13/09/13

Post-scriptum: contra a ecologia. 3) a hostilidade à civilização urbana

No Passa Palavra foi publicada a terceira parte do artigo "Post-scriptum: contra a ecologia" da autoria do João Bernardo. Realço deste artigo o exemplo histórico (e infelizmente real) dos Khmers Vermelhos como protótipo das teses anti-urbanas, anti-industrialistas e ecologistas mais extremas. Uma série que está a valer a pena seguir. 

«Os Khmers Vermelhos procederam à súbita destruição das condições sociais e económicas que permitiriam industrializar. De um dia para o outro foi dissolvida a população urbana, incluindo a totalidade do operariado, foram fechadas as universidades e escolas e mortos muitos professores e 80% a 90% dos artistas profissionais, e foram dispersados no campo entre dois e três milhões de citadinos, convertendo-se em trabalhadores agrícolas toda a população, excepto os quadros dirigentes. Note-se que ao mesmo tempo a agricultura familiar ficou destruída, porque a família foi posta em causa enquanto unidade social e tomaram-se medidas para dissolvê-la. A ruralização extensiva baseou-se numa modalidade de esclavagismo de Estado. O país ficou transformado num arrozal quadriculado de diques e valas de água, e o arroz e a água eram oficialmente os dois pés deste projecto de ruralização. Aliás, talvez se tratasse de um tripé, porque previa-se a utilização maciça da urina como fertilizante, e os governantes queixavam-se de só estarem a ser recolhidos 30% da urina, além de se estar a desperdiçar também a urina das vacas e dos búfalos. Eis uma interessante lição para os inimigos dos chamados adubos químicos. Os custos humanos e, se estes não bastarem, os custos económicos são hoje bem conhecidos. Entre 1,5 e 2 milhões de mortos numa população de cerca de 7 milhões, um holocausto devido à deslocação populacional, à repressão política, ao genocídio das minorias étnicas e à inanição e doença provocadas pela crise instaurada na agricultura. Foi esta a face real da utopia rousseauniana.


Não importa aqui saber se a elite dos Khmers Vermelhos tinha ou não lido Rousseau quando estudara em Paris, porque as ideologias difundem-se por numerosos meios e em planos muito variados. O que me interessa é chamar a atenção para o carácter rousseauniano do programa dos Khmers Vermelhos, como fizeram alguns autores. Por seu lado, outro especialista sustentou que Esparta é a única analogia histórica que se encontra para o regime dos Khmers Vermelhos, mas ainda aqui deparamos com Rousseau, já que ele propusera Esparta como modelo.


Também a ecologia, embora mais indirecta do que directamente, deve muito aos idílios de Rousseau, e é oportuno lembrar que igualmente noutros casos as suas consequências foram bem menos idílicas do que pareceria nos escritos. Quando um estudioso do fascismo mencionou «o nacionalismo orgânico de Rousseau, para quem a nação, constituída pelos mortos, pelos vivos e por todos aqueles que estavam ainda por nascer, obedecia idealmente a uma vontade geral que podia ser melhor definida como uma revelação de carácter especial», ele forneceu uma pista de análise que nos permite estabelecer uma linha de filiação entre um dos nomes mais ilustres do liberalismo burguês e algumas das mais tenebrosas modalidades do fascismo. Aliás, essa pista já havia sido indicada antes e, pondo o seu espírito cáustico ao serviço de um rigoroso dom de síntese, Bertrand Russell não receou escrever que «Hitler é um resultado de Rousseau», exactamente a mesma tese que Victor Klemperer — que além de nos ter deixado o registo da vida de um judeu no Terceiro Reich era um estudioso da cultura francesa — consignou no seu diário: «O desmascaramento póstumo de Rousseau chama-se Hitler».


Para que tudo isto não faça pensar, é necessário não querer pensar.

É no espelho de Pol Pot que devemos mirar a figura de um socialismo acompanhado pela barbárie, destruidor da civilização urbana e da sociedade industrial.»

27 comentários:

Libertário disse...

O Marxismo Iluminista

É difícil descobrir texto mais reaccionário que este que João Bernardo nos oferece. A sua obsessão anti-ecologista, vem de longe, desde o «Inimigo Oculto», espelhando a sua crença religiosa no «progresso» que deve ter herdado de Marx. Os marxistas, e até alguns anarquistas, foram herdeiros do iluminismo acreditando piamente no futuro radiosa, na razão, e na capacidade dos homens dominarem a «natureza». O que resultou disso nos países chamados «socialistas» todos sabemos…

Se em finais do século XX era já possível alguma lucidez, e cepticismo, em relação a essa visão religiosa do «progresso», partilhada pelos anti-capitalistas com a burguesia empreendedora, hoje depois da bomba atómica, das catástrofes e acidentes industriais, das alterações climáticas, do crescimento populacional imparável, da proliferação descontrolada das megalópoles, dos transgénicos, é decisivo o reconhecimento dos limites físicos e naturais a essa visão urbanizadora e industrializadora do mundo.

As críticas genéricas, e distorcidas, da «ecologia» e dos «ecologistas», como a do João Bernardo, independentemente da crítica necessária que deve ser feita ao ecologismo político ao ambientalismo manipulado e ao capitalismo «ecológico», só mostra os preconceitos enraizados do «progressismo» marxista, mesmo radical.

Qualquer sociedade libertária, federada e descentralizada, alternativa ao capitalismo, necessita obrigatoriamente de assentar na crítica da exploração capitalista, mas também da lógica destrutiva, social e ambiental, da sociedade de consumo, do industrialismo, do urbanismo descontrolado, reconhecendo os limites físicos e naturais que este nosso planeta tem. Se a ecologia e o ecologismo do século XX serviu para alguma coisa para nos fazer reconhecer esta realidade.

João Valente Aguiar disse...

Libertário,

«os limites físicos e naturais que este nosso planeta tem»

lendo isto fora do debate do ecologismo essa sua referência parece dirigir-se a algo como o fundo do oceano ou à geografia dos continentes.

Se tiver o segundo volume da História de Portugal do Mattoso à mão leia o que lá vem sobre a completa devastação que ocorria na Idade Média no que hoje achamos como natureza, florestas, bosques, etc.

Ainda sobre esta questão dos limites físicos pego no seu exemplo dos chamados regimes socialistas. É evidente que a devastação da natureza foi colossal e que, sob quase todos os aspectos, eram regimes abjectos. Mas essa devastação implicou o fim da sociedade naqueles territórios? Porque a questão de base na discussão da pretensa finitude dos recursos é esta: haveria um limite pré-definido como se fosse um balde do lixo que a humanidade estaria a encher. À noção do balde do lixo, o ecologismo junta-lhe a perenidade da forma do mesmo. Ou seja, os ecossistemas e o que se designa como natureza seriam imutáveis. Ora, isso seria verdade se a humanidade se comportasse dessa maneira. A verdade é que as pessoas esquecem que na Idade Média os desbravamentos destruíam literalmente territórios vastos (o regime senhorial percorreu toda a europa nessa dinâmica ao longo de vários séculos) e hoje nós não existimos?

Isto leva para outro aspecto anexo: a naturalização do social. A humanidade não está prestes a encher o balde do lixo. Pelo contrário, o balde vai recebendo lixo e todo o tipo de resíduos e de restos mas toda esta matéria tem vindo a ser reaproveitada de uma forma ou de outra. Mais ainda, a capacidade do balde do lixo é socialmente determinada. Isto significa que os limites físicos do regime senhorial não implicaram o fim da humanidade. Pelo contrário, o capitalismo aumentou a produtividade e com isso remodelou o tamanho do balde e exponenciou a sua capacidade. Por outras palavras, o aproveitamento mais eficiente dos recursos vai do menor gasto unitário de biomassa, etc. etc. até à produção de novos ecossistemas, reflorestações, remodelação dos solos, etc. numa velocidade muito superior à das sociedades anteriores. Não se trata aqui da poluição que é sempre indesejável mas do mecanismo que tenho tentado descrever em termos comparativos.

Ora, se a relação da humanidade com a natureza advém fundamentalmente de uma acção social, e se os chamados limites físicos são totalmente manipuláveis pela acção humana, então eles são contingentes/variáveis e não fixos como o ecologismo afirma.

O mais espantoso nas visões ecologistas é que elas não concebem a acção humana (que é sempre e também sobre a natureza) como uma acção social básica: a de um sujeito humano (assente em relações sociais de classe determinantes) sobre objectos. Se se levar o raciocínio ecologista ao extremo, esta acção humana de intervenção sobre a natureza (e que é consequência da própria interacção especificamente humana) teria de ser abolida na medida em que seria não-natural... Não só está a passar-se a noção de que a natureza tem limites e é exterior à humanidade, como a natureza é que determinaria a construção social. Em linguagem simples, os actos e os comportamentos sociais seriam fundamentalmente inatos e determinados biologicamente. Não preciso de dizer que este é o nervo central de algumas das piores construções ideológicas e práticas do passado. Para quê insistir na mesma onda?

João Valente Aguiar disse...

Para terminar e sobre a ideia de progresso. Mas se um dia se atingir uma sociedade para além do capitalismo, então não se terá concretizado uma prática de progresso? então nós não lutamos por uma outra sociedade que avance para além da actual? É evidente que o iluminismo tem o seu quê de problemático mas a alternativa do ecologismo baseia-se na assunção do outro pólo da modernidade: o romantismo irracionalista que, levado ao extremo, condimentou o fascismo hitleriano. Se o iluminismo é o grande chapéu-de-chuva ideológico e cultural ligado às noções mais liberais e portanto da mais-valia relativa, o romantismo que alimenta as ilusões ruralistas e anti-industriais do ecologismo articula-se enquanto grande chapéu-de-chuva da mais-valia absoluta. Que um implica o outro, a modernidade tem demonstrado isso vezes demais. Mas querer que o pior dos dois prevaleça em detrimento do primeiro (que também tem de ser criticado) só levará a modelos ainda piores do que o capitalismo actual (que já tem consequências terríveis que chegue...). Curiosamente o ecologismo não tem colocado a necessidade de se ultrapassar o par iluminismo/romantismo e mas tem sido uma das maiores forças a alavancar o irracionalismo anti-urbano e anti-industrial. O ecologismo é a expressão ideológica de um capitalismo miserabilista e não de uma sociedade para além do capitalismo. Assim é porque o ecologismo reproduz o pólo irracionalista da modernidade e com isso rejeita apenas o pólo iluminista. Coincide assim o pólo criado no romantismo com o que acha ser o anti-capitalismo.

Libertário disse...

O meu texto tem por base todo o artigo de João Bernardo, e não só este encerramento glorioso, bem como as suas posições persistentes nessas teses do anti-ecologismo e da descoberta das relações entre ecologismo e fascismo, que são uma aberração, para dizer de forma delicada.

Quanto aos Khmers Vermelhos são exemplo de uma visão marxita-leninista primária que pretende contruir um modelo de «comunismo» na ponta das espingardas e pelo terror. Não existe nenhuma relação nenhuma com o «ecologismo» a não ser numa visão delirante do analista. Os «comunistas» russos e chineses fizeram-no de forma igualmente destrutiva, do ponto de vista social e ambiental, usando outros modelos.

Quanto às preocupações com a pequena escala, os equilíbrios com a natureza, com esbater as diferenças cidade - campo estão presentes nos socialistas utópicos, em Morris, Kropotkin, Reclus e de alguma forma em algumas reflexões de Marx.
O ecologismo social de Murray Bookchin, e de muitos dos grupos ecologistas dos anos 60 / 70, manifestam uma crítica radical da sociedade capitalista em todos os seus aspectos: consumismo, tecnologia, centralização, desperdício e delapidação de recursos, insustentabilidade ambiental etc.

Valente Aguiar segue nos comentários a linha «bernardiana» de manipular os argumentos. Todos sabemos que a humanidade está no planeta à milhares de anos, que muita delapidação de recursos foi realizada no passado,que houve destruição de florestas na Idade Média, que as cidades inglesas do século XIX era poluídas, que o mundo ainda não acabou...
No entanto, as questões de fundo levantadas pelos ecologistas mantém-se: há, ou não, uma limitação física de espaço e recursos naturais na Terra?
Podemos e desejamos, ou não, generalizar o modo de vida norte-americano a toda a população do Globo?
Queremos, ou não ter um controle sobre a tecnologia e sobre a escala das instituições? Desejamos como modelo societário as megalópoles de milhões de habitantes concentrados no litoral de países e continentes abandonados?

Ao que parece alguns marxistas da linha do Progresso só desejam, como no passado (comunismo=a sovietes+electricidade), o poder. O seu comunismo, seria a ampliação e generalização do modelo capitalista-industrialista-urbano-consumista! Pelos vistos estão próximos do projecto do Partido Comunista Chinês...

João Valente Aguiar disse...

Libertário,

parece-me que confunde citar autores com a discussão mais sistemática de processos sociais. É esse seu apego ao valor facial que o leva a esquecer o fundamental. Ou seja, onde você vê o Pol Pot como uma sequência directa do leninismo (que também o era), ele aplicou um programa que partilha vários vectores actualmente existentes em diversos agrupamentos ecologistas: recusa das cidades, da indústria, recusa de todos os mecanismos de expansão da produtividade, etc. Nesta questão fulcral das práticas dos Khmers Vermelhos existe menos leninismo e muito mais ligação ao ecologismo.

De que interessa se os Khmers Vermelhos se afirmavam leninistas se a prática deles antecipa os efeitos das teses ecologistas mais extremistas? Os ecologistas também partem da mesma base de naturalização do social dos nazis mas não têm necessariamente de recorrer aos mesmos aspectos superficiais do discurso. O que conta, como sempre, é o núcleo propulsor das práticas no processo e não a sua nomeação como mais ou menos de esquerda ou o que quer que seja.

Para terminar. Você cita «O ecologismo social de Murray Bookchin».
Ora bem, entre os autores que mais profundamente estudaram a génese comum do fascismo e da ecologia e a posterior difusão do fascismo entre a extrema-direita contam-se Janet Biehl e Peter Staudenmaier no seu livro: "Ecofascism. Lessons from the German Experience, Edimburgo e San Francisco: AK Press, 1995". Convém saber que Janet Biehl era a companheira de Bookchin e Staudenmaier um seu discípulo. Por isso termino como comecei este comentário, não sei até que ponto é útil para uma discussão citar nomes à toa (basta ver esta sua incongruência) em vez de se discutir as teses ecologistas e a sua relação com o fascismo.

Libertário disse...

Qual o interesse para este debate de fundo se existem «eco-fascistas» ou eco-capitalistas». Qual a relevância de Hitler ser vegetariano, ou os nazis gostarem do «campo», como já li escrito por João Bernardo (embora gostassem mais da indústria pesada, da guerra e das autoestradas...).
O que é que o projecto paranóico dos Khmers, autoritário e militarista,tal como já tinha acontecido com a chamada Revolução Cultural Chinesa, tem a ver com a crítica do desenvolvimento capitalista, com o projecto de atenuar as diferenças cidade - campo ou com o ideal de realizar o comunismo?

O que vale a pena analisar são as teses relevantes levantadas pelos ecologistas a partir dos anos 60, ou se quiser pelo sector mais interessante do movimento ecologista (já que é um movimento diversificado com teses, práticas e tácticas contraditórias), em que se debate a tecnologia, a sociedade de consumo, a industrialização, a urbanização do mundo, os recursos naturais o impacto do chamado «desenvolvimento» no planeta etc. E nesses aspectos os ecologistas radicais, sociais, ou o que lhe quiser chamar, estão na continuidade de muitas das reflexões do socialismo utópico e libertário, de Fourier, Kropotkin, Morris, Thoreau, Reclus ou, mais recentemente, de Ellul, Mumford, Gorz ou Bookchin.

Liev Tolstoi disse...

De quanta terra precisa um homem?

«Um homem fez um pacto com o diabo: receberia toda a terra que conseguisse percorrer a pé. Começou a caminhar dia e noite, sem parar, de vale em vale, de monte em monte. Até que, extenuado, caiu morto. Comenta Tostoi: se o homem conhecesse seu limite, entenderia que apenas uns metros lhe bastariam; mais do que isso não precisaria para ser sepultado.»

«Em vão, centenas de milhares de homens, amontoados num pequeno espaço, se esforçavam por desfigurar a terra em que viviam. Em vão, a cobriam de pedras para que nada pudesse germinar; em vão arrancavam as ervas tenras que pugnavam por irromper; em vão impregnavam o ar de fumaça; em vão escorraçavam os animais e os pássaros - Em vão... porque até na cidade, a primavera é primavera.»
"Ressurreição"

Pedro Viana disse...

Boa noite,

Na minha opinião, o Libertário tem (quase) toda a razão do seu lado.

Seria útil, antes de mais, definir alguns conceitos. Começemos por ecologista, ou ambientalista: aquele que pugna pela preservação ou melhoramento de ecosistemas. Nada mais. O ecologismo não é um movimento que, na sua essência, tenha algo a dizer sobre o modo como os seres humanos se devem organizar socialmente. Não é por isso minimamente de espantar, que entre quem se possa identificar como ecologista (em maior ou menor grau), tendo em conta a definição acima dada, haja quem defenda ideologias de organização política e sócio-económica que vão do fascismo ao anarquismo, passando por todo o espectro ideológico intermédio, conservadorismo, neo~liberalismo, social-democracia, socialismo, comunismo, "you name it". Portanto, tentar "colar" o ecologismo ao fascismo revela muita má-fé, e desonestidade intelectual. É óbvio que o João Bernardo julga o ecologismo uma distracção do que devia ser o único pensamento na mente dum ser humano: a luta de classes. Esse é para ele o objectivo supremo, e tudo o resto é secundário e descartável. Espanta-me que ainda não tenha escrito um texto, ou se calhar já o fez, a condenar a atribuição do direito a férias pagas aos trabalhadores, e aqueles que o defende, como uma manobra capitalista que visa "libertar a pressão social" e retirar da mente dos trabalhadores, nem que seja por alguns dias, o supremo objectivo da luta. Por isso é que o João Bernardo julga estratégica a sua tentativa desesperada para desacreditar o Ecologismo: o seu sucesso veio preencher demasiadas mentes que, na sua óptica deviam estar preenchidas a reflectir sobre e a planear a luta de classes.

Mas nem só de ressabiamento vive o anti-ecologismo do João Bernardo. Este tem uma genuína crença no Progressismo, que obviamente não sabe de todo definir. Porque não é objectivamente definível. O progressismo é uma crença totalmente subjectiva, pois baseia-se na crença de que haverá um amanhã em que... quê? As pessoas serão mais felizes? Viveremos até mais tarde? Todos teremos um automóvel? Haverá naves espaciais? O quê? Qual é o objectivo do progresso? Há alguma medida objectiva do que é o progresso? Todas as ideologias não preconizam um ideal, que se alcançável, representa um progresso? A extinção dos judeus não era representava um progresso para Hitler? À la João Bernardo, poderia agora também a ele colá-lo a essa personagem tão pouco recomendável. Sendo o Progressismo totalmente subjectivo, não é possível identificar progressistas pelos seus objectivos. Mas antes pelos seus métodos, que genericamente se podem caracterizar como voluntaristas: aqueles que se opõem ao "progresso" são obstáculos que é necessário remover (em nome do bem maior para a comunidade, por mais que ela não o veja como tal), mais a bem ou mais a mal, depende dos pruridos do progressista em questão. Mas conservadorismo, a recusa da mudança, porque sim, não é a única alternativa ao progressismo. A alternativa democrática é respeitar a vontade da maioria, sem atitudes paternalistas, arrogantes, baseadas em subjectivas noções de superioridade "civilizacional". O desprezo que transborda no texto do João Bernardo perante comunidades ditas "primitivas", é exactamente igual à ideologia onde se alicerçaram todos os colonialismos (apesar dos objectivos reais destes teeem sido, e ainda serem, principalmente a expoliação laboral e material dessas comunidades e da terra que ocupavam).

(continua)

Pedro Viana disse...

Quando o João Aguiar nos diz que já modificamos susbtancialmente o ambiente natural, mas ainda cá estamos, vivos, nada menciona sobre as condições da nossa existência. Estamos mais felizes? Sábios? Confortáveis? Melhorou a "condição humana"? Houve mais sofrimento nesse "levantar" do chão, do que teria havido tivessemos mantido mais laços com a terra? É assim evidente que estamos "melhor"? Aparentemente, para o João Aguiar o ser humano é totalmente adaptável ao ambiente que o rodeia, ie. somos capazes de nos adaptar a todas as condições ambientais, e ser tão "felizes" na Terra como na Lua. Mas é interessante que o mesmo já não ache no que respeita às condições sociais: há sistemas de organização social em que a felicidade humana é mais potenciada do que noutros. Porquê? Porque sim? A minha visão é bem mais simples: o ser humano não é feito de plástico, e não há um tipo de ambiente, organização social, ou económica, que sirva igualmente a todos de modo a atingirem a sua "plenitude", ou "felicidade". Só a deliberação democrática, e no respeito por todas as opiniões, é capaz, em cada momento, de permitir a decisão sobre o que fazer para que essa "felicidade" recaia sobre uma maioria, que só ela é capaz de definir para si. Todos têm o direito a ter a sua própria verdade, mas não no direito de julgarem estarem na posse da Verdade. Esse é o trilho dos que se julgam iluminados, que não pouco frequentemente acabou em alguns dos piores despotismos na História.

Se é verdade que o Ecologismo é compatível com qualquer ideologia sobre a organização política ou sócio-económica, a verdade é que está irremediavelmente em oposição ao Produtivismo (que defende a maximização da produção, ou seja da transformação, em particular de recursos naturais). E este por sua vez, está no âmago do actual sistema Capitalista. Com a diminuição da intensidade da luta de classes no "Ocidente", o que resulta muito mais de mudanças culturais, tecnológicas e sócio-económicas do que da ascensão das preocupações ecologistas, hoje em dia uma das mais promissoras vias de des-legitimação do sistema capitalista é exactamente a ataque ao seu âmago produtivista. A Esquerda que sabe pensar tacticamente compreendeu isso, tal como a Direita (veja-se o ataque cerrado à noção de aquecimento global).

E, para acabar, não há nenhum desprezo intrínseco ao ecologismo perante o citadino, como o Miguel Madeira fez questão de explicar num post subsequente. O que há é uma desconfiança do Poder da Cidade perante o ambiente (menos transformado) que a rodeia, e da incapacidade do Citadino compreender, porque não experiencia, a importância e o valor desse ambiente. Crente na importância da dispersão do Poder, como passo necessário para a implementação da Democracia, que outros podem designar por Comunismo ou Anarquismo, não posso deixar de partilhar essa desconfiança da enorme concentração de Poder que existe numa Cidade. Uma cidade pode ser tão democrática como uma aldeia. Mas enquanto que a reversão da democracia numa aldeia pouco impacto terá no exterior desta, o mesmo já não se passa com uma cidade. A existência desta comporta uma ameaça permanente à emancipação democrática dos seus vizinhos. Daí a preocupação que tantos anarquistas sempre tiveram com a estruturação geográfica da(s) comunidade(s), apelando à dispersão territorial.

Abraços,

Pedro

João Valente Aguiar disse...

Pedro,

só uma observação muito rápida. A questão das ideologias como o caso do ecologismo não tem a ver com o facto de existirem pessoas ecologistas de diferentes colorações políticas. Pelo contrário, as ideologias mais poderosas da modernidade extravasam essas fronteiras mais faciais sem perderem o seu núcleo fundamental. No caso do ecologismo, as teses de que a natureza estaria num estado de equilíbrio permanente e que só a intervenção humana a estaria a desestruturar, a tese de que haveria recursos físicos e naturais limitados e, acima de tudo, a colagem dos comportamentos humanos a uma sua naturalização. Ora, é deste núcleo (que já foi desenvolvido em muito maior extensão anteriormente) que se pode dizer que o ecologismo comunica com o fascismo. Não se diz em lado nenhum que são a mesma coisa mas que partilham demasiadas fundações para que se considere tudo aquilo inócuo.

O mesmo se passa com o nacionalismo. Nem todas as pessoas à esquerda que advogam vias políticas nacionalistas são fascistas. Pelo contrário, até podem ter lutado contra o fascismo e advogarem posições nacionalistas de esquerda. Isso não significa que sejam fascistas - porque não o são - mas que difundem uma ideologia que pode levar a uma construção fascista. O poder do ecologismo e do nacionalismo é, nesse sentido, muito aproximado e insidioso, na medida em que são algumas das ideologias aparentemente menos afiliadas na superfície a uma classe social ou a uma cor política mas que, por isso mesmo, têm a capacidade de se tornarem em grandes fortalezas de um senso comum captável para experiências fascistas ou autoritárias. Este é o grande perigo do nacionalismo e do ecologismo nos dias que correm.

Niet disse...

Ö Libertário está em grande forma e a sua activa e surpreendente argumentação, onde sem rodeios ou tiques desmobilizadores, coloca a questão capital de alternativa autonoma e auto-gestionária do espaço público e da natureza. A ecologia ou será a radical contestação do " modo de vida capitalista e o que ele implica- e ele implica tudo, absolutamente tudo o que existe hoje ", frisa Castoriadis. Sem o apelo e a determinação politica incontornável de associar a ecologia ao processo de instauração da autogestão, de autogoverno, de autonomia e de auto-instituição, nada de positivo se conseguirá e repetir-se-ão os estigmas e poderosas contradições do sistema de dominação hegemónico hodierno. Salut! Niet

Pedro Viana disse...

João,

Nesse caso, todas as ideologias que nada têm a dizer sobre a organização política e sócio-económica, como o progressismo, o produtivismo, o misticismo, o iluminismo, todas as religiões, o modernismo, etc, são capturáveis pelo fascismo! Mas, também te podia dizer, como muitos outros o disseram, que todas elas podem também ser utilizadas para combater o Capitalismo, ou já agora qualquer outra ideologia que seja dominante num dado momento.

Peço desculpa, mas isso revela alguma preguiça na análise dos fundamentos dessas ideologias. Por exemplo, pegando no nacionalismo vs. ecologismo.

No cerne do nacionalismo existe uma valorização assimétrica do ser humano: há um nós (mais) e um eles (menos). Facilmente, essa valorização pode ser utilizada para justificar uma hierarquia de Poder na relação entre comunidades, e no seio duma sociedade (nós vs. os "imigrantes", os "diferentes"). O fascismo facilmente utiliza essa inerente hieraquia nas relações sociais preconizada pelo nacionalismo, para impor, principalmente em situações percebidas como de ameaça grave à "comunidade nacional", a extrema hierarquização do Poder que o caracteriza.

Pelo contrario, no cerne do Ecologismo nada figura em termos de valorização relativa do humano. Nada. Não há nada no ecologismo que possa ser utilzado para diferenciar em termos de valor intrínseco o ser humano, e a partir daí justificar uma hierarquia social de Poder. É por isso muito mais difícil ao fascismo impor-se no seio duma sociedade em que o ecologismo é comum, do que numa sociedade em que o nacionalismo é comum. A única via através da qual se chega do ecologismo ao fascismo, é através da crença de que só na presença de estruturas fortemente hierárquicas é possível impedir a destruição de mais ecosistemas. É uma via que foi trilhada, comparativamente ao nacionalismo, por muito poucos no ecologismo. Já agora, conheço muitos exemplos históricos em que o produtivismo, a crença no "progresso", foi utilizada como um dos principais co-adjuvantes ideológicos à imposição de sistemas fortemente hierárquicos, alguns dirão até fascistas. Basta pensar no que aconteceu na transição da Rússia czarista, e camponesa, para o gigante industrial conhecido como URSS. Mas muitos outros exemplos existem. O João conhece algum exemplo histórico em que o ecologismo tenha sido utilizado como parte fulcral da sustentação ideológica dum regime social fortemente hierarquizado?

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Caros,

Hesitei muito antes de escrever esta nota — quase um simples "ponto de ordem" — sobre a discussão em curso acerca do ensaio que o João Bernardo escreveu no Passa Palavra e que o João Valente Aguiar aqui divulgou publicando um seu excerto. Com efeito, a minha posição é especialmente incómoda, e haverá talvez quem a considere uma tentativa de ficar de bem com deus e com o diabo, porque a verdade é que sobre alguns pontos essenciais estou de acordo com o JB e o JVA, ao mesmo tempo que tenho muitos dos argumentos do Libertário e do Pedro Viana por extremamente convincentes.

Os excessos polémicos do João Bernardo não ajudam, tendo-me levado há não muito tempo ainda a escrever-lhe num correio pessoal: "Vou ler – já comecei – e reler o teu ensaio contra o ecologismo. As minhas reservas antecipadas e provisórias são as seguintes. Estando embora mais do que de acordo contigo contra a ideia de opor, em benefício da primeira, a 'preservação' e a 'transformação' do meio, introduzo uma ressalva que, até ao momento, creio que não consideras como seria necessário: a 'gestão' do ambiente, a “transformação da natureza” (que é sempre auto-transformação humana, social e histórica, etc.), não é meramente técnica nem política e socialmente neutra (de resto, a técnica, também não). Assim, chame-se-lhe ou não ecológica, a questão do 'ambiente' configura uma área de intervenção e acção política que não devemos descurar, tanto mais que a sua relevância, ainda que distorcidamente representada pelo ecologismo que denuncias, é imediatamente sensível na vida quotidiana. Por outras palavras, acho que tens razão em tudo o que dizes, mas que deixas por dizer alguma coisa que seria importante teres em conta. Assim, mais tarde, se for caso disso e as minhas dúvidas não se dissiparem entretanto, tentarei, após a publicação da série completa, retomar contigo o debate". Na mesma ordem de ideias, poderia objectar-se-lhe que não, não é verdade que as preocupações ambientalistas ou a politização das questões ambientais sejam forçosamente uma mistificação ou manobras de diversão, alimentadas por uma espécie de "ódio à rua" (mais ou menos próximo do confessado pelo funcionalismo de certa arquitectura moderna) e de declaração de guerra à polis, entendida e bem como condição da democracia. Todavia, o mesmo exagero polémico é identificável nos inaceitáveis ataques ad hominem que o Libertário e o Pedro Viana lhe endereçam, alguns dos quais flagrantemente injustos e reveladores de uma reflexão insuficiente sobre as ideias fundamentais de um pensador de primeira grandeza das questões sociais e políticas do nosso tempo (ainda que fique por vezes muito aquém do seu melhor quando aborda a mal chamada "questão ecológica").

Miguel Serras Pereira disse...

(cont. do comentário anterior)

Esquematizando muito, o meu ponto é o seguinte. As questões ambientais e da gestão dos recursos, etc. podem e devem, uma vez que fazem parte das condições comuns de existência, ser objecto de deliberação e decisão democráticas, e se, de facto, "as teses de que a natureza estaria num estado de equilíbrio permanente e que só a intervenção humana a estaria a desestruturar, a tese de que haveria recursos físicos e naturais limitados e, acima de tudo, a colagem dos comportamentos humanos a uma sua naturalização" (JVA) podem desempenhar, desempenharam por vezes e por vezes continuam a desempenhar (ao contrário do que o PV, cedendo demasiado ao pensamento desejante, parece sugerir) o papel de uma sacralização da dominação hierárquica de tipo fascista, não é forçoso colocarmos as questões ambientais nesses termos, nem esquecer que a "natureza", excepto na sua mitificação sob as formas analisadas pelo JB, é bem menos "natural" e equilibrada, para já não dizer "sábia" ou "esclarecida" do que o conservacionismo a pinta, uma vez que, mais não seja, a própria cultura ou sociedade é ab initio uma transformação interna às condições naturais, uma criação tornada necessária, embora não sob uma forma definida e predeterminada, pelo estado natural anterior.

Gostaria ainda de introduzir mais uma pista de reflexão, que o debate em curso deixa na sombra. A ideia comum ao optimismo produtivista e tecnológico e à ideologia do ecologismo naturalista segundo a qual, no fundo, a política é dispensável, e as questões políticas e sociais são passíveis de receber uma solução técnica (soft ou hard, conforme os gostos) ou, se se quiser, "tecno-científica". Esta ideia comum, sim, é radicalmente antidemocrática, e tão hierárquica ou sacralizadora da ordem estabelecida ou a estabelecer como o credo religioso e teocrático da ecologia "profunda" ou de qualquer outro fundamentalismo assente no "esplendor da verdade" revelada.

miguel (sp)

João Valente Aguiar disse...

Pedro,

«O João conhece algum exemplo histórico em que o ecologismo tenha sido utilizado como parte fulcral da sustentação ideológica dum regime social fortemente hierarquizado?»

Eu achava que o excerto que coloquei sobre os Khmers Vermelhos (onde se aliaram ecologismo, nacionalismo e leninismo) seria suficiente... Mas também podemos ir à própria Alemanha nazi onde as mesmas concepções de equiparação dos animais a humanos, da biologização do social e do cumprimento de um programa de aproximação da sociedade a um "estado natural" estiveram presentes. Aliás, no caso nazi, foi-se muito para além do nacionalismo vulgar e o racismo hitleriano não só se sustentou a partir de premissas biologizantes - hoje compartilhadas por correntes ecologistas - como se propôs salvar o que considerava ser a natureza no seu estado mais puro e genuíno através de um processo de descida de uma parte significativa dos humanos a um estado animal: os judeus como a anti-raça a ser extirpada, pois eram "bacilos" corruptores de um estado natural rácico; e os eslavos, sub-homens condenados a serem escravizados e reduzidos a animais de carga. De referir que toda esta concepção delirante parte de uma noção totalmente biologista/naturalizante da sociedade. Ou seja, ao estado autêntico da natureza teria ocorrido uma degeneração profunda: a intervenção de elementos anti-rácicos com o intuito de divulgar a racionalidade e a acção transformadora do homem sobre a natureza. Portanto, o programa rácico nazi tinha como propósito restabelecer esse propósito de voltar a equilibrar os humanos na natureza.

abraço

Pedro Viana disse...

Caros,

MSP: "A ideia comum ao optimismo produtivista e tecnológico e à ideologia do ecologismo naturalista segundo a qual, no fundo, a política é dispensável, e as questões políticas e sociais são passíveis de receber uma solução técnica(…)"

Repito, o ecologismo nada tem a dizer sobre a organização política e sócio-económica. Nada. Nem que esta pode, ou não ser optimizada através de critérios técnicos. O ecologismo não reflecte sobre a interacção entre seres humanos, mas apenas sobre a interacção destes com os ecosistemas. Qualquer tentativa de atribuir posições político-socais ou apolíticas ao ecologismo resulta de generalizações abusivas do que alguns ecologistas defendem, não porque são ecologistas, mas porque **também** são X-istas (podem substituir X pelo prefixo de qualquer ideologia política, incluindo os "tecnicistas" = a organização sócio-económica deve ser decidida por aqueles que mais "conhecimento" demonstraram possuir sobre o assunto).

JVA: Khmers Vermelhos e ecologismo? Os Khmers Vermelhos estavam preocupados com a destruição dos ecosistemas e foi por isso que mandaram milhões de pessoas para fora das cidades?! Disseram-lhes: vão para o campo, mas não mexam em nada, que os ecosistemas são para preservar? O que os Khmers Vermelhos tinham era receio do poder "corruptor" da Cidade, da hubris. Poder-se-ia dizer que eram naturalistas, ou primitivistas: acreditavam que o ser humano seria "mais feliz" se saísse da Cidade e re-integrasse, ou reconstruísse, a pequena comunidade aldeã. É um erro de avaliação confundir naturalismo/primitivismo, com ecologismo. Sendo verdade que muito ecologistas também defendem posições mais ou menos naturalistas/primitivistas, não são nos seus fundamentos ideologias equivalentes, parecidas, ou sobrepostas. E a esmagadora maioria dos ecologistas que defendem algum grau de naturalismo/primitivismo, fazem-no de modo muito moderado.

Quanto a Hitler, mais uma vez não estamos a falar de ecologismo, mas sim em parte de algum naturalismo/primitivismo, ao qual de modo, diria "muito original" e "inventivo", um elemento rácico. Mas, como já antes afirmei, é sempre possível criar ligações entre qualquer ideologia política e ideologias apolíticas (ie. que nada têm a dizer por si sobre a organização político-social). Hitler também defendia o produtivismo, a industrialização, como meio de alcançar maior poder para a raça ariana. E também defendia que os judeus tinham como objectivo a subversão do cristianismo. Ou seja associou fascismo ao naturalismo, ao produtivismo, à religião, ao misticismo. E por isso todos os que são naturalistas, produtivistas, religiosos, mísiticos, etc, passam a ter um estigma: cuidado, que estão a um passo de deixarem crescer um bigodinho sobre o lábio superior! Não há maior transformação/destruição de ecosistemas, do que aquela que resulta da guerra. Hitler pensou duas vezes sobre começar uma guerra, porque era ecologista e preocupava-se com o seu impacto sobre o meio natural?!

Abraço,

Pedro

João Valente Aguiar disse...

Pedro,

o ecologismo é muito mais sobre as pessoas do que sobre a natureza. O ecologismo refere-se directamente a uma concepção de sociedade utilizando como camuflagem a sua visão da natureza. Não se trata de limpar as praias, de não poluir ou não pegar fogos às matas. Trata-se de uma concepção do mundo que perpassa a biologização e a naturalização dos comportamentos sociais. Por isso é que um regime que defendeu o racismo como o nazi viu nas suas práticas uma forma de regeneração da natureza que as raças inferiores estavam a colocar em causa. Não por acaso levaram a cabo práticas hoje defendidas por sectores mais extremistas do ecologismo: a equiparação dos animais aos humanos (na realidade defenderem mais direitos para os animais do que para a maioria dos humanos); a proibição de experiências clínicas em animais, etc.

Por outro lado, o que os nazis fizeram e projectaram para o leste europeu - um programa de destruição total de pessoas, bens e cidades - era animado pelo propósito à época explícito de aproximar a civilização urbana ali existente a uma economia rural que lembrasse a pretensa economia natural camponesa, enxameada de hortinhas improdutivas e de ausência de instalações urbanas modernas na esmagadora maioria do território. Precisamente esse belo estado "natural" que o Pol Pot quis concretizar no Cambodja e que vários actuais sectores ecologistas defendem: o fim da indústria, o regresso ao campo, contra a mecanização da agricultura, contra a utilização de adubos, contra os OGM's, a defesa da utilização de mão-de-obra familiar e não paga no cultivo de hortas, a defesa da substituição das vacinas por mezinhas, etc., etc., etc.

É este o plano do ecologismo.

abraço

Niet disse...

Fica-se siderado com a violência simbólica da falsa premissa,sucessiva e manipulatoriamente reiterada,exposta por JV Aguiar na sua " critica " da ecologia. Tudo se agrava ainda, pois, JVA,circula em apoteose com o ingrato e inacreditável desplante de a associar à ideologia nazi. Isto é, de todo em todo, inaceitável e envenena toda a discussão construtiva e histórica do problema, que se estrutura e solidifica de forma universal a partir dos anos 70. Avancemos com esta " tese " de Castoriadis:(...) "o tomar em conta o meio Ambiente, o equilibrio entre a Humanidade e os recursos do planeta é uma evidência central para toda a politica verdadeira e séria. É qualquer coisa que nos impõem tanto a corrida desenfreada da tecno-ciência autonomizada como a imensa explosão demográfica que continuará a fazer-se sentir ainda durante pelo menos meio século. Mas trata-se de um tomar em conta que deve integrar-se num projecto político, que necessariamente irá para além da simples " ecologia. (...) A inserção da componente ecológica num projecto político democrático radical é indispensável. E torna-se ainda mais imperativa pelo facto de a reposição em questão dos valores e das orientações da sociedade actual, que um tal projecto implica, ser indissociável da crítica do imaginário do " desenvolvimento " em que assenta a nossa vida ",(1992). Niet

João Valente Aguiar disse...

O ecologismo não trata de cuidar das plantinhas e de não surrar o chão. O ecologismo, nomeadamente nas suas versões mais extremas, é uma ideologia que postula o regresso ao campo, a desindustrialização, o decrescimento económico, o fim do uso de adubos químicos e de técnicas modernas na agricultura, etc. Em suma, o ecologismo é uma porta aberta à miséria.

O espantoso na maioria dos comentários defensores do ecologismo é que raramente discutem os argumentos do texto do João Bernardo que eu aqui coloquei. A avaliar pela discrepância entre o que escrevem e o que de facto está escrito no texto arrisco até a dizer que não lerem sequer o texto. As atitudes plasmadas na mera citação de autores para se auto-convencerem e no passar ao lado dos argumentos do texto só dão indicadores nesse sentido.

Miguel Serras Pereira disse...

João (VA) e Pedro (V), caríssimos:

Há aqui um mal-entendido ou vários. Penso eu de que. Sem dúvida, da sacralização que representa a natureza como fundamento de leis inevitáveis a que a sociedade e os indivíduos só podem obedecer, e da biologização pseudo-científica das questões sociais e políticas, só devemos esperar o pior. É incontestável, de resto, o papel que tais representações desempenharam como elementos de legitimação da ordem hierárquica e anti-igualitária.

Mas o combate ao desperdício de recursos e contra a degradação física do ambiente em que vivemos, ou também a preocupação paisagística assente na ideia de que a transformação do meio, nas suas várias vertentes, é uma acção de auto-transformação humana e que por isso deve ser assumida como dimensão do governo da cidade democrática, nada tem de retrógado ou totalitário.

Se adoptarmos este ponto de partida, sobre o qual não vejo razão para não concordarmos, o debate não se esgotará (felizmente), mas talvez se torne mais instrutivo para todos, ajudando-nos a ver e falar melhor.

Ou serei eu que estou enganado?

Abraço para os dois

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Bom, para terminar, pela parte que me toca, e porque já nos estamos a repetir. Basta consultar qualquer dicionário

Priberam - Ecologismo = movimento de defesa de um maior equilíbrio entre o ser humano e as suas intervenções no meio ambiente.

Porto Editora - Ecologismo = movimento que procura um maior equilíbrio entre o homem e seu meio natural, bem como a proteção da natureza; ambientalismo

Wikipedia - Environmentalism is a broad philosophy, ideology and social movement regarding concerns for environmental conservation and improvement of the health of the environment (…). Environmentalism advocates the preservation, restoration and/or improvement of the natural environment, and may be referred to as a movement to control pollution or protect plant and animal diversity. (…) At its crux, environmentalism is an attempt to balance relations between humans and the various natural systems on which they depend in such a way that all the components are accorded a proper degree of sustainability.

Enciclopédia Britânica - environmentalism = political and ethical movement that seeks to improve and protect the quality of the natural environment through changes to environmentally harmful human activities; through the adoption of forms of political, economic, and social organization that are thought to be necessary for, or at least conducive to, the benign treatment of the environment by humans; and through a reassessment of humanity’s relationship with nature. In various ways, environmentalism claims that living things other than humans, and the natural environment as a whole, are deserving of consideration in reasoning about the morality of political, economic, and social policies.

para perceber que o João Bernardo e o João Valente Aguiar resolveram criar uma caricatura do Ecologismo para mais facilmente o tentarem desacreditar. Uma técnica muito velha, e que pelo facto da Esquerda Radical ser dela a vítima mais comum, devia levar a quem com ela se identifica a ter mais pruridos na sua utilização.

Como se pode constatar através das definições acima, o ecologismo não tem nada a dizer sobre a organização política e/ou sócio-económica. Apenas defende que tal organização deve minimizar o seu impacto nos ecosistemas. Não há qualquer acordo no seio do ecologismo sobre qual o tipo de organização óptima para que tal aconteça. Há quem defenda a ditadura do ecologista iluminado, há quem defenda a descentralização anarquista. Não é uma questão de divergências nos métodos, estratégias, ou caminhos para chegar ao mesmo objectivo de organização política e/ou sócio-económica, como é frequente acontecer entre os membros de cada ideologia política. Há divergência no objectivo (que é na verdade, em si, apenas um meio) em termos da desejada organização política e/ou sócio-económica.

(continua)

Pedro Viana disse...

(cont.)


A esmagadora maioria das pessoas é ecologista em maior ou menor grau, tendo este vindo a aumentar ao longo das últimas décadas. Encaixam na caricatura pintada por JB e JVA? Obviamente que não. Ok. Vamos então ver os programas dos movimentos e partidos políticos que reúnem a esmagadora maioria das pessoas que activamente procuram defender o objectivo do ecologismo (vide definições acima). Está lá o "fim da indústria"? O "regresso ao campo" (aka esvaziamento das cidades)? São "contra a mecanização da agricultura" (aka abolição de todo o trabalho mecânico no campo) e "contra a utilização de adubos" (aqui convém lembrar que o movimento ecologista teve como grande impulsionador, nos anos 60, exactamente as mais que provadas consequências desastrosas para os ecosistemas, mas também para os trabalhadores agrícolas, resultantes do **abuso** de adubos/fertilizantes artificiais e pesticidas)? Sim, são contra os OGMs. Completamente desnecessários, a não ser para as grandes multinacionais que trabalham para o dia em que a esmagadora dos agricultores em todo o mundo lhes tenha que bater à porta para lhes comprarem as sementes, para poderem cultivar o que quer que seja. Que haja pessoas na Esquerda Radical que se colocam efectivamente do lado de algumas das multinacionais mais predatórias que existem é espantoso. "A defesa da utilização de mão-de-obra familiar e não paga no cultivo de hortas"?! A sério? É um problema para vocês que haja pessoas que optem por utilizar parte do seu tempo a trabalhar numa sua horta para que dali possam obter alimentos? É obviamente lamentável que haja quem se veja **obrigado** a trabalhar numa horta para conseguirem sobreviver. Mas onde é que há ecologistas que querem **obrigar** as pessoas a trabalhar em hortas, directa ou indirectamente (talvez o JVA tenha ouvido algum ecologista a defender a diminuição ou o não aumento do rendimento dos trabalhadores para eles serem obrigados a cuidar de hortas…)? A "defesa da substituição das vacinas por mezinhas"? Há, efectivamente um movimento anti-vacinas, que se enquadra no naturalismo que mencionei no meu comentário anterior, e portanto nada tem a ver com ecologismo, mas que de qualquer modo é ultra-minoritário. Resulta não só duma aversão à invasão do natural pelo artificial, mas também, provavelmente até mais, duma desconfiança perante uma indústria conhecida por, como qualquer outra num sistema capitalista, em colocar os seus lucros à frente de qualquer preocupação genuína para com a saúde humana.

Os comunistas comem criancinhas? Vão colocar em gulags todos aqueles que deles discordem? Então não é isso que eles fazem na Coreia do Norte? Como é que não são verdadeiramente comunistas? É o que eles dizem que são! E os Anarquistas, que defendem o Caos, as pilhagens, cada um por si? As caricaturas são muito fáceis de construir. Mas servem apenas para tentar assustar, não para ter conversas construtivas.

(continua)

Pedro Viana disse...

Relativamente ao comentário mais recente do JVA:

"Em suma, o ecologismo é uma porta aberta à miséria."

Em primeiro lugar, o ecologismo não tem nada a dizer sobre o humano, em particular sobre a miséria. Em segundo lugar, teríamos que definir miséria, em particular do ponto de vista material. E em terceiro lugar, teríamos de concordar que a miséria **material** é a única condição através da qual se deve avaliar quão desejável, ou não, é uma situação humana específica. Alguém numa tribo isolada no Amazonas é mais ou menos feliz que alguém que viva neste rectângulo de território conhecido como Portugal? Isso interessa-lhe? Ou apenas contar frigoríficos, automóveis, acesso à medicina moderna, e o dinheiro que esse alguém consegue tirar duma ATM, entre outras coisas? O que me interessa é o que cada um, no seu direito à determinação do seu futuro, tenha capacidade para o influenciar e criar as condições, nomeadamente através da acção colectiva, que permitam concretizar aquilo que deseja para si. Se é a "miséria", assim seja. Cada um deve ser livre de optar pela "miséria", e de tentar convencer o colectivo a criar as condições para que essa opção se realize. A maioria decidirá. Não sou iluminado, nem tenho pretensão em sê-lo, em particular no que concerne ao modo como cada um deve viver em termos materiais.

Quanto aos "argumentos" do João Bernardo, resumem-se a uma frase: há fascistas que também são em menor ou maior grau ecologistas, portanto o ecologismo permite a fascistas utilizarem esse aspecto em comum com outros ecologistas para os tornarem (também) fascistas. Ei, é verdade! O mesmo se passa com quem gosta de livros, coleccionar selos, aderem ao budísmo, acreditam no Deus cristão, são anti-vacinas, defendem a maximização da produtividade, etc. Há fascistas (quase) por todo o lado (sem brincadeira)! Menos entre anarquistas, comunistas, neo-liberais, etc. Porque são ideologias do mesmo tipo, que versam sobre a organização política e/ou sócio-económica, e portanto mutuamente exclusivas (no essencial). O ecologismo não é desse tipo, tal como qualquer outro conjunto de ideias ou crenças que não tenha esse objectivo comum às ideologias políticas. Portanto, o que o Joao Bernardo quer é efectivamente que ninguém reflicta ou tome posição sobre o que quer que seja que não seja a organização política e/ou sócio-económica. Porque pode acontecer verem-se a defender as mesmas posições que um fascista. A isto chama-se a defesa do totalitarismo da política. E já nada tem a ver com fascismo e ecologismo.

Abraços,

Pedro

João Valente Aguiar disse...

Miguel,

percebo o teu ponto de vista. Por isso é que já disse repetidamente que o ecologismo não tem que ver com a degradação ambiental em si. A questão está muito para além disso, como já tive oportunidade de abordar anteriormente. Ninguém defende que os animais sejam maltratados ou que as praias devam ser depósitos de lixos e de esgotos a céu aberto, entre muitos outros exemplos possíveis. O que aqui está em causa são as teses ecologistas que defendem o que também já enumerei imensas vezes acima. Teses essas que são defendidas, umas mais outras menos, por diversos colectivos de esquerda por todo o mundo fora. Por colectivos e por governos.

Quando o governo boliviano considera que os direitos dos animais e das plantas estão ao nível dos direitos humanos - pois todos somos filhos da Mãe Terra - certamente que o que ali existe espelha parecenças ideológicas com o biologismo nazi. Quando o solo, os mortos e a água se contam entre os criadores da humanidade, é de um processo ideológico de descida do humano ao inumano que aqui se trata.

Abraço

Niet disse...

Como se diz em França e Araganças, os Verdes( ecologistas) deixaram de ser verdes para passarem a ser transparentes... O mesmo aconteceu com o JVA, que, se bem me lembro, em tempos se dizia( ou se queria afirmar?), como autonomista ou conselhista depois do " corte " com o empedernido marxismo-leninismo à portuguesa. Bem, agora " passa " as elocubrações neo-hegelianas do excelente teórico marxista J. Bernardo, que tem uma fixação indisfarçavel contra a revista de Castoriadis," Socialisme ou Barbarie ". É como em Lisboa, no Verão 2013, todos os sociólogos-que-se prezam se afirmam sem apelo nem agravo como neo-marxistas à la Jameson, oh deuses! Niet

João Valente Aguiar disse...

Niet,

então alguém deixa de ser autonomista só porque rejeita o ecologismo?

Mas sobre o que realmente importa, ainda bem que você sabe argumentar sobre o ecologismo. Gabo-lhe o feito de conseguir discutir esta questão sem nunca sequer se referir ao contexto deste debate.

Niet disse...

Uma breve nota, JVA, se me permite.
Eu funciono( com sucesso ou malogro...) a partir de textos com teses. Perdi os livros do Gorz, e os do Dumont e os do Louis Marin devem ter levado sumiço. Ah, sim, podia teclar as últimas entrevistas do Nader e as do Chomsky. Mas, como deve intuir, as teses de Castoriadis( parte delas de um livro que escreveu/reportou com Daniel Conh-Bendit) acertaram e estruturam bem o que deve e pode ser pensado, hoje. Salut! Niet