12/10/13

Empreendedorismo, uma "doença" social

Partilho aqui um texto escrito pelo Luhuna Carvalho, no 5dias.net, sobre essa coisa a que chamam empreendedorismo. Não só porque o texto põe alguns pontos nos i’s e arruma bem algumas “marcas” do assunto, mas porque o empreendedorismo merece um debate mais sério. Creio uma das razões que tem adiado este debate  – um debate que vai surgindo aqui e ali esporadicamente, mas que se quer sistemático – é a simpatia, mais ou menos declarada, que também exerce sobre amplos segmentos da esquerda, talvez atraídos pelas ideias de “criatividade”, “iniciativa individual” e “autonomia” que são vendidas neste pacote chamado “empreendedorismo” (aliás, o Luhuna chama a atenção para as semelhanças entre o empreendedorismo e algumas das formas que o activismo tem tomado). Esta atracção já seria razão suficiente para tornar esse debate necessário, pois creio que é um dos sintomas da hegemonização de certos princípios deste paradigma económico violento que nos domina. Mas as consequências são obviamente mais amplas e vão para lá da própria esquerda. Essa hegemonização, tal como todas, implica uma transformação de carácter antropológico profunda que passa pela legitimação e pela naturalização de estruturas, comportamentos e valores profundamente antagónicos a qualquer ideia de emancipação e solidariedade social. Trata-se de um sistema ideológico totalizante – para não dizer totalitário – que subsume tudo a uma só lógica, mascarando-se de livre ao mesmo tempo que reduz essa liberdade ao consumo – ou seja, por outras palavras, uma lógica que, em última instância, transforma tudo em produtos entre os quais somos livres de escolher para através deles definirmos a nossa “identidade”, a nossa “personalidade” ou, enfim, a nossa “individualidade”.

Em suma, e a propósito do título, o problema não é tanto o empreendedorismo ser uma "doença infantil do capitalismo" - com as doenças do capitalismo até podíamos aguentar bem - mas sim que as "doenças do capitalismo" implicam, geralmente, doenças sociais muito piores. É o caso desta.

4 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Diogo,

o post que partilhas é muito interessante, mas o teu comentário introduz algumas inflexões e observações ainda mais certeiras.
A este propósito, Castoriadis punha o problema de saber se o capitalismo poderá sobreviver a essa sua vitória final, que seria a mutação antropológica que indicas. E escrevia, referindo-se às "condições antropológicas do sistema": "O capitalismo desenvolveu-se explorando irreversivelemente uma herança histórica criada pelas épocas anteriores, e que ele próprio é incapz de reproduzir. Ora, num regime que proclama constantemente, nos factos e nas palavras, que o dinheiro é o único valor, e no qual a única sanção é a lei penal, por que razões os juízes não leiloariam as decisões que têm de ditar? A lei proíbe-o, sem dúvida - mas porque teriam de ser incorruptíveis os encarregados de a aplicar? Quis custodes custodeat? O que é que na lógica do capitalismo … proíbe a um inspecto+r das finanças aceitar subornos? Porque é que um professor se resignará à maçada de ensinar alguma coisa aos seus alunos se tiver maneira de se entender com o seu inspector? Um matemático de primeira ordem, professor universitário, talvez ganhe 16 000 francos por mês, 'produzindo' jovens matemáticos. Destes, os que sabem como está a vida (quer dizer, quase todos) não continuarão a se rmatemáticos; ocupar-se-ão de informática e entrarão para uma firma recebendo um salário inicial talvez de 30 000 francos. Quem ensinará, então, matemáticas na geração seguinte? Segundo a lógica do sistema, ninguém ou quase ninguém. Dir-se-á: haverá sempre cabeças amenamente extravagantes que preferirão uma bela demonstração a um salário elevado. Mas o que eu digo é que, precisamente, segundo as normas do sistema, tais pessoas não devem existir; a sua sobrevivência é uma anomalia sistémica - tal como a de operários conscienciosos, juízes íntegros, burocratas weberianos, etc. E por quanto tempo poderá um sistema reproduzir-se unicamente em função de anomalias sistémicas?" ( "Quelle démocratie?",Figures du pensable. Les carrefours du labyrinthe VI, Paris, Seuil, 1999).

Ora, sendo assim, o delírio de omnipotência que alimenta o empreendorismo e o consagra como princípio de realidade e de socialização tendencialmente absoluto, seria não uma mazela infantil, mas uma regressão senil. E contudo, não nos alegremos demasiado depressa e sem condições destes prenúncios de morte, porque, por si só, a auto-destruição do capitalismo não é garantia de coisa nenhuma e muito menos dessa sociedade de iguais para a qual deveríamos reservar o nome de democracia.

Abraço

miguel (sp)

Diogo Duarte disse...

Miguel, agradeço e subscrevo inteiramente o teu comentário.

Mas sublinho que esta mutação antropológica vai acontecendo mesmo sem essa “vitória final” do capitalismo. Continuando na linha desse excerto do Castoriadis, a institucionalização e a disseminação desta forma máxima de cinismo, que passa por achar que todo o indivíduo age sempre procurando maximizar o seu interesse individual (seja ele qual for), convive bem, mesmo entre quem a defende, com coisas tão antagónicas como a amizade (para não ir mais longe e para não nos cingirmos às “anomalias sistémicas”). A não ser que um qualquer exemplar desse homo economicus não tenha problemas em admitir a um amigo que a “amizade” que os une se baseia num interesse egoísta qualquer (e não estou a ver a maior parte deles a fazê-lo), vê-se obrigado a reconhecer que afinal a amizade é possível e, como tal, que o ser humano é capaz de alguma acção altruísta. E isto é uma contradição profunda. Portanto, esta transformação antropológica não implica necessariamente uma vitória total, adaptando, apropriando ou mesmo subvertendo as contradições que encontra.

E é esta “capacidade” que me parece mais preocupante, pois acho que é nestas contradições que surge o espaço para aquilo que mais tememos: que a saída desta auto-destruição do capitalismo se dê por caminhos também eles antagónicos a essa “sociedade de iguais”.

Miguel Serras Pereira disse...

Diogo, inteiramente de acordo, também eu. Mas permite-me duas precisões sem sombra de polémica. A primeira é que nem Castoriadis pensava, nem eu pensei num processo consumado, ignorando os elementos de resistência que se podem detectar nos usos e costumes, ao nível das práticas e das ideias, etc., etc. É precisamente neles que devemos apoiar-nos, é precisamente deles que devemos extrair todas as consequências. A segunda é que, quando Castoriadis fala de "anomalias sistémicas", está a referir-se àquilo que não encaixa ou não é processado pela sistematização ou organização capitalista da sociedade - àquilo que não cabe, ou só a título decorativo ou instrumental, no organigrama do capitalismo. É nesse sentido que a "amizade" que apontas como exemplo, na medida em que a sua ideia e a sua prática primem sobre o "empreendorismo" nas relações entre as pessoas, é (do ponto de vista capitalista) uma aberração, uma irracionalidade ou um obstáculo, excepto na medida em que funcione simplesmente para olear a engrenagem, e possa ser sacrificada ou preterida quando valores mais altos - neste caso o "valor" económico - se levantam.
Por isso, concluo que, se não te li mal, pá, continuamos de acordo…

Diogo Duarte disse...

Continuamos, sem dúvida. O meu comentário, apesar do tom talvez enganador, não pretendia ser uma rectificação mas sim um desenvolvimento ou acrescento (enriquecido pelas tuas precisões).
Abraço,
DD