento " é estranho em Marx, uma vez que, na mesma época, o tipo de reflexão que nos interessa aparece em numerosos autores(...) sabe-se que que as economias tradicionais eram economias de reciclagem, ao passo que a economia contemporânea é uma economia de desperdício ", sublinha. Salut! Niet
Caros JVA e MSP,
Vejamos o que escreve o João Bernardo:
"A afirmação básica de Georgescu-Roegen nem sequer é a de que a teoria económica tem de levar em conta a lei da entropia, mas a de que a entropia é em todos os casos irreversível."
Correcto. A entropia total dum sistema macroscópico isolado não pode diminuir, ou seja o processo de aumento de entropia é irreversível, enquanto o sistema permanecer isolado. Completamente compatível com a formulação de entropia proposta por Boltzmann. Não sei se Georgescu-Roegen acreditava que as definições de entropia de Clausius e Boltzmann não são compatíveis. De qualquer modo, tal é irrelevante, pois Georgescu-Roegen utilizou a correcta definição de entropia de Clausius para chegar às suas conclusões sobre o processo económico. Que também teria deduzido se tivesse utilizado a (correcta) definição de entropia de Boltzmann.
"Esta concepção estatística da entropia permitiu chegar a conclusões muito diferentes das de Clausius e, depois de admitir que «os estados desordenados são muito mais prováveis do que os estados ordenados, porque praticamente qualquer conjunto aleatório de átomos será desordenado», Bronowski preveniu que um alto grau de probabilidade estatística não leva uma ocorrência a ser absolutamente certa. «Não é verdade», prosseguiu ele, «que os estados ordenados constantemente se degradem em desordenados». E aqui Bronowski chegou ao aspecto que mais directamente me interessa. «A estatística permite que a ordem seja edificada em algumas ilhas do universo (aqui na terra, em si, em mim, nas estrelas, numa variedade de lugares) enquanto a desordem prevalece noutras» (pág. 222)."
Errado. A probabilidade dum sistema macroscópico passar, espontaneamente, (dum estado mais desordenado) para um estado mais ordenado é irrisória, igual a zero na prática. Teríamos de esperar um intervalo de tempo muito superior à idade actual do Universo, para observar tal fenómeno em qualquer sistema macroscópico. A citação de Bronowski terá sido retirada totalmente de contexto. O que está terá querido afirmar é que é sempre possível, em teoria, diminuir a entropia de qualquer sistema, ou seja aumentar a sua ordem, mesmo que a sua entropia tenha aumentado no passado. No entanto, com um custo: o aumento global da entropia. A diminuição da entropia, o aumento da ordem, dum sistema, requer a realização de trabalho sobre o sistema, que inevitavelmente, pela 2a lei da termodinâmica, qualquer que seja o enunciado utilizado, origina a dissipação de calor. Este, ao ser transferido para o ambiente circundante ao sistema, leva a um aumento da entropia de tal ambiente, que é sempre superior à diminuição da entropia do sistema sobre o qual foi realizado trabalho. Portanto, o aumento da ordem (localmente) no Universo nada tem a ver com a probabilidade (infíma) de tal ocorrer de forma espontânea, mas decorre sempre da interacção entre sistemas, onde um realiza trabalho sobre o outro.
"Ora, Boltzmann considerara a entropia como podendo ocorrer simultaneamente com graus de probabilidade distintos numa variedade de estados, alguns deles com diminuição de entropia — as «ilhas» que Bronowski expressivamente referiu. Todavia, Georgescu-Roegen considerou a entropia como um todo único numa evolução temporal linear."
Errado. A mesma confusão outra vez. Ao nível macroscópico, Boltzmann sabia muito bem que a entropia dum sistema isolado aumenta continuamente, para todos os efeitos práticos. É possível que Georgescu-Roegen tivesse também interpretado incorrectamente as consequências da definição de entropia de Boltzmann. Mas, como já afirmei, tal é irrelevante para as conclusões que Georgescu-Roegen retira sobre o processo económico, pois estas são deduzidas com base na correcta definição de entropia de Clausius, a na incontornável segunda lei da termodinâmica.
(cont.)
(cont.)
"Este ataque infundamentado a Boltzmann é o ponto central da argumentação de Georgescu-Roegen, porque se admitirmos a formulação de Boltzmann cai o pressuposto das limitações naturais ao crescimento económico."
Errado. A formulação de Boltzmann para a entropia conduz exactamente à mesma segunda lei da termodinâmica que a formulação de Clausius, no que diz respeito a sistemas macroscópicos. Portanto, como Georgescu-Roegen deduziu as limitações naturais ao crescimento económico com base na segunda lei da termodinâmica, sendo de todo irrelevante se a ela chegou por via da formulação de Clausius para a entropia ou de Boltzmann, as deduções a que chegou são válidas.
"«Não há», escreveu Georgescu-Roegen, «nada de errado em dizer que a vida se caracteriza pela luta contra a degradação entrópica da simples matéria. Mas seria um erro grave interpretar esta afirmação no sentido de que a vida possa evitar a degradação de todo o sistema, incluindo o meio que a rodeia. Com ou sem a vida, a entropia da globalidade do sistema tem de aumentar» (pág. 192)."
Correctíssimo.
"Voltamos assim às «ilhas do universo» a que Bronowski se referia, onde é estatisticamente possível a diminuição da entropia. O grande problema da interpretação estatística — entenda-se, o grande problema para Georgescu-Roegen — é que ela exclui a irreversibilidade e a homogeneidade"
Errado. Todo o sistema isolado tende para o equilíbrio termodinâmico, para a homogeneidade, sendo a progressão nesse sentido efectivamente irreversível quando consideramos sistemas macroscópicos isolados. Só através da acção (trabalho) dum segundo sistema, que quebra o isolamento do primeiro, é que é possível "reverter" o "caminho para a homegeneidade, para a maior desordem", do primeiro sistema, mas com a consequência dum ainda maior aumento da desordem global, da somas das entropias de todos os sistemas que interagem no processo.
"Georgescu-Roegen formulou claramente a questão, ao perguntar se «o aumento da entropia é maior quando está presente a vida do que quando não o está?». E deu a resposta: «Se a presença da vida é importante, então a vida tem sem dúvida algum efeito sobre as leis da física. O nosso conhecimento comum acerca das mudanças no meio material acarretadas pela biosfera parece confirmar a ideia de que a vida acelera a degradação entrópica de todo o sistema» (págs. 193-194)."
Verdadeiro. A vida está associada a um processo metabólico, através do qual energia é utilizada para executar trabalho. Este processo permite a construção de (sub-)sistemas altamente ordenados, "(sub-)sistemas vivos", mas à custa dum aumento da entropia de todo o sistema no global.
E podia continuar. João Bernardo faz uma enorme confusão sobre os diferentes conceitos de entropia, e sobre as suas consequências no que respeita à 2a lei da termodinâmica. Se calhar, porque o próprio Georgescu-Roegen não reconhecia, erradamente como equivalentes as formulações de Clausius e Boltzmann para a entropia. Mas, como antes afirmei, o que é relevante é que Georgescu-Roegen assentou todas as suas deduções sobre o processo económico numa formulação válida quer de entropia (Clausius) quer da 2a lei da termodinâmica.
Finalmente, no que respeita à questão levantada pelo MSP: nenhuma "lei", da natureza, ou com outra origem, impõe quaisquer constrangimentos sobre o modo como a humanidade se organiza política e socialmente. Em particular, não há nenhum constrangimento físico à instauração dum sistema político verdadeiramente democrático, ou dum sistema social verdadeiramente igualitário. No entanto, há constrangimentos físicos óbvios à economia, à actividade económica, à produção.
Abraços,
Pedro
MSP,
Não creio que a questão seja "deduzir das leis da termodinâmica [..]critérios de juízo político". O que me parece é que no mundo actual não se podem formar critérios justos nem juízos acertados, seja em política ou em economia, se não se teve em consideração a realidade material do mundo biofísico. É impossível sonhar com soluções para os problemas humanos sem levar em conta primeiro (ou simultanesmente) os problemas ecológicos.
Porque, citando o autor do texto abaixo, "el sistema socio-económico es únicamente un subsistema contenido dentro de un sistema, la biosfera, y ésta tiene sus propias normas, sus propios ciclos que no deberíamos alterar. Estamos luchando, sin ser muy conscientes de ello, contra el medio que nos da la vida, con la prosaica finalidad de impulsar más este subsistema imperfecto."
Portanto, o comunismo (libertário, sff) do século XXI será ecológico ou... não teremos sequer um habitat disponível para ulteriores tentativas.
Quanto as implicações económicas, e portanto políticas, da termodinâmica, aqui vai um texto que as esclarece superiormente:
http://crashoil.blogspot.pt/2012/10/es-la-potencia-estupido.html
"nenhuma "lei", da natureza, ou com outra origem, impõe quaisquer constrangimentos sobre o modo como a humanidade se organiza política e socialmente"
A formulação parece-me incorrecta. As leis da natureza não prescrevem rumos para as sociedades humanas, mas isso não significa que a violação das suas leis não acarrete "punições". E onde há punição há constrangimento. Então, diria que as leis da natureza não nos dizem o que devemos fazer, mas dizem-nos o que devemos evitar (se não formos masoquistas).
A argumentação do João Valente Aguiar é típica de alguém de Humanidades: "quem disse isso foi o sr. X" (que é sempre uma grande autoridade, mesmo que ninguém o conheça). "Eu estou a basear-me no que diz o sr. X." E depois mandam-nos ler o sr. X, e não discutem enquanto a gente não for ler o sr. X. Ora eu não preciso de ler a obra toda do sr. X para ver que o que ele diz é uma asneira. Por isso gabo-te a paciência, Pedro.
A argumentação do João Valente Aguiar é típica de alguém de Humanidades: "quem disse isso foi o sr. X" (que é sempre uma grande autoridade, mesmo que ninguém o conheça). "Eu estou a basear-me no que diz o sr. X." E depois mandam-nos ler o sr. X, e não discutem enquanto a gente não for ler o sr. X. Ora eu não preciso de ler a obra toda do sr. X para ver que o que ele diz é uma asneira. Por isso gabo-te a paciência, Pedro.
Quanto ao teu texto em si está muito bom, e eu só gostaria de acrescentar um ou outro ponto. A segunda lei da termodinâmica depende de um modo essencial da finitez de recursos (com recursos infinitos poderias ter um demónio de Maxwell); isto é científico. É um facto. Mas por isto os antiecologistas não gostam nada da segunda lei da termodinâmica (fariam melhor em irem procurar o moto contínuo...), uma vez que os antiecologistas parecem acreditar que os recursos são infinitos. Ora não só os recursos são infinitos como (e isto é uma afirmação política minha) não podemos dissociar a esquerda da finitez de recursos. Diria mesmo: se os recursos fossem infinitos não precisaríamos da esquerda para nada. Por isto para mim esquerda e ecologia são indissociáveis: não concebo esquerda sem ecologia. Claro está que nada disto implica banir a tecnologia (somente usá-la de forma sustentável) nem nenhuma apologia da pobreza. Tudo isto são caricaturas de ecologismo, com que os antiecologistas retratam, de uma forma desonesta, todos os ecologistas. Fariam melhor em estudarem a segunda lei da termodinâmica.
Olá a todos,
Considero admiráveis o texto e os comentários do Pedro Viana e convido aqueles que acham um pouco áridos os desenvolvimentos sobre termodinâmica a ir ao último parágrafo do seu mais recente comentário, onde julgo que se encontra uma reflexão importante para compreendermos a inanidade da querela teológica que tem animado o Vias de Facto.
Por mim, continuo na minha, tem tanto sentido acusar a ecologia política (que procura levar-nos a tomar em consideração os constrangimentos da natureza) de querer parar a evolução e o progresso, como teria criticar a esquerda invocando o risco totalitário do igualitarismo negador da diversidade. Se todos os homens fossem absolutamente iguais, dizem-me, a vida seria um inferno. Talvez... mas trata-se de fraca justificação para continuarmos a aceitar o roubo quotidiano do capitalista sobre o trabalhor...
É salutar querer erradicar o mal pela raiz, mas também é inevitavel que as raizes se nutram dos elementos espúrios que há no solo, tais como são, em política, as nossas representações éticas mais profundas. No caso em apreço, elas não são um problema, pelo menos a meu ver. Alertar para os constrangimentos físicos ou “naturais” não significa de maneira nenhuma querer parar o progresso, mas antes defender que só há verdadeiro progresso com transformações realistas que levem em consideração os limites objectivos com que nos deparamos.
Paraíso no papel, já temos há muito tempo. O progressismo naïf que nos promete o paraíso para daqui a 10 gerações por obra e graça do avanço tecnológico é uma forma de paraíso de papel, tal como o paraíso que vem descrito na bíblia, que nos explica que os nossos males derivam todos de termos saído de lá. Empate técnico...
Abraços a todos
Caro Pedro,
deixando de lado a discussão no segundo ou terceiro grau da interpretação das leis da termodinâmica e da questão da entropia, coisas que não estou preparado para discutir, gostava de pegar na tua observação final: "não há nenhum constrangimento físico à instauração dum sistema político verdadeiramente democrático, ou dum sistema social verdadeiramente igualitário. No entanto, há constrangimentos físicos óbvios à economia, à actividade económica, à produção". Ora bem, se o que dizes é verdade (temos de ter presente que precisamos de comer e de respirar, mas a política começa onde essa necessidade não determina como nos organizaremos para a garantir…), então devemos evitar alimentar a ideia de que há soluções técnicas e científicas ou religiosas para a "questão social", que a consagrariam como domínio reservado à superioridade hierárquica dos "sábios" e especialistas ou dos intérpretes mais ou menos sacerdotais da lei divina. A democracia é o auto-governo igualitário e responsável dos cidadãos comuns (é por isso que requer a igualdade de condições em matéria de particicipação no exercício do poder e a transformação radical dos seus meios) e não o pleibiscitar das autoridades competentes.
Abraço
miguel (sp)
Caro Miguel,
Totalmente de acordo.
Um abraço,
Pedro
Caro Filipe Moura,
deixando de lado as outras questões, parece-me entrever no seu comentário um desdém positivista pelas "humanidades", que talvez o faça esquecer que o domínio da política é justamente o das coisas humanas. De resto, historicamente, é inegável que, sem o florescimento das humanidades no Renascimento, dificilmente se teriam desenvolvido as condições de possibilidaee da ciência moderna. As humanidades não são a ciência nem a substituem, mas são indispensáveis ao caldo de cultura sem o qual as ciências degeneram em simples "pesquisa aplicada", acabando por serra o galho que as sustenta.
O mesmo vezo utilitarista transparece, dir-se-ia, não só no barbarismo de "finitez" (por "finitude", ou "carácter finito") em que, depois, incorre, mas também na sua tese segundo a qual a "esquerda" só tem razão de ser porque os recursos não são ilimitados. Os recursos actuais são finitos? Sem dúvida, mas seriam também, para já, suficientes para acabar, por exemplo, com a fome e a pobreza, caso fossem democraticamente geridos. E os problemas de sustentabilidade e das condições ambientais por-se-iam, então - bem como os da escassez e da abundância - em termos homólogos. Ou seja, e como aqui escrevi há dias: "Não se trata de disputarmos ao capitalismo o exercício do poder para produzirmos ou consumirmos mais. A questão é que queremos, porque queremos a democracia entendida como cidadania governante, produzir de outra maneira e decidir em pé de igualdade sobre o como, o porquê e o para quê da produção. Na medida em que nos formos tornando capazes de o fazer, é evidente, dir-se-ia, que produziremos mais certas coisas e menos outras, que consumiremos de modo diferente e redefiniremos noutros termos a escassez e a abundância, e assim por diante" (http://viasfacto.blogspot.pt/2013/09/a-resposta-ao-ecologismo.html).
Cordiais saudações republicanas
miguel (sp)
Caros,
Estou a 100 % com o Miguel no que ele diz sobre as Humanidades mas, provocação à parte, o que o Filipe Moura esta a criticar não sera antes o abuso do argumento de autoridade (contraproducente nas ciências ditas "duras" como nas outras) ?
Quanto ao resto, parece me que o Miguel e o Filipe não estão muito longe de dizer a mesma coisa, que julgo importante sublinhar : num mundo em que os recursos fossem infinitos, a questão da repartição não faria sentido. Mais ainda, adiar a questão da repartição em nome da crença no advento de um mundo onde os recursos e os bens vão estar disponiveis sem limitações é uma posição que se me afigura dificil de conciliar com as exigências da esquerda.
Abraços
O Filipe Moura recorre a argumentos típicos de um neoliberal.
O primeiro é o das humanidades. Ora, o senhorito Moura nem sequer sabe qual a minha formação inicial pelo que nem lhe vou responder. Vir com essa das humanidades pode ser-lhe replicado ao contrário. Já que o senhor é das ciências naturais dedique-se ao laboratório e deixe a política e a sociedade para quem percebe do assunto. Não gosta deste argumento pois não? Então não o use. Para além de deselegante e de retomar um argumento seu patético relativamente a mim noutro espaço, esse seu argumento é o que justifica que os neoliberais (e não só) se apresentem como os especialistas de uma área e a monopolizem. Do ponto de vista estrutural, o seu raciocínio é idêntico. Afinal as humanidades servem para alguma coisa.
Em segundo lugar, o senhor Filipe Moura recorre a outro argumento neoliberal que é o da defesa da escassez e da finitude dos recursos. Mais, tem a lata de dizer que isso é que justifica a existência da esquerda. Ora, quem utiliza o argumento de que os recursos são escassos é a precisamente a economia neoclássica, de modo a que o mercado seja, dentro dessa concepção, a instância reguladora da produção e distribuição de bens. Pelo contrário, a esquerda revolucionária cresceu sob o signo da defesa da abundância. Como o senhor Filipe Moura não é destas áreas, se calhar não sabe mas Marx defendeu a transformação do capitalismo para o comunismo como a passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade. Aliás, todo o socialismo (social-democrata, leninista, até libertário) defendeu sempre ao longo da história esta mesma tese: a de que uma sociedade para além do capitalismo teria de aumentar a quantidade de bens produzidos. Eu acrescentaria ainda outro aspecto ainda mais importante: o controlo colectivo e democrático da produção.
Passar bem.
Caro Miguel Serras Pereira,
obrigado pela correção relativa à "finitude". Quanto ao resto, eu não vou estar aqui a repetir-me. O essencial foi dito de forma cristalina pelo Pedro Viana (maiúsculas minhas):
"NENHUMA "lei", da natureza, ou com outra origem, impõe quaisquer constrangimentos sobre o modo como a humanidade se organiza política e socialmente. Em particular, não há NENHUM constrangimento físico à instauração dum sistema político verdadeiramente democrático, ou dum sistema social verdadeiramente igualitário. No entanto, há constrangimentos físicos óbvios à economia, à actividade económica, à produção."
É isto!
Cumprimentos.
Caro Miguel Serras Pereira,
quanto à minha tese de que "se os recursos fossem infinitos não precisaríamos de esquerda", ela baseia-se nas ideias que o Pedro Viana bem explica no seu texto seguinte, e que eu por clareza transcrevo aqui:
"A finitude dos recursos naturais destrói completamente um dos argumentos centrais ao discurso dos defensores do Capitalismo: a desigualdade no acesso a recursos não importa, pois o que é relevante é o nível absoluto de recursos a que cada um pode aceder, ou seja o Capitalismo promoveria a desigualdade mas também providenciaria (quase) todos com muito mais recursos que qualquer outro sistema sócio-económico. Mas se os recursos são finitos, ou seja eventualmente decrescentes, porque entretanto gastos, é impossível ter simultaneamente desigualdade (crescente, em particular) e maior acesso em termos absolutos a recursos por parte de (quase) todos."
É só isto... Note no entanto (creio que essa distinção ficou clara) que, ao contrário da segunda lei da termodinâmica, a minha tese sobre a "esquerda" e "recursos finitos" é política, e seguramente é bastante discutível.
Cumprimentos.
Caro João (Valente Aguiar),
sem dúvida que "o controlo colectivo e democrático da produção" é a via de qualquer alternativa não regressiva ou "bárbara" à presente dominação capitalista. No entanto, quando passamos a considerar as suas consequências no plano da produção, a questão parece-me não ser quantitativa, mas qualitativa. E, se é provável, ou parece inevitável, que o controle colectivo e democrático levasse a um aumento da produção de certos bens, parece-me igualmente provável, senão inevitável, que leve à redução da quantidade de outros: menos modelos e quantidade de automóveis individuias (e consequentes repercussões no PIB ou outro indicador da mesma natureza) e mais de meios de transporte públicos, por exemplo. Outra maneira de demonstrar a minha ideia é considerar que, com os recursos existentes, o controle colectivo e democrático de que falas não só poderia instaurar uma igualização dos rendimentos e salários e uma democratização do mercado dos bens de consumo universais, como adoptaria outros critérios (políticos) de "criação de riqueza, de "satisfação dos consumidores","mercado", etc. É, de resto, uma ideia que tem também tradições no movimento operário e radical clássico, do mesmo modo que em pensadores muito diferentes (de alguns dos quais me sinto muito próximo… de outros nem tanto): e críticos do produtivismo: Adorno e Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Henri Lefenvre, Hannah Arendt, Castoriadis, Gorz, Kurz, Postone e Jappe…para citar apenas alguns nomes avulsos.
Abraço para ti
miguel (sp)
Robert Kurz e Moishe Postone aprofundam a reinterpretação crítica de Marx por Castoriadis, sobretudo, no que concerne a gargantuesca Teoria de Valor do velho prussiano.À suivre. Niet
Caros, especialmente Miguel (Serras Pereira) e João (Valente Aguiar),
Ha um pequeno pormenor nos vossos comentarios (o do Miguel é noutro post, mas tanto faz) que me faz confusão.
Tanto quanto julgo saber, os economistas neo-classicos não justificam a necessidade de medidas de austeridade com base na escassez dos recursos naturais, ou na sua limitação. O que eles dizem é que, em época de crise, as medidas de austeridade são a unica alternativa séria ao crédito (ou à inflação, que vai dar ao mesmo), tido como uma forma de imposto disfarçado e como uma fonte de distorção das Sacrosantas leis do mercado que acabamos por pagar muito mais caro em nome das mesmas leis Sacrosantas do mercado (e aqui metem uns engravatados a falar com graficos que olham para nos como se fôssemos burros...).
Posso entender que o custo do crédito, que é apesar de tudo um problema real, depende em parte das perspectivas de crescimento economico, que por sua vez podem depender do avanço tecnologico. Mas ha muito mais variaveis a ter em conta e, em absoluto, presumo que todos concordam que seria angélico dizer que o progresso tecnologico vai por sistema, sempre, resolver o problema do custo do crédito. Ou não ?
Talvez o João possa ajudar nesta matéria...
PS : O ponto essencial, pelo menos para mim, é que os economistas neo-classicos, com a conversa descrita acima, eludem completamente o problema da repartição que, em principio, funciona tanto em relação aos bens como em relação aos sacrificios, mas isso é outro problema...
Abraços
Caro João (Viegas):
não estou a ver bem por que razão o meu comentário suscita estas tuas observações - de resto, pertinentes e oportunas. Terás querido referir-te ao nosso camarada Miguel Madeira?
Talvez este e, como sugeres, o João (VA) queiram pegar no problema que lhes apresentas.
Abraço
miguel (sp)
João Viegas,
Pensei que a questão da escassez fosse um dado adquirido no que toca à economia neoclássica... Entretanto, já que alguém citou a wikipédia, faço o mesmo:
«Scarcity is the fundamental economic problem of having seemingly unlimited human wants and needs in a world of limited resources. It states that society has insufficient productive resources to fulfill all human wants and needs. Alternatively, scarcity implies that not all of society's goals can be pursued at the same time; trade-offs are made of one good against others. In an influential 1932 essay, Lionel Robbins defined economics as "the science which studies human behavior as a relationship between ends and scarce means which have alternative uses."»
Qualquer manual de economia dirá o mesmo. E escuso de lembrar a filiação teórica do Robbins...
Caro JVA,
Mas, salvo erro, a escassez a que se refere a citação não é uma ideia propria dos neo-classicos. Julgo que também os keynesianos poderiam dizer a mesma coisa, e o proprio Marx, alias, pelo menos enquanto não atingirmos a fase ultima da historia em que sera teoricamente possivel regermo-nos pelo principio "a cada um segundo as suas necessidades".
Ou então ha alguma coisa que me escapa. Talvez eu tenha uma ideia errada do que seja "a economia neo-classica" ?
Abraço
OH. João Viegas: aproveite estar/ viver em Paris. Se tiver tempo, claro, inquira/ desenvolva toda esta temática em torno da Ecologia Politica numa biblioteca de bairro, para não lhe aconselhar a B. François Mitterrand ou as das Uni. de Paris I ou IV! Tira as dúvidas e ganha em autonomia, facultando-nos uma visão estrutural forte e complexa. Acho que com a B.F. Mitterrand existe mesmo a possibilidade de interconexão via Internet. Endereço-lhe este desabafo, porque " sou " um velho "pariseense" com progenitura lá residente e recordo com nostalgia as fantásticas aventuras que me fascinam/fascinaram na Cidade-Luz, meu caro.É evidente que conheci " estudiosas " norte-americanas de Harvard ou Yale que me narraram todo o espólio gigantesco das respectivas Bibliotecas---no Campus. Salut! Niet
Hehehehe, caro Niet,
Com esta v. apanhou-me em flagrante e obriga-me a confessar que a minha pergunta era (um bocadinho) retorica. Mas com certeza que nos havemos de encontrar um dia numa biblioteca de bairro por ai. A BNF, infelizmente, ja não frequento ha muito tempo, por falta dele, precisamente...
Abraço parisiense. Salut !
A segunda lei da termodinâmica é apenas uma forma simplificada de tratar o teorema de Liouville (não exacta). Dizer que a entropia de um sistema aumenta, é o mesmo que dizer que a probabilidade da função de onda aumenta. Ou seja, é uma valente estupidez, e é impressionante que continue a ser ensinada desse modo.
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